Figuras sem paisagens

Contos de Pedro Salgueiro
01/11/2003

DEFESA
(O construtor calculava com gestos largos o espaço a ser preenchido pelo fosso, anterior ao muro de proteção.)

Erguia o velho mapa do terreno para enxergar melhor, aproveitando os últimos raios de sol; apontava com o indicador vacilante em uma e outra direção, como se pedisse conselhos a um ajudante imaginário. Os operários cavavam fundo o alicerce da parte virada para o rio. Checava ele mesmo os tijolos reforçados que seriam usados na encosta do morro. Havia desistido das árvores que poderiam também esconder perigos.

(Explicando a um operário de modos rudes a posição de defesa, riscava com a unha uma linha reta atravessando o bosque.)

“Usem a liga na argamassa, nem um raio penetrará no recinto”, nunca utilizava a palavra fortificação e seus sinônimos, como se assim já estivesse executando um plano de contenção. Também o inimigo jamais era tratado como tal, nesse caso novamente utilizava palavras amenas.

“Quem descer do morro…” encontraria a barreira perfeita, alicerces até a rocha pura, sobre a qual se ergueriam os invencíveis muros.

A liga para unir os blocos fora invenção antiga, e somente dois mestres no mundo sabiam sua composição. Trabalhava nela antes da chegada dos trabalhadores, madrugada ainda.

Mudava de equipe a cada dois anos, desconversava quando lhe inquiriam sobre a estranha fortaleza que se erguia a oeste do pequeno povoado, com vista privilegiada para o rio que fora a entrada de todos os invasores.

(E não somente mandava, corria as tardes a tanger ventos, a sussurrar preces — as mãos calejadas escorrendo o suor da fronte.)

Sabedor de que era o último de sua geração, o único a trazer no sangue as senhas dos primeiros invasores, continuava os preparativos para a batalha final. A abertura restante de entrada e saída tinha sido camuflada com muito cuidado, os dois derradeiros blocos, depositados por dentro, ao lado da farta argamassa, esperavam apenas o penúltimo e estudado movimento, quando então a última etapa do seu famoso plano de defesa seria executada, para espanto de seus atônitos inimigos, que nunca, em tempo algum, haviam perdido uma batalha.

MOVIMENTO ESPERADO
A mãozinha, aparentemente fina, é puro nervo — o músculo reto, justo como uma lâmina; o movimento leve, também aí é aparência, se ouvido de perto, rasga o tímpano. O calo seco dos dedos feito pedra raspa o trapézio: o corpo, sabedor de todos os movimentos, não pensa — executa na perfeição da linha.

Da arquibancada, o aplauso certo, inevitável — como se parte do espetáculo, o assovio finíssimo, o grito rouco. “Bravo, bravo!…” E o ouvido também se faz mestre, não deixando a mensagem chegar ao cérebro, o arrebatamento da emoção — quando o trágico seria regra. Todo o barulho estudado, na concentração absoluta do circo.

O número se repete, impessoal, leve — e a euforia da platéia parece também fazer parte do espetáculo, apenas um dos movimentos ensaiados, exaustivamente esperado.

Mesmo quando se estende além da conta, e o corpo magro do equilibrista jaz estendido no picadeiro, no seu último e — por que não — estudado movimento. Quando então o pano desce sobre o palco e, por detrás, o que era tudo ensaiado torna-se improviso

FRONTEIRA
O vasto horizonte mirado com angústia: primeiro as sobrancelhas cerradas, a mão em pala; depois os óculos claros, vislumbrando ínfimos detalhes; mais além o binóculo rápido; e por fim a luneta de tripé apoiada no peitoril da janela. (A porta da frente travada, os galhos ressequidos por sobre o muro)

Em cima da mesa o velho manual de técnicas de fuga, de caminhos alternativos, de atalhos perfeitos. Aos seus pés a gasta bússola, mapas encardidos e rabiscados nos trópicos. A xícara de café esquecida; a bagana de cigarro inútil nas cinzas. (Quanto mais longe… — o país distante, um mundo imaginário, paisagens de televisão)

Os olhos peritos não enxergam mais os pés gastos, as unhas compridas, o filete de baba maculando o colarinho, as baratas no canto escuro do quarto. No quintal o verde úmido dos musgos, o tronco seco da goiabeira, os cacos de telhas trocadas no último inverno.

Rangendo leve a cadeira de balanço da companheira triste, também esquecida dos filhos distantes, a esperar eternamente pelo retorno das andorinhas, o cantar dos galos nos quintais vizinhos, rezando uma prece em silêncio, no mais absoluto silêncio…

Por último cavou trincheiras no jardim, e montou observatório no galho mais alto da ingazeira do quintal, canto algum ficou descoberto de um possível ataque. Testou todos os alarmes, checou lunetas e binóculos, lustrou a gasta espingarda. E nem se deu conta de que o adversário, zeloso de seus cuidados, se infiltrara havia muito em sua guarda, já organizava junto com ele as mil situações de defesa, sussurrando em seu ouvido opiniões absurdas, desfocando lentes, cuspindo debochado no assoalho da sala enquanto ganhava a confiança de sua companhia. (Se não olhasse para tão longe já o teria visto, de sorriso maroto, destampando as panelas no fogão.)

EU, VALTER…

Bem, para começo de conversa, eu me chamo Valter (sem frescura de W nem acento, que o nome é meu e assino do jeito que me der na telha), mais precisamente Valter Campos de Carvalho. Escrevo estas minhas memórias, que não são só minhas, e depois assino a lápis, tremido e tudo, o nome inteiro… mas depois vem o editor e cisma em tirar o primeiro nome, avalia que fica melhor, muito mais chamativo e coisa e tal, e que além disso todo escritor famoso tem apenas dois nomes, fica fácil de memorizar e zel e del, e não adianta eu contrapor que pouco me importo se vão decorar meu nome, e nem sou marca de remédio ou qualquer outro produto… de nada adianta: e já que ele é o “verdadeiro” dono do livro, me finjo de vencido; mas continuo marcando as provas a lápis com meu querido Valter, que é como todos me chamavam.

Freqüentemente me liga perguntando (na verdade, me cobrando) se tenho escrito, se preparo um novo livro; parecendo ter esquecido de minhas últimas respostas. Respondo de novo que não mais escrevo porque já morri, que apenas esqueceram de me enterrar — como a imensa maioria das pessoas, aliás… bom, mas isto é outro papo: não sou mais vivo, portanto longe de mim querer convencer os outros (o que seria cair na tentação de imitar um outro morto ilustre, e nada acrescentar às “letras nacionais”). Bastam estes resmungos surdos, entre uma escarrada e outra.

Meu ex-editor parece ter a memória curta, como é quase regra entre os editores, e não se lembra da última vez em que nos falamos. Ele me havia proposto um conto, ou uma novela curta, sobre um dos dez pecados capitais… justo a mim, um pecador incorrigível; pensei logo em gozação da parte dele quando sugeriu a castidade, emendando logo que foi o tema restante, pois tais e tais autores já teriam escolhido quais e quais assuntos, e que ficaria feio agora retroceder. Como eu estava acostumado a ser o último, e nem sempre o ditado popular se mostra certeiro, resolvi aceitar; mais por força do desafio do que por levar a sério tal empreitada, talvez usasse a oportunidade para contrariá-lo, vingando-me de tantos contratempos.

O livro era mais uma daquelas iniciativas oportunistas de editores que, estando em dificuldades financeiras, tentam dar uma volta por cima usando o menor esforço e criatividade; mas o dito manual em nada me interessava.

A noveleta falava de que vamos morrendo aos poucos, desde a gradual perda da inocência na infância, até nos tornarmos estes mortos-vivos que trabalham, estudam, escrevem, amam, lutam, procriam… enfim: vivem por aí, nas ruas e em casa, nos comércios e repartições, nos bares e academias. Contava minhas lembranças de uma coleguinha de infância, pura (quando se ainda podia ser puro na infância) e despretensiosa, mas que havia despertado em mim, através de um simples olhar, em tempos remotíssimos, o que eu poderia hoje definir como o mais sincero amor. Havendo perdido o contato físico com ela desde muito tempo, apesar de continuar gozando de sua terna companhia em pensamentos, acabara de saber notícias de que a mesma — com seu olhar perdido e sonhador — tornara-se prostituta. A frase fria da anunciação dita em meio a gracejos por outro amigo de infância e a descoberta de que ela freqüentava o randevu que outrora fora o cinema em que assistíamos aos nossos primeiros filmes me deixaram atordoados: vesti minha melhor roupa, amarelada já pela madeira do baú a que fora esquecida desde a boêmia distante, e vaguei pelas ruas antes tão sonhadas, até criar coragem de ir vê-la — e confrontar os dois extremos de nossas vidas: o do procurar e o do perder.

Fiz meu personagem, eu próprio ou você mesmo, se acercar do dito bordel, sentar-se a uma mesa, confrontando por quatro ou mais parágrafos os ambientes de outrora e de hoje, o olhar perdido da minha procurada e o meu próprio no fatídico dia da descoberta de todo o meu afeto. Depois de algumas idas e voltas à porta, obriguei-me a chamá-la: mas não tinha coragem de me anunciar àquela outra mulher que era a mesma de todo o sempre. Ela veio, artificial e triste — como todas essas atrizes que para agradar têm que se tornarem subitamente alegres (daí lembrem os olhos infelizes dos palhaços, vendedores, amantes, políticos… ) —, sentou-se ao meu lado, sorriu e pronunciou um nome falso. Eu, o personagem, o leitor e, principalmente, o maldito editor ficamos pensando numa ideal maneira de anunciar a verdade… Mas a verdade ideal não existe, a não ser em nossas frágeis cabecinhas de deuses, que esperam que o mundo e suas criaturas sejam verdadeiras, manipuláveis, previsíveis… Vislumbrei ali a oportunidade para me vingar de todos: do editor, de ti — leitor, do personagem que ousara sonhar com tudo aquilo, mas principalmente de mim, por me levar ainda a sério diante deste circo armado. Meu personagem simplesmente se levantaria, sem coragem de anunciar seu verdadeiro nome; e carregaria com ele para sempre aquele amor e todo o imenso sofrimento que o acompanhava.

E nem adianta negar que cedi aos argumentos canalhas de “meu” editor para mudar o final da história, pois seria mais razoável um final feliz, que teríamos que dar esperanças para o querido leitor, e muito mais convincente um reencontro daquelas duas almas perdidas, que então sairiam pelas ruas felizes e tristes ao mesmo tempo, desafiando ao seu próprio criador: que não tive outra coisa a fazer, senão honrar meu compromisso com o fabricante de livros, com o leitor de fábulas e com o miserável mundo. Mas para honrar meu compromisso comigo mesmo, não houve outra alternativa a não ser morrer de vez.

O que também sei não adiantar muito: pois daqui a algum tempo, quando conseguirem enfim me enterrar, virão outros e mais outros me erguer do chão… e sabendo de minhas fraquezas tentarão, com os novos e tão velhos argumentos, me convencer — os sábios críticos, os míseros escrevinhadores, e os curiosos e malfadados leitores, além do diabo dos editores.

Pedro Salgueiro

Nasceu no Ceará (Tamboril, 1964). É autor de O peso do morto, O espantalho, Brincar com armas e Dos valores do inimigo. Acaba de lançar o livro de crônicas Fortaleza voadora. Em parceria com Jorge Pieiro, Caos portátil: Um almanaque de contos.

Rascunho