Quando se abre um livro cujo título é Aquele rapaz, como este, escrito por Jean-Claude Bernardet, a primeira coisa que você quer saber é quem é o moço. A dúvida aguça a vontade de dar umas espiadelas no meio da história — ou no final, quem é mais afobado. Só para ter uma pista do tipo de personagem que vai encher aquelas 80 e poucas páginas. Será um amigo? Um amante? Um irmão? Um qualquer?
Como é escrito por um homossexual, os comentários sobre o título já são os esperados: “deve ser um livro gay”. E lá se vão as mãos ávidas por uma ou outra frase que indique a orientação sexual do livro. Quem procurar por esse tipo de “pista” vai dar com os burros n’água. Aquele rapaz não traz como tema principal o sexo — apesar de tratar, também, sobre a descoberta da sexualidade. Qualquer que seja. Com quem quer que seja. É, sim, uma viagem pelas memórias de um menino-moço-homem. Aquele rapaz…
A viagem proposta por Bernardet leva o leitor à França e a São Paulo, pós-Segunda Guerra. Aos conflitos com seus pais e com ele mesmo. Às amarras familiares, aos desejos incontidos e incompreendidos. À escola, às drogas, ao amor.
Na primeira página, lá vem ele, o rapaz. Nem nome o piá tem. O narrador, muitos anos depois da última visão do mocinho, já não se lembra nem da feição do garoto. Era colega de classe. Isso ele lembra. E era feio, parece. Cara redonda, bochechão. E jeito meio afeminado. Isso ele também lembra. “Queria falar de um rapaz, quanto tempo que nos encontramos e que nos vimos pela última vez, se tanto é que houve última vez, décadas. […] Esse rapaz, seu nome? Teria sido uns dos amigos de maior importância da minha vida? É possível, sem que o tivesse percebido, ou admitido.” (p. 6/7)
As referências ao garoto vão ficando cada vez mais raras, já nas primeiras 20 páginas do livro, para depois, nem isso. É que, na verdade, ele é um pretexto para que as lembranças de infância venham à tona. Durante um tempo — pequeno, é verdade — foram melhores amigos. Pelo menos até que o pai do narrador pede para que ele traga seu melhor amigo para um almoço em casa. Chamou outro guri. Aquele rapaz poderia significar descobertas demais para um simples almoço. “Apresentar o melhor amigo aos pais é revelar-se. Não queria que meu pai soubesse quem eu era, pois não me merecia a menor confiança. […]” (p. 12)
Depois desse episódio do almoço, pouco — quase nada — se fala do rapaz. E começa a viagem pelo passado do narrador. Quando ainda era muito pequeno, seus pais se separaram. A última lembrança — oficial — que tem de sua mãe é a despedida, no dia de natal, quando ele e o irmão foram a Paris passar as festas com o pai e a madrasta. O pai obrigava os meninos (ele e o irmão) a chamarem a nova esposa de mamie, o que saía com dificuldade. Muita. Mas ele ia levando. Mesmo tendo de cortar o cabelo à escovinha, a “pedido” da madrasta.
Enquanto morou com o pai, teve de rezar por sua cartilha. Apesar de viver em uma casa cheia de livros, não podia ler o que quisesse. Pelo contrário. Ficou anos a fio lendo um livrinho sobre as travessuras de um urso. Quando recebeu o cartão verde para ler um livro mais adulto — algo como O diálogo dos bichos — ficou exultante. Mas só até perceber que havia algumas páginas coladas. “Fui logo avisar minha madrasta que o livro estava defeituoso: não, essas páginas você precisa crescer um pouco mais para ler” (p. 23). Obedeceu. Um período de sua infância, quis escrever romances. A empreitada não vingou. Sua avó era a única parente que tinha paciência para suas pretensões literárias.
Anos depois, o pai decidiu que morar na América do Sul seria melhor. Mais promissor. E lá se foi a família (ele, o irmão, o pai e mamie) para São Paulo. Comeram o pão que o diabo amassou durante os primeiros anos na cidade da garoa. Depois, as coisas se ajeitaram. E ele arrumou sua primeira namorada. Apaixonadíssimo, queria casar. Mas ela foi embora com os pais para a Europa. Tentou uma fuga e até um suicídio. Passou. Conheceu outra mocinha. Namorou. Mas nada de muito empolgante. Aos 21 anos, saiu de casa. Viveria sua vida como bem entendesse. A primeira providência: mudar o corte de cabelos.
Quando a primeira namorada voltou da França, ele até pensou em casar-se com ela. Mas aí apareceu o homem de preto. Foi morar com ele. Serviu de cobaia para um médico que queria comprovar os efeitos do ácido lisérgico. A madrasta morreu de câncer. O pai também. Depois disso, só ficaram as lembranças. Embaçadas, desfocadas, como a foto que ilustra a capa d’Aquele rapaz.