Dois contos de João Anzanello Carrascoza

Dois contos de João Anzanello Carrascoza
01/11/2003

Rosa Do Deserto

Talvez porque tivesse o nariz comprido, a pele morena, os cabelos negros e as ancas ideais para a dança do ventre, pensei, Deve ser árabe, e me aferrei a essa certeza, quando ela se aproximou do balcão e vi seus braços um tanto peludos para uma mulher dos trópicos, o que alastrou como um rastilho a minha curiosidade. E então ela deixou escapar um sorriso que há muito eu não via se abrir para mim e me olhou com uma ternura tão explícita e me acionou o play, desaguando um caudal de vida que não era para ser provada em copos mas no bico da garrafa, a largos sorvos, e todo meu ser foi sacudido pela vigorosa sensação de que somente eu seria capaz de despertar o gênio oculto em seu silêncio. O que esse anjo veio fazer no meu inferno?, eu pensei, surpreso mas sem me entregar à raridade daquele instante, represando na casca de minha desconfiança a certeza de que eu havia recebido uma dádiva. E me enganei, julgando que era apenas um sorriso cordial — o rastro de um pássaro que esvoaça no ar e, em seguida, se esconde na folhagem de uma árvore —, porque ela sorriu novamente, e eu permaneci imóvel, sem saber como agir, desacostumado com a escrita dos gestos, eu já não sabia mais ler nessa cartilha, seria preciso que me pegassem a mão novamente, me ensinassem a usar o lápis para traçar caminhos e abandonar a borracha que queimava meus dedos e com a qual eu só apagava pistas. Surpreendeu-me que alguém, com tão pouco esforço, tivesse laçado no vácuo o menino que se perdera de mim e me devolvera a ele sem dizer uma só palavra, quando eu já mal conseguia encontrar no espelho o homem que vivia à minha superfície. Então eu disse algo fútil, mas que era o primeiro degrau de uma aproximação inevitável e ela respondeu como se eu estivesse estendido um tapete aos seus pés e, com espantosa naturalidade, convidou-me a voar nele com palavras que pareciam grãos de poeira cintilando ao sol, e eu senti que ela tocava as cordas de meu ser e as afinava, enquanto eu cavoucava, ansioso, a verdade que se escondia sob o véu de sua matéria, e saboreei a graça de estar vivendo a minha vida diante dela, o que nos fazia cúmplices de um instante que se perderia para o mundo, mas se cravaria como um prego no madeiro de minha memória. Falamos algumas frivolidades, um tateando o mistério do outro, tentando as várias chaves em busca daquela que nos abriria inteiramente, e parecíamos saber a hora de silenciar nossas grandezas e vazar nossas insignificâncias. E conforme eu a sentia avançar passo a passo em meu campo de defesa, imaginava o que ela estava descobrindo em mim que eu não sabia, e continuei abraçado à minha timidez, descrente de que meus cabelos já grisalhos, meus dentes remendados e as manchas da idade em minhas mãos não a repelissem e que ela buscava alma em mim, enquanto eu media seu corpo jovem, revelando a minha fome e descartando a hipótese de que eu pudesse interessá-la. Resignado ao meu deserto, eu não cogitava encontrar mais nenhum oásis para repousar sob a sombra das palmeiras, e pensei, É uma miragem, embora tão próximos estivéssemos, e eu pudesse sentir o cheiro de ervas em seus cabelos, o seu hálito de hortelã, e apanhar a minha satisfação refletida em seus sorrisos, como os galhos de uma árvore oscilando ao vento nos olhos de um pássaro. Senti que a conhecia desde a noite dos tempos, ela possuía a costela que me fora arrancada, era finalmente a possibilidade, entre milhões, reservada a mim no jogo das paixões. Não me aborreci ao supor que ela, com seus vinte e poucos anos, inclinava-se em busca do homem maduro que pudesse lhe entregar o sentido da vida e soubesse o segredo que movia a máquina do mundo, eu só me importava em beber a sua presença, temendo perdê-la de repente, como se ela fosse minha, e eu ignorasse que só pode ser dado a alguém aquilo que já é seu. E ela me ouvia como se falasse um sultão e parecia ler nos meus lábios as palavras que eu desejava dizer abaixo das que dizia, agarradas à pele do óbvio, e seu olhar, encimado por espessas sobrancelhas negras, não se desgrudava de mim, preso ao visco de minhas feições, de minha barba, minha calva, os traços que eram meu registro visual no mundo e permitiam que me reconhecessem como eu, e me chamassem pelo meu nome, e que eu mesmo, diante do espelho, me conferisse. E, enquanto falávamos, apertei o ff da imaginação e vi lá na frente o casal que poderíamos ser, as mil e uma noites virgens que viveríamos, as luas minguantes no céu que contemplaríamos juntos, e as carícias que eu teria para ela, até o tempo de me semear dentro de seu vaso, de lhe entregar o tesouro que me era mais caro, e de enfrentar ao seu lado, com as unhas da insensatez e os dentes da razão, as contrariedades que adviriam, e violentá-la com minha ternura entrevada pela rotina de fingir, e me lambuzar de seu espírito, me esfolar nos pregos de seu corpo, me ancorar em seus peitos flutuantes, me iluminar na escuridão de suas coxas, me perder na noite úmida de seu sexo, me encontrar nos recônditos de sua geografia e entregar a ela, para que engolisse, a minha hóstia secreta. E então a vi na casa em que teríamos, recolhendo do varal as nossas manhãs de amor, lambendo a lágrima que escorreria pelo meu rosto, e mais e mais eu me convencia, Ela é minha rosa do deserto, e a efêmera felicidade que eu sentia se sobrepunha à dor de minha existência, e curava milagrosamente as feridas de meu temperamento genioso, como se ela soubesse o abre-te-sésamo que me reconduziria à esperança, iluminando a gruta onde minha vontade se refugiara como a ninfa Eco, repetindo em cada célula de meu corpo a ordem para ser novamente uma criatura alada, que se compadecia dos miseráveis, de cuja confraria eu fora arrancado pela rede de seus sorrisos e pelo anzol de suas palavras. Mas vi também, lá longe, velozmente, as muitas montanhas a que teríamos de ir, as mil etapas traiçoeiras do cotidiano que teríamos de superar para atingirmos a plenitude de meu sonho, quando a sensação que me estremecia como hipótese se consubstanciaria em matéria de nossa realidade, o sentimento saindo da neblina do devaneio e entrando no foco da vida, e todos os pontos de força convergiram para o meu aleph, e, então, me invadiu a energia colossal de todos os djins e eu pensei, Andarei sobre as águas por ela. E, de regresso ao instante que rugia à nossa frente, aproximei-me sem calcular os riscos e mergulhei na areia movediça de sua presença, disposto a ouvir o sim explosivo do mundo, o nosso big bang, sem cogitar que cada um de seus sorrisos poderia ser um pedido de socorro, como eram os meus próprios olhares, e embaralhei na mente a sua face com a minha e recolhi o rosto de uma criança que ela produziria a partir de minha semente e escrevi a nossa história num lapso de ilusão, enquanto eu a via se sobrepor à outra que saía de mim para me salvar. Mas a súbita percepção da verdade esmagou minha expectativa e freou o mecanismo dos sonhos, o rew foi acionado e comecei a rebobinar tudo o que havíamos dito e vivido na dimensão de meu desejo. Então, quando ela se aproximou do balcão, o nariz comprido, a pele morena, os cabelos negros e as ancas ideais para dança do ventre, e estendeu os braços peludos, sorrindo, eu me afastei com os olhos cheios de poeira, o silêncio esmagado entre os dentes, de volta à imensidão de minhas perdas.

Procura

Cheguei de madrugada num trem de carga. A estação deserta e mal iluminada me lembrou um filme. Fazia muito frio. Eu não tinha agasalho, sentia-me enregelado, desprevenido. Mesmo assim, antes de procurar um hotel, vaguei longo tempo pela cidade. A névoa revestia de mistério as casas antigas. Garoava. Abriguei-me no coreto da praça central e esperei que clareasse. Mas a manhã tardou a chegar. Veio vagarosa, o vento agitando a galharia das árvores. O dia afundou meu vigor, angustiou-me. O sol me escureceu os pensamentos. Quase na saída da cidade, encontrei uma hospedaria. Estava totalmente cheia e fui obrigado a dividir o quarto com outro hóspede. Procurei sem demora localizar o homem a quem me haviam recomendado. Fui a todos os endereços onde poderia encontrá-lo, mas ninguém sabia dele. Notei que as mulheres permaneciam em casa, assistindo televisão e bordando a roupa dos maridos. Tudo me parecia insólito, mas só me dei conta quando mais tarde parei para descansar. Na praça central, passei por alguns trabalhadores que voltavam das escavações. Disseram-me que o homem que eu procurava só poderia ser encontrado numa hospedaria, na saída da cidade e, conforme me explicaram, constatei que era a mesma na qual eu me hospedara. Voltei lá, mas o porteiro afirmou que ele havia chegado pela manhã e fora à procura de um homem. Incomodado pela poeira das escavações que cobria a cidade, resolvi me deitar, aborrecido com minha busca inútil. Logo fui surpreendido por uma conversa entre o porteiro e um homem que dizia “Cheguei de madrugada num trem de carga. A estação deserta e mal iluminada me lembrou um filme. Procurei sem demora localizar o homem a quem me haviam recomendado, mas não o encontrei”. Levantei-me e me dirigi à portaria. Perguntei ao porteiro sobre o homem. Respondeu-me que ele só poderia ser encontrado numa hospedaria, na saída da cidade. Até então eu estivera lúcido, mas naquele momento senti-me confuso e alegrei-me, em meio ao caos fervia a semente da salvação. Àquela hora, as mulheres assistiam televisão e bordavam para seus maridos. Resolvi esperar. Fazia muito frio. Eu não tinha agasalho, sentia-me enregelado, desprevenido. Não consegui dormir. Levantei-me e procurei sem demora localizar o homem a quem me haviam recomendado. Garoava. Abriguei-me no coreto da praça central. O dia afundou meu vigor, angustiou-me. O sol me escureceu os pensamentos. Logo que a chuva amainou, fui a todos os endereços onde poderia encontrá-lo, mas ninguém sabia dele. Tudo me parecia insólito, mas só me dei conta mais tarde, quando parei para descansar. Senti-me confuso e alegrei-me, em meio ao caos fervia a semente da salvação. Alguns trabalhadores voltavam das escavações e me disseram que o homem poderia ser encontrado numa hospedaria, na saída da cidade e, conforme me explicaram, constatei que era a mesma na qual eu me hospedara. Voltei lá e o porteiro me disse que ele chegara. Pedi o número de seu quarto. Era o mesmo que o meu. A porta não fora fechada à chave, mas quando entrei, não havia ninguém. Olhei pela janela, a névoa revestia de mistério as casas antigas. Incomodado pela poeira das escavações que cobria a cidade, resolvi me deitar, aborrecido com minha busca inútil. Descansei algum tempo e o homem chegou. Pude ouvi-lo perguntar ao porteiro sobre mim. Depois ele entrou no quarto, eu não fechara a porta à chave. Foi até a janela, olhou lá fora. Parecia incomodado com a poeira das escavações e ficou esperando que clareasse. Tentei me comunicar, mas o homem não me via nem me escutava. Até então eu estivera lúcido, mas naquele momento senti-me confuso e alegrei-me, em meio ao caos fervia a semente da salvação. Fiquei esperando que clareasse. Mas a manhã tardou a chegar. Veio vagarosa, o vento agitando a galharia das árvores.

João Anzanello Carrascoza

É autor dos romances Inventário do azul, Trilogia do adeus, Elegia do irmão e Aos 7 e aos 40, e diversos livros de contos como Aquela água toda e Tramas de meninos. Suas histórias foram traduzidas para o bengali, croata, espanhol, francês, inglês, italiano, sueco e tâmil. Recebeu os prêmios Jabuti, FNLIJ, Biblioteca Nacional, APCA, Cátedra Unesco, Radio France e White Ravens. Os poemas aqui publicados não fazem parte (aos menos por enquanto) de nenhum projeto estritamente poético do autor.

Rascunho