John Updike

John Updike: “A ficção me é onerosa como um senso de obrigação”
01/10/2003

Eu amo escrever e estou vendo aproximar-se o fim de minha carreira. Mas estou agradecido, realmente, que eu não estou tentando começar de novo agora.

Uso o drive para a primeira tacada. A bola cruza o campo por sofridos trinta metros e pousa fora do campo, em um amontoado de grama e galhos. Updike sorri condescendente antes de equilibrar a bola sobre o pino e olhar o alvo. O boné azul protege seus olhos do sol da manhã. A leve brisa que sopra mal consegue mover a bandeira que marca o buraco seis, bem no centro do green.

— Uma vez eu fui até um profissional e tive uma lição. Coloque seu peso sobre o pé direito, o homem me falou, e então para o esquerdo. Isso é tudo?, eu perguntei. É tudo, ele disse. E o movimento de pronação dos punhos?, eu perguntei. O que você tem a dizer sobre o ângulo dos ombros vis-à-vis com os quadris? Esqueça, ele disse. Ironicamente, para demonstrar a ele a estupidez de seu comando, eu obedeci. A bola foi pelo ar, direta como uma corda estirada e caiu em backspin a uma distante extasiante.

Updike também usa o drive. Não tem pressa. Como nas outras tacadas, balança o taco para cima e para baixo, como se medisse o ponto exato em que deve bater. E faz o swing e o zunido e a bola distancia-se de nós. Coloco a palma da mão sobre os olhos para poder ver a trajetória. Foi um bom lance. A bola toca a grama perto da minha e o impulso a leva adiante, até adentrar o green. Updike sorri satisfeito.

— O golfe, deixe-me dizer, é uma viagem!

Quando um livro de literatura entra na lista dos mais vendidos é normalmente porque é sensacional de algum modo, como Lolita e O complexo de Portnoy.

Nas bordas do campo um tatu nos observa. Com a cabeça fora da toca, fuça o ar cheirando algo. Seus olhos marrons também não param de procurar esse algo, até que desiste e tatu, focinho e olhos retornam para o buraco. Eu também me meteria em um buraco se pudesse.

— Deixe-me contar a história da melhor tacada de minha vida. Isso foi alguns anos atrás, em um pequeno dog-leg para a esquerda, em descida. As macieiras estavam em botão. Ou…

Jeremias, nosso carregador de tacos, empurra minhas costas, querendo me animar.

— Foi uma boa tacada. Você está melhorando.

As pessoas estão lendo mais como forma de escape do que quando eu era jovem. Veja os livros que as pessoas estão lendo nos aviões, e você verá um livro que gostaria de estar não lendo. São sempre aqueles suspenses grossos de John Grisham ou Stephen King ou nomes que eu nem posso conjurar. Danielle Steel. Isso é realmente desencorajador se você é o chamado escritor literário.

Jeremias tira o boné e o bate nas coxas. Antes de vesti-lo novamente, esfrega as costas das mãos na testa secando o suor.

— Com este calor é difícil jogar — me diz.

Seus cabelos vermelhos brilham dardejados de sol.

— Quando for meio-dia vai estar insuportável — me diz baixinho.

Quando eu era garoto, os livros mais vendidos eram os livros que você via na casa de seu professor de piano. Steinbeck, Hemingway, algum Faulkner. Faulkner atualmente teria, considerando quão difícil de ler ele é e como drasticamente experimental é, exatamente uma classe média leitora. Mas certamente alguém como Steinbeck faria um best-seller tanto quanto um vencedor de prêmio Nobel poderia almejar. Você não percebe isso atualmente. Eu não percebo que temos a mistura de sério e popular — isso é passado, dissolvido. Os gostos foram piorando. As pessoas lêem menos. Elas estão menos confortáveis com a palavra escrita. Estão menos confortáveis com os romances. Elas não têm referências que poderiam habilitá-las a apreciar coisas como ironia e alusão. Isso é triste.

Minha segunda tacada é mais feliz que a primeira. De olhos fechados, bato na bola torcendo pelo melhor. E é o que acontece. Sem ricochetear em árvore alguma, a bola cruza o espaço e pousa suave a poucos metros do green. Pena que na terceira tacada mantenho os olhos abertos e, apesar de Jeremias avisar que o green tem uma leva caída para a direita, jogo a bola diretamente contra a bandeira. Sob o olhar condescendente de Updike, a bola toca o green e desliza, inicialmente rumo ao buraco, mas logo a seguir curvando a trajetória em um arco que centímetro a centímetro a afasta do objetivo. No final, a bola escapa do limite do green.

— Foi bom.

Jeremias bate nas minhas costas, em um gesto consolador.

— O sol está atrapalhando.

— Jogadores dizem passar o ombro direito sob o queixo.

Updike diz e passa os dedos no próprio queixo e dirige-se para sua bola, observando o terreno, conferindo os cinco metros de grama sem grandes ondulações. Tomando o cuidado de corrigir o desnível, faz uma tacada lisa. Seria melhor se não tivesse chovido no dia anterior, o que deixou o campo pesado.

E de quem é a culpa? Bem, todos são culpados. Filmes são culpados por roubarem muito do impacto dos romances. Por que ler um romance quando em duas horas você pode apenas passar passivamente sentado e ser confundido e maravilhado e assustado? Televisão é culpada, especialmente porque entrou em nossas casas. Isso trouxe a fascinação da imagem em movimento diretamente para nossas casas; como ao ligar a torneira, você tem o que você quer.

Muita gente presente para assistir à retrospectiva de filmes de Woody Allen; outro tanto para escutar John Updike falar.

— Woody Allen, eu acho, não pode ser qualificado como a nova geração de alguma coisa. Mas, para mim, ele é o único americano, como Bergman e Fellini e Antonioni, que pode ser dito estar fazendo uma obra pessoal. Seus filmes são como romances de romancistas. Há variações de uma visão particular, e elas trazem um tipo de elemento pessoal. Eles não são todos bons. De fato, Woody Allen tem seus limites. Se você lê-lo como escritor, você verá que ele tem seus limites. Por outro lado, como cineasta você sente que existe uma conexão mais direta.

Alguém levanta e pergunta sobre Tarantino.

Pulp Fiction foi em certo sentido um filme aprisionador. E eu penso que isso foi longe demais, trouxe o pior em nós, de um modo engraçado. Ainda que fosse original.

Alguém pergunta sobre a capacidade redentora do cinema.

— Eu vi um filme chamado Leaving Las Vegas no qual muito pouca mitigação é oferecida. Um rapaz resolve beber até a morte, e vagarosamente o faz. E ele um tanto inesperadamente atrai a atenção de uma bela prostituta de Las Vegas que decide amá-lo e… eu não sei. Essa é uma história sem nenhuma virada. Não há nenhum ponto com alguma real resistência. Um velho filme de Hollywood teria levado aquele rapaz até um ponto em que ele teria olhado a garota e dito: Por que eu estou fazendo isso? Por que eu estou me autodestruindo? E então ele poderia ter desistido no final.

Na saída da conversa, tento me aproximar de Updike, mas me perco entre os fãs. Muitas mãos, muitas pernas, muitas vozes aproximando-se e afastando-se. Acabo sendo colocado de lado, junto à escadaria recapada com carpete vermelho.

— Você é jornalista?

A calça jeans e a camisa pólo surrada na gola me roubam apenas um segundo de atenção.

— Não.

— Melhor. Ele não dá entrevistas. Por que você quer falar com ele?

— Eu também escrevo.

— Todo mundo escreve. Não é isso que a gente aprende na escola?

O tom de voz pede uma nova olhada.

— Sou do Brasil — digo como se isso justificasse algo.

Jeremias abre o sorriso e estende a mão.

— Me paga um jantar que eu dou um jeito de você conversar com Updike.

Eu fui um viciado em filmes, mas podia ver apenas alguns filmes durante uma semana. Eu ainda tinha uma porção de tempo para ler, assim como outras pessoas. Mas a televisão toma todo o nosso dia se deixarmos. E agora nós temos esse avanço cultural que é a Internet, e online, e o computador oferecendo ele mesmo como uma ferramenta cultural, como uma ferramenta de distribuição não apenas de informação mas arte — e quem sabe o que irá acontecer com o mundo dos livros.

O sol mal nasce e Jeremias já me espera na entrada do clube.

— Vem que você precisa aprender algumas coisas.

Das sete e trinta até as nove, hora em que as portas do clube são abertas, tomo lições de como fazer o swing e como embocar; quais tacos devo usar para cada distância.

— Não se preocupa em decorar. Na hora eu passo para você os tacos certos. O mais importante é que você tem jeito para a coisa. Dá para ver que praticou muito esporte.

Por cem dólares compro passar um dia inteiro jogando em companhia de Updike.

— Se você realmente escreve, vai ser uma tarde inesquecível, te garanto — Jeremias bate diversas vezes em meu ombro. — Quem não gostaria de passar um dia inteiro com um dos maiores escritores americanos?

(John Updike nasceu em 1932, em Shillington, Pensilvânia. Formou-se em Harvard em 1954 e passou um ano em Oxford, Inglaterra, na Ruskin School of Drawning and Fine Art. De 1955 a 1957 foi colaborador da revista The New Yorker. É autor de mais de 50 livros, incluindo coleções de contos, poemas, ensaios e críticas. Suas novelas ganharam o Pulitzer (duas vezes), o National Book Award, o National Book Critics circle Award, e o Howelss Medal)

Às dez, Updike chega vestindo uma caça de algodão azul marinho, camisa branca e boné. Traz seus próprios tacos e sorri ao nos cumprimentar.

— Golfe é um alucinógeno não químico!

Jeremias me apresenta como um amigo que procura um parceiro para o jogo.

— Pensei imediatamente no senhor. Ele é brasileiro apesar de parecer oriental. E gosta de literatura.

A informação não impressiona Updike.

Um autor que atualmente é lido pode estar fora do mercado em dez anos. E vice-versa. Quem sabe quando o exame final acaba? No ano de 2050, diga, quem lerá autores de minha geração? Você gostaria de pensar que você será um deles. Mas constantemente os laços se rompem. Os vitorianos liam todo tipo de autor que hoje esquecemos. Quem lê Thackeray? Uma pessoa educada lê Dickens, ou lê algum Dickens. Mas Thackeray? Há uma constante eliminação e revisão de minha geração, e talvez da geração seguinte, o que você poderia chamar de escritores do pós-guerra. Eu pensaria em Bellow, se é que algum de nós vai ficar, porque ele é realmente um maravilhoso presente. E eu pensaria em algum Philip Roth. Eu não sei exatamente qual. Portnoy? Eu não sei. Donald Barthelme? É ele lido atualmente?

Os primeiros buracos deixam claro que eu sou iniciante. Minha primeira bola vai para fora do campo e, por um milagre, consigo jogar cinco abaixo do par. Updike joga uma abaixo do par.

— O golfe quebra o corpo humano em componentes estranhamente relacionados e tenuamente ligados.

Pergunto a Jeremias se Updike é sempre assim.

— Quem vai saber? É a primeira vez que jogo com ele.

Fico surpreso.

— Não acredite em mim. Quando eu percebo uma possibilidade de verdade, acho uma mentira. Se posso inventar algo fora da realidade, nem penso duas vezes.

Penso se reclamo ou fico calado. Fico calado. De qualquer modo seria perda de tempo. Se Jeremias mente, e mente sempre, no final significa que sempre fala a verdade.

— A vida é muito chata.

Eu tenho tentado usar o manto crítico como uma desculpa para conseguir alguma familiaridade com meus clássicos nacionais. Eu tenho trabalhado Melville, e Hawthorne, e Whitman como crítico. Então, neste sentido, eu tenho feito uma auto-educação. Eu também tenho lido o que os europeus e latino-americanos estão escrevendo. Então eu tenho tentado temperar, ou perfumar, minha própria americanidade com algum senso de literatura mundial. E eu penso que estou me tornando um escritor mais versátil por causa disso.

Começo a ficar preocupado se meu parceiro de jogo realmente é Updike. Se bem que, eu lembro, no evento da noite anterior ele foi apresentado como sendo Updike. Não convidariam um falso Updike para falar em uma retrospectiva de Woody Allen… a não ser que fosse uma piada de Woody Allen, como quando ele puxa Marshall MacLuhan da fila do cinema para humilhar um pedante que insiste em inventar conceitos e dizer serem de MacLuhan.

Esses autores que nada fazem e se pensam americanos, nestes tempos de globalização, isso acaba tornando-se uma muito estreita linha de trabalho.

Distraído em minhas suposições, vou para o buraco sete e dou a melhor tacada de minha vida. Feito um profissional, bato na bola e faço com que voe feito um flamingo eriçado até pousar a poucos centímetros do buraco. Tanto Jeremias quanto o suposto Updike olham-me admirados, se bem que eu mal os percebo, imerso em minha teoria conspiratória.

A ficção me é onerosa como um senso de obrigação.

Perdido em minhas divagações, continuo tacada após tacada acertando não apenas os drives como também os pots. E na mesma medida, quanto melhor eu jogo, pior o suposto Updike se sai. Várias vezes Jeremias tenta me alertar para a mudança de ânimo de meu companheiro.

— Assim ele vai achar que você estava enganando ele.

Nos buracos doze e treze o suposto Updike chega a perder a bola — uma vez dentro do lago, noutra em um monte de mato. E no quatorze, no momento em que bato a bola e seus olhos acompanham-na flutuando com o vento e desviando de todos os obstáculos do caminho para pousar além da bandeira e majestosamente vir o backspin e embocá-la — Hole one! — não fosse Jeremias talvez tudo estivesse perdido.

— Já é meio-dia, o que vocês acham de a gente parar por aqui. Com esse sol não dá para continuar.

Updike rapidamente concorda e eu, sem perceber a jogada que fiz, acompanho-os até a sede do clube. Durante o almoço — costelas de carneiro grelhadas e purê de batatas com molho de queijo —, finalmente falamos de literatura.

— Durante algum tempo gostei de livros de mistério — Updike me conta. — Parei ao descobrir que o plot era sempre o mesmo.

No fim da refeição, sou obrigado a pagar uma rodada de uísque a todos os presentes, o que me limpa a carteira e me obriga a ir embora (antes comunico meu problema a Jeremias e ele me deixa pagar um terço do combinado). Antes de partir, Updike pergunta se realmente sou amador. Respondo que sim, e acrescento que apenas segui o conselho que me deu: transferir o peso e esquecer tudo o mais. Updike sorri.

— Por algumas semanas eu segui aquelas instruções absurdas. Eu ia pelo campo de golfe como um gigante, derrotando meus pares, humilhando meus amigos. Mas eu nunca consegui me identificar com minhas novas proezas. Eu não pude internalizá-las. Havia uma imensa área transparente semicircular, misteriosa, anestesiada, sobre a monótona mudança de peso de meus pés. Toda riqueza tinha abandonado o jogo. Então eu gradualmente retrocedi em minhas lições, ignorei meus pés, fiz outros estudos e ajustamentos e restaurei meu swing originalmente inepto.

Penso o que tudo isso tem a ver com sua literatura, ou com sua personalidade enquanto caminho de volta para a cidade. Sem dinheiro para táxi ou ônibus, a caminhada será longa.

Coelho se cala
John Updike
Companhia das Letras
367 págs.
Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho