Vertigem é um texto em movimento. Movimento em torno de si, uma história que não se revela desvario ou lucidez, uma viagem pelos desvãos do desejo, uma metáfora dos portais aos quais a boa arte voluntariamente nos conduz.
Somos lançados numa jornada interior plena de desejo, e sofrida, já que as lacunas não se fecham. Incerteza e consciência, errância e divagação — mesmas sensações experimentadas por personagem e leitor ao longo do texto. Alguém aparentemente sofre de solidão, de um amor extinto, e cá estamos nós tateando o enredo, tanto quanto esse alguém, à procura de respostas.
A solidão é a força motriz de seus atos e pensamentos; o sexo, o amparo. Condenado por uma lucidez limítrofe de tão aguda, o personagem perde-se em viagens, cidades, mulheres, camas, memórias, idéias, crueldades. Alguém cujo presente está em suspensão, alguém sem um conforto emocional mínimo, um amputado. O personagem vaga numa narrativa que o desloca, e os leitores também, por um espaço-tempo fluido de poucas referências, marcos ou nomes.
Eu, Ele, Ela, Você são as vozes que nos conduzem, que ecoam e reverberam pelo texto. “Houve um tempo de paz, mas este já se foi. O que sobreviveu agora te acompanha” (p. 28). O personagem ruma por um vereda toda própria, cujos propósitos aparentemente lhe escapam porque pontuados de modo inconcluso ao longo da história. As vozes narrativas velam o texto com uma luz difusa. “Todas as cidades remetem ao mesmo naufrágio. Não há o que encontrar” (p. 159). Oferecem-nos esse mundo urdido por uma arte literária de primeira linha.
Delírio, torpor, suor, sexo, esperma, sono, lucidez atordoam recorrentemente esse movimento em busca de libertação pela qual passa o personagem. “Faço tudo ao contrário, e continuo andando em fogo, e queimando” (p. 17). Busca de uma identidade em meio ao turbilhão que ele vivencia, real ou não, herdado ou não.
Vertigem não é um texto pesado, hermético ou excludente. Por vezes, entretanto, faz-se excessivo e enfático — o que resulta em torneios emocionais sem força. Como conseqüência, a leitura vacila num ritmo mais lento.
A exemplo de tantos paralelos que o livro explora (amor-sexo, identidade-solidão, lucidez-torpor), há um, talvez o mais significativo, que é o que trata da ficção dentro da ficção. Eis aí um bom indicador, neste livro, para se vislumbrar a capacidade artística do autor.
Encontramo-nos diante de uma passagem entre mundos. As potencialidades da arte, o desejo de possui-la e de se libertar/perder pelos canais que ela oferece surgem aqui como uma leitura viável dessa vertigem a que se submete o personagem.
Vários os exemplos. Ao apreciar uma exposição de artes plásticas, ele diz: “tudo é possível quando não se sabe quem é criatura, quem é o personagem”. De quem é a voz que nos conta a história? E essa história, real ou forjada por uma dessas vozes às quais temos acesso?
Outra boa passagem aprofunda ainda mais o texto dentro do texto. Após o impulso de perseguir o sujeito que lhe oferecera um poema de péssima categoria e dizer-lhe as verdades necessárias sobre sua escrita para que não mais produza excrementos literários, o personagem nos brinda: “algo é pura falsidade por aqui. O homem. Ou o poema. Eu” (p. 40).
O personagem é mantido atordoado com o estado de suspensão em que se encontra, o leitor com a multiplicidade que o texto lhe oferece. A história não se revela. “Por que você precisa perguntar o tempo inteiro o porquê dos sinais?” (p. 49), eis o leitor recebendo um direto no queixo. Depois um cruzado: “não posso imaginar melhor tormento que ser o olhar oculto do outro que adormece” (p. 64).
Idéia confirmada e ampliada pelo fato de se estar diante de um narrador que sofre e se submete às limitações de sua tarefa, pois para ele “escrever é uma escuridão”. Está seriamente irritado com a necessidade de escrever numa linguagem acessível aos idiotas.
Por conta dessa amplitude, Vertigem é uma estrada em construção, de mão dupla e de várias pistas, como deve ser a boa literatura. Embora sinuosa, permite andamentos distintos. Em meio aos acessos possíveis, é válido referir-se a ele como uma metáfora do solitário ofício do escritor — fluxo e refluxo em muitas “cidades”, “camas”, “idéias”, “crueldades” perseguindo uma identidade artística.