O destruidor de embustes

As opiniões de Affonso Romano de Sant’Anna sacodem a vida intelectual brasileira
Affonso Romano de Sant’Anna, autor de “Que fazer de Ezra Pound” Foto: Paula Foschia
01/12/2003

Por Paulo Polzonoff Jr. e Bruno Garschagen

Affonso Romano de Sant’Anna recebe os repórteres e a fotógrafa em sandálias, devidamente guardado pela pequenina Pixiel, sua cachorrinha. Com seu ar mineiro, lento, bem-pensado, conduz a todos para a biblioteca, onde será feita a entrevista. Faz um calor absurdo no Rio de Janeiro. A certa altura, Pixiel interrompe a entrevista porque quer brincar de bola com o dono. Sant’Anna faz as vontades do bichinho de estimação. E faz muito bem.

Na entrevista que se segue, Affonso Romano de Sant’Anna mostra, acima de tudo, uma percepção muito realista do mundo literário. De todas as perguntas e respostas, a mais importante delas talvez seja a que reafirma a condição do artista em meio à podridão política em que pode se tornar o meio literário. Para quem está começando ou para quem se assustou com o que viu por trás da máscara de glamour, é lição — sem medo de soar piegas.

É esta fé em algo maior e transcendente que explica o lançamento dos dois polêmicos livros de Affonso Romano de Sant’Anna: Desconstruir Duchamp e Que fazer de Ezra Pound, além da antologia de crônicas pela Global. O primeiro é uma reunião de seus artigos publicados no jornal O Globo, nos quais o poeta propõe uma revisão da arte contemporânea. Para um leitor apressado pode soar estranho que este assunto diga respeito a um poeta. Não é. Affonso Romano de Sant’Anna pensa a arte contemporânea porque acredita que ela se tornou um ramo da literatura, desde que se apóia no conceito para existir.

O livro já lhe rendeu bons desafetos e um título não lá muito honroso de “inimigo número 1 das artes plásticas”. Mas uma leitura cuidadosa dos artigos demonstra que de inimigo Affonso Romano de Sant’Anna não tem nada. Ele apenas quer desmascarar um embuste forjado em aço no urinol de Duchamp. Embustes, é sabido de todos, costumam gritar bastante quando se sentem ameaçados.

É livro de fácil leitura até para quem jamais pisou numa exposição do Itaú Cultural. O mesmo não se pode dizer de Que fazer de Ezra Pound, que, estando a dez mil anos-luz dos textos acadêmicos ininteligíveis made in USP, não faz concessões ao público mais leigo no assunto. Os ensaios de Sant’Anna, às vezes palestras e conferências proferidas no mundo acadêmico, tocam em feridas abertas na literatura brasileira. Coisas que, por preguiça ou falta de vontade de quem exerce o poder literário nas academias, deixaram-se de discutir. Como o tema do ensaio que dá título ao livro. Ezra Pound é assim uma espécie de ícone intocável desde que se instaurou no Brasil certa ditadura literária cujo nome não se ousa pronunciar.

Não há, porém, pesar nos textos de Affonso Romano de Sant’Anna. Há uma leveza que denota profundo conhecimento do assunto. Não vocifera, o poeta ou crítico de arte, quando bate de frente. Isso porque em seu texto reside uma certeza inquebrantável na verdade que defende.

Para os entrevistadores, fica a imagem significativa de Pixiel, a cachorrinha, que interrompe a entrevista pedindo para brincar. Affonso Romano de Sant’Anna, não espantando os seus interlocutores e nem tampouco desdenhando para os desejos do animal, faz melhor: vira-se para a cachorrinha que, sentada nas patas traseiras escuta atenciosamente as respostas do poeta, com sapiência de quem tem audição melhor do que muitos humanos que lerão esta entrevista.

ENTREVISTA COM AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA

Desconstruir Duchamp
Affonso Romano de Sant’Anna
Vieira e Lent
204 págs.
Melhores crônicas
Affonso Romano de Sant’Anna
Global
229 págs.
Que fazer de Ezra Pound
Affonso Romano de Sant’Anna
Imago
259 págs.
Paulo Polzonoff Jr.
Rascunho