A crise das verdades na era pós-Hiroshima

Leia a seguir a apresentação do livro Verdades provisórias, coletânea de ensaios de Nelson de Oliveira sobre literatura, a ser lançado em novembro
Nelson de Oliveira, autor de “Babel Babilônia”. Foto e montagem: Tereza Yamashita
01/10/2003

Se me pedissem para mencionar a data mais importante da História ou da pré-história da raça humana, eu responderia sem a mínima hesitação: o dia 6 de agosto de 1945. A razão é simples. Desde o alvorecer da nossa consciência até o dia 6 de agosto de 1945, o homem precisou conviver tão-só com a perspectiva de sua morte como indivíduo. A partir do dia em que a primeira bomba atômica sobrepujou o brilho do sol, em Hiroshima, a humanidade de maneira geral passou a ter que conviver com a perspectiva de sua extinção como espécie.
Arthur Koestler, Jano

O ser humano é um grande criador de idéias, mas visto que não somos perfeitos nossas idéias também não o são. Encontram-se em constante mutação.

A matéria do universo, por exemplo. Para Tales o ingrediente básico do universo era a água, para Anaxímenes era o ar e para Heráclito era o fogo. Foram os atomistas — Demócrito, Epicuro e Lucrécio — os primeiros a formularem a hipótese de que a matéria do universo é formada da combinação mecânica e fortuita de átomos. Mais de vinte séculos após esses precursores, acreditava-se ainda que o átomo era o ponto final, irredutível a qualquer divisão. Foi Thomson quem, em 1897, desmentiu a idéia do átomo indivisível, ao descobrir o elétron. Pouco depois Rutherford concebeu o modelo planetário do átomo: pequenos pontos distribuídos no imenso espaço vazio, girando em torno do núcleo, como no sistema solar. Planck, Einstein e Bohr incorporaram ao modelo de Rutherford a hipótese dos quanta, pondo fim à idéia de que o átomo seria o constituinte último da matéria. Hoje acredita-se que o átomo é constituído basicamente de nada, dado o imenso intervalo vazio entre os elétrons e o núcleo atômico.

Durante muito tempo, todos imaginavam que a Terra fosse plana. Somente na época de Pitágoras é que sua superfície curvou-se sobre si mesma e se tornou esférica. A partir daí, por aproximadamente treze séculos, o modelo cosmológico que prevaleceu foi o geocêntrico, aperfeiçoado por Ptolomeu, com o nosso planeta no centro do universo. O sol, os demais planetas e seus eventuais satélites, os cometas, os asteróides e as estrelas giraram em torno de nós durante o período clássico e a Idade Média. Isso mudou com Copérnico, quando a Europa entrava no Renascimento. A partir daí deixamos de figurar como o centro do universo, porém a crença de que o sol localizava-se no centro da galáxia levou mais algum tempo para ser desmentida. Por razões obscuras, o ser humano tem essa necessidade de estar no centro de tudo, de centrar-se a qualquer custo. No mais das vezes ele apenas elabora sofisticadas teorias, a maioria delas falsa, que o ajudam a inserir-se à força no ponto geometricamente privilegiado de seus anseios. Ou, como diria Schopenhauer — antecipando Freud —, não desejamos algo por termos encontrado razões objetivas e lógicas para desejá-la, mas inventamos posteriormente as razões, os sistemas filosóficos e as teologias para mascarar, para nós mesmos, os nossos desejos profundos e os nossos interesses vitais.

Na época em que os bondes ainda trafegavam, com eles corria o divertido bordão: “Na vida tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro”. O aspecto transitório da vida biológica, das culturas e das doutrinas que lhes dão sustentação aparece tanto nas tiradas bem humoradas dos humildes como nas grandes obras da literatura universal. Na primeira parte da tragédia mais conhecida de Goethe, o oitocentista doutor Fausto, desiludido com todo o conhecimento que acumulou durante a vida, resmunga: “Ai de mim! Da filosofia, da medicina, da jurisprudência e — mísero eu! — da teologia o estudo fiz com a máxima insistência. Pobre simplório, aqui estou. E sábio como dantes sou! De doutor tenho o nome e de mestre em artes, e levo há dez anos por estas partes, pra cá e pra lá, aqui ou acolá, os meus discípulos pelo nariz. E vejo-o, não sabemos nada! Isso deixa-me a mente amargurada”. Essa sensação de vazio, de que apesar de todos os estudos, as pesquisas e as análises continuamos tão miseráveis e infelizes como sempre, não sabendo quase nada a respeito do universo e de nós mesmos, é a mais característica de nossa época.

Os pilares do mundo moderno estão fincados na superfície plana e sólida da causalidade, das ciências exatas e do pensamento lógico. Essa superfície vem sendo aplainada e solidificada desde os antigos gregos, mais especificamente desde os pré-socráticos, justamente os primeiros pensadores a explicarem a origem do universo e do homem, e a realidade sensível, sem lançar mão de mitos e deuses. Os pré-socráticos foram os primeiros cientistas de que se tem notícia e abriram caminho para Ptolomeu, Galileu, Newton e Einstein. Mas por mais racional que nossa espécie tenha se tornado ao longo dos milênios, por mais conceitos que tenha desenvolvido na criação da bolha tecnológica que habitamos, o consenso sobre o que é certo e o que é errado, o que é verdadeiro e o que é falso, está longe de ser alcançado. Se você pedir a diferentes pessoas, de diferentes culturas, que defina algo como a justiça, ou o amor, ou a vida, receberá como resposta diferentes definições.

Se pedir a um católico, a um judeu, a um muçulmano e a um budista que definam Deus, o resultado será respostas tão divergentes quanto as do pedido anterior. Mesmo sem sair de sua própria cultura, se perguntar a um adolescente negro e pobre e a um sexagenário branco e rico o que é a liberdade, ou o que é a arte, correrá o risco de ter de cada idéia duas definições muito diferentes. O mesmo vai acontecer quanto à definição de amizade, honestidade, direitos humanos, inteligência, alma, criatividade, liberdade, racional, irracional. Mesmo dentro de uma única classe social, um homem, uma mulher e um gay proporão definições diferentes para cada um desses tópicos. E o mais importante é que, no final do inquérito, nenhuma dessas definições esgotará o problema, todas parecerão incompletas aos olhos do outro. Elementos concretos, como a terra e a água, têm significados distintos para um geólogo, um agricultor e um poeta. Não é exagero dizer que a riqueza do gênero humano está justamente nesses intervalos simbólicos, nas múltiplas combinações possíveis de sentidos diferentes para o mesmo elemento, seja ele uma palavra, uma imagem, um som ou um objeto.

Penso que o fenômeno mais interessante e mais assustador do mundo contemporâneo é mesmo a crise das verdades absolutas, crise que teve início no século 19, cresceu e fortaleceu-se no 20 e parece que continuará por todo o 21 — talvez até pela eternidade afora, se a espécie humana não desaparecer. O símio brinca com o fogo atômico presenteado pelo Prometeu da era pós-Hiroshima, oxalá não se queime. Hoje vivemos à deriva, sem lastro, num oceano gelatinoso em que não há mais certezas nas quais se agarrar, pois tudo muda o tempo todo. Escritores, músicos, cineastas e artistas plásticos dos últimos cem anos procuraram representar com riqueza de detalhes o movimento constante dessa nova realidade, para muitos tida como aberrante. Vários deles conseguiram, a maioria se perdeu no amálgama da própria instabilidade que procurava registrar e entender. Tudo porque o dilema insuportável é que o ser humano, ao que parece, não consegue sobreviver sem dogmas nem certezas, sejam eles exclusivamente religiosos, científicos, éticos, estéticos, políticos, militares ou todos ao mesmo tempo.

Sabemos que Deus está morto, que o universo é finito, que o imenso intervalo entre as galáxias impossibilita as viagens para fora da Via Láctea, que o uso exclusivo da razão tem-se mostrado pouco eficaz na solução dos problemas sociais, mas sabemos também que tudo isso pode mudar amanhã: Deus pode renascer, o universo pode revelar novos e infinitos espaços — além de passagens que encurtem a distância entre as galáxias —, o pensamento racional pode tornar-se mais funcional ou ser substituído por outros sistemas de pensamento. Sabemos hoje que as verdades estão sempre presas a situações históricas, mas mesmo conscientes disso não conseguimos viver em paz. Não nos reconforta saber que somos parecidos com os três cegos da anedota indiana, que apalpam cada qual uma parte diferente de um elefante — o primeiro analisa a tromba e diz que o elefante é um tipo de cobra, o segundo analisa a perna e diz que o elefante é um tipo de árvore, o terceiro analisa o rabo e diz que o elefante é um tipo de cipó —, motivo pelo qual cada cego define o animal de maneira diferente.

Heráclito, cuja máxima “ninguém consegue banhar-se duas vezes no mesmo rio” é difundida hoje até em camisetas, viveu há vinte e cinco séculos e foi o primeiro ocidental a sugerir que na natureza tudo está em perpétua mutação, que jamais poderemos adquirir conhecimentos que durem para sempre. De certa maneira, foi ele o primeiro pensador pós-modernista de que se tem notícia. O pós-modernismo é, em resumo, o movimento que se contrapôs à Idade da Razão, iniciada por Descartes, cujo “penso, logo existo” também costuma freqüentar os mais diferentes produtos da industria cultural, de livros de auto-ajuda a capas de CD. Outros pós-modernistas avant la lettre foram Schopenhauer, para quem toda argumentação racional mascara desejos inconscientes e selvagens, Nietzsche, para quem no mundo há apenas o fluxo ininterrupto dos eventos e todas as aspirações de conhecimento são mentiras baseadas em ilusões, e Wittgenstein, para quem a busca filosófica pelo conhecimento da verdade absoluta não fazia o menor sentido. No século 20, Adorno e Horkheimer, na Dialética do iluminismo, demonstraram que os cientistas e pensadores modernos, que acreditam viver na Idade da Razão, não estão mais próximos da verdade do que seus antepassados renascentistas ou medievais. Na mesma linha de questionamento das verdades absolutas encontram-se Kuhn, Feyerabend, Foucault e Derrida. Ter sempre em mente que as verdades não são eternas, mas provisórias, é a condição contemporânea por excelência. É claro que tanta autoconsciência provoca frustração e melancolia, que por sua vez geram violência e crises de irracionalismo, mas ao mesmo tempo ela nos obriga a sair da infância, a deixar de lado a postura ingênua face à existência.

Como você verá em breve, este livro traz textos indiretamente ligados à questão das verdades absolutas principalmente no plano da literatura brasileira. Essa questão, apesar de já ter sido assimilada há tempos pela universidade — por meio justamente da leitura de Adorno, Kuhn, Feyerabend, Foucault e Derrida, entre outros —, quase não existe para os povos espalhados para além dos muros acadêmicos. Na imprensa cultural, seja ela veiculada pela tevê ou pelo jornal, as verdades absolutas imperam absolutamente e ninguém parece dar-se conta de seu fracasso secular. Baseadas em vícios mentais e preconceitos de toda a ordem, as afirmações categóricas avessas a réplicas multiplicam-se de maneira esquizofrênica. Nada é questionado, tudo é aceito passivamente. Certa moleza de caráter — defeito que os colonizadores europeus atribuíam aos colonizados sul-americanos, lembra-se? — impede, por exemplo, que a grande maioria de leitores e de articuladores de opinião faça frente às convicções européias e norte-americanas, totalitárias e protecionistas, que continuam a afirmar que a literatura feita aqui é de qualidade inferior. Por puro comodismo, ninguém está disposto a questionar a validade dos autores canonizados, ninguém está com ânimo de ir contra a corrente. Por que ir contra a corrente? Pelo simples prazer de verificar se os compêndios de literatura estão mesmo com a razão.

Não à toa um dos textos desta coletânea intitula-se Certezas demais. Temos certezas demais camuflando nossas dúvidas mais sérias, que procuramos esconder dos amigos, do cônjuge, da pátria. Essas certezas não são baseadas em nosso próprio julgamento, mas no julgamento alheio, principalmente no dos doutores da lei, contra os quais, segundo o senso comum, é melhor não ir. Por isso convido você, leitor, a ler os textos que se seguem como as minhas verdades provisórias. Eles fazem parte do processo intelectual de um indivíduo que, por ser humano, demasiado humano, não poderia viver sem suas verdades. Fazem parte do processo intelectual de um indivíduo situado num tempo e num espaço pré-determinados, ou seja, de alguém que, aprisionado entre um início e um fim, retira desta finita parcela de existência a motivação para o constante aprimoramento. De alguém que vinte e cinco séculos após Sócrates ainda sabe que nada sabe, pois tem consciência de que, por estar atrelado ao relógio, tudo é temporário.

Diferente do ensaio crítico, somente o anseio críptico — delicioso trocadilho que dá título à única coletânea de ruminações analíticas de Paulo Leminski — é capaz de sobrepor a conturbada ânsia questionadora à orgulhosa experiência, à presunçosa prova, ao pretensioso ensaio.

P.S.: Este é o texto de apresentação do livro Verdades provisórias, coletânea de ensaios sobre literatura — muitos deles publicados aqui no Rascunho — que será lançada em novembro pela editora Escrituras.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho