Adágio negro

Um conto de Carlos Tavares
01/10/2003

Para Marilda

(…) Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.
Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.
(…) E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Carlos Drummond de Andrade

Na brancura espessa da manhã o sol imprime suas ondas de luz nas paredes do meu quarto e me reduz a um peixe perdido no aquário da existência. Já não sinto as lanças da solidão no meu corpo, nado em direção ao meu nicho de nuvens, toco as bolhas de ar que brindam meus pulmões com a fumaça encardida dos cigarros que fumei enquanto lutava contra a insônia. A impressão de que a terra parou, de que as pessoas não existem, eu não existo, que tudo é ilusão, golpe de vista, torpor, delírio, maquinações do sonho e do inconsciente me persegue há semanas; e eu já não sei se vale a pena erguer-me dos lençóis, se alguém sentirá a minha falta se eu resolver ficar aqui deitado, infinitamente. O problema é que não sinto mais nada — nem amor, nem desamor, nem alegria, nem tristeza; não faz tanto tempo que estou assim, exposto às formigas que procuram invadir o meu leito, aos maribondos que penetram o quarto pelas janelas, aos gafanhotos que montam guarda sobre os móveis, às baratas que rastejam pelos meus braços, aos morcegos que insistem na volúpia do sangue, às ratazanas que recusam o veneno e partem para o ataque, trucidam borboletas e minhocas — meu quarto virou um delírio, um circo, uma arena de pesadelos!

  A única vantagem dos lençóis, das cortinas cerradas, da companhia dos bichos é que o mundo duro e rígido continua girando lá fora e eu padeço de tudo aqui dentro sem incomodar ninguém, sequer o zelador, que antes era obrigado a subir três andares para cobrar o condomínio; mas ele desistiu, afinal o prédio será demolido em breve, sua estrutura está condenada e certamente desabarei junto com ele. Serei parte desses futuros escombros, pedras, poeira, caliça e ferragens, meu coração soterrado, meus olhos triturados, a ossada na argamassa ressequida da destruição, o barulho dos guindastes erguendo do chão essa carcaça sem brilho, campanário de pequenos pecados que saí distribuindo pelas estradas dia após dia, quem sabe escape ao menos a memória de uma época em que ainda podia me fazer presente na vida, aquele antigo corpo da juventude que o tempo derruiu, minhas tristes ruínas, o fim tão almejado que se aproxima.

  Além do porteiro, o telefone toca duas ou três vezes por dia, depois pára, eu nunca atendo, acabo puxando a tomada, apago as luzes, fico na penumbra como pássaro assustado no fio, cabelos desalinhados, ralos, a calva aos poucos deixando reluzir o que resta do meu crânio, esse brilho fosco de cada dia, meus olhos que nada enxergam além do reflexo pálido e céreo do meu rosto no espelho. Depois resolvo tomar um banho, mas a água foi cortada, as torneiras pingam o barro molhado e a ferrugem das encanações condenadas, afinal apenas eu, um escriturário que trabalha meio período no andar de cima, e o zelador, habitamos essa espelunca que em breve tombará em meio ao quarteirão mais desolado do bairro.

Resolvo ficar de frente para o espelho e noto que ganhei uma nova cicatriz, no centro do queixo; tenho mais duas na face esquerda, três na direita, cinco na testa, mas as raízes delas residem no tronco interior do meu corpo, florescem apenas as marcas que deverão repousar para sempre em cada lado do meu rosto, embaixo, acima das mandíbulas gastas que trituram apenas o ar que ainda respiro. Às vezes costumo passar de duas a três horas diante do espelho e não queiram saber os detalhes que descubro, dentro e fora dos globos oculares, nas estrias do branco dos olhos e nas fímbrias azuladas que imagino ver no cristalino estragado pelas queimaduras do sol, resultado das semanas que passei antes de me enfurnar, deitado sob o sol perto de uma estrada que a nada leva, apenas uma estrada que consegui trilhar sem medo, desarmado dos perigos, exposto ao vento e à chuva, simplesmente porque achava ser aquela uma das experiências de solidão mais ousadas que alguém poderia intentar. Caminhar, andar, caminhar, correr, passo a passo em direção ao nada, simplesmente ao nada que se alonga diante de meus olhos dentro e fora da estrada porque sei que sua intersecção é o meu próprio corpo em ruínas, a boca sem dentes, as mãos cobertas de feridas, as pernas cansadas, o tórax arfante, os ombros caídos, o olhar ensombreado e tristonho. Observei no espelho que as rugas despontam, reduzem o meu semblante ao pardo trêmulo e ondeante das máscaras funerárias, a testa engelhada, o nariz entortado, as orelhas amarrotadas como pequenos abanos de palha, o pescoço flácido e as aranhas vasculares instaladas nas teias das artérias que ainda pulsam, bombeiam um pouco de ar, de sangue, de vida.

O tempo que passei contemplando esses estragos fora o suficiente para imaginar que está na hora de colher as pedras, arrumar a casa, podar as primaveras que se enramam nos parapeitos das janelas, recortar as rosas das jardineiras, encaixotar os livros, arrumar as malas, rever as palavras, redesenhar a sede da memória e do amor, revolver as florestas de cal onde me escondi do mundo, catar os sinos que anunciam a demolição, retirar as cercas de dentro do peito, reflorir as varandas que se fecham ao meu redor e quase me asfixiam, reentoar as distâncias entre o que fui e o que hoje sou, curvar-me aos gerânios, beijar a terra dos finados, sacudir as cinzas do terno e apertar as gravatas, modelar os olhos, o nariz, a boca que já não ri, o cenho de cera que emurchece, moldar as mãos e o beijo, lapidar a falta que não se faz quando se decide recuar e sumir, reconhecer o terreno das desilusões, o pântano, as arapucas do cotidiano, apertar os cravos dessa coleira de agonia, destronar as fúrias que me espreitam no sonho e no sono, remontar os púlpitos dos anjos, rever as preces para nada desfiadas, desancar a realidade, sorrir para o delírio, ter a coragem do devaneio e da treva, da solidão dos ratos, devolver a prata das ruínas, recitar o silêncio das madrugadas, retrilhar as palavras na luta contra as traças, repintar o jardim, rebrotar as cores dessa paixão, cobrir-me de lírios e violetas que se despregam dos caules esturricados, devolver as auroras aos pássaros que aprisiono, reavivar as noites com os meus próprios sussurros, torcer as barras dessa angústia, é hora de dobrar as esquinas, desaparecer na textura das sombras, repor na penumbra o éter do soluço, é hora de encerrar a caminhada, lustrar o espanto, fechar os laços nas vigas, abotoar a camisa, os punhos, os sapatos, recolher as armas, partir, singrar, sumir, voar.

Carlos Tavares

É autor de Fábulas da febre (contos).

Rascunho