Pessimismo, desamparo e solidão em Salvador

O baiano Mayrant Gallo transita pelos espaços das grandes cidades, marcados pela crueza das relações humanas
Gallo: contos sobre o desamparo e a solidão do homem
01/12/2003

O livro O inédito de Kafka (com orelha assinada por Miguel Sanches Neto) praticamente marca a estréia do baiano Mayrant Gallo, uma vez que o seu primeiro livro de contos, Pés quentes nas noites frias (1999), lançado pelo selo Letras da Bahia, não teve distribuição nacional. Assim, com essa publicação, o escritor e professor universitário começa a trilhar um caminho próprio num cenário literário visto sob o ângulo da Bahia, cujos nomes de destaque têm sido os de Sônia Coutinho e Guido Guerra, os recentes Carlos Ribeiro e Aleilton Fonseca (que integram o livro Geração 90, organizado por Nelson de Oliveira), além de Luis Antonio Cajazeiras Ramos, mas cujos expoentes na poesia são Ruy Espinheira Filho (Memória da chuva) e, na prosa, a jovem ficcionista Állex Leilla, autora do livro de contos Urbanos e do romance Henrique. Aos 42 anos, Mayrant Gallo se insere entre essas duas gerações literárias.

As quinze histórias de O inédito de Kafka são enfeixadas quase em minicontos, a partir da temática da solidão, da desilusão amorosa, do (tão citado e desgastado) caos urbano, da ironia, da solidão, da desesperança, do pessimismo e da desilusão — tudo em doses mais ou menos equilibradas e que parecem ser a tônica da literatura brasileira contemporânea. De qualquer forma, atrelado a esses temas, o seu modus operandi (linguagem ágil, simples, digerível, sem floreios e reverberações) o insere na contemporaneidade de uma literatura cada vez mais voltada para o “homem presente” com suas desilusões, carências e desejos, ou seja, o indivíduo perdido na confusão cotidiana dos grandes centros urbanos. Em seu caso, leia-se a cidade de Salvador neste começo de século. Espaço recorrente na maioria dos seus contos, aos poucos surgem signos, referências, índices e códigos de uma capital baiana pouco ressaltada pela mídia — uma cidade pobre, de trânsito caótico e cujas ruas sujas do centro contaminam as pessoas e suas relações. Diz o narrador do conto Dissolução: “A cidade é a mesma, clara, suja e desarrumada. Quando Gregório de Matos andou por aqui também notou isso. Um homem não pode ser limpo por aqui. Um homem tem que feder, suar e emitir gritos”. A frase registra o tom do livro, disposto neste cenário que exibe uma faceta pouco gloriosa.

É essa cidade que vamos encontrar na maioria de suas histórias, bem distante do antigo e romântico quadro de saveiros, da sensualidade de belas mulatas e da boêmia de bêbados errantes e sedutores descritos por um Jorge Amado décadas atrás e que teima em perdurar como imagem de uma Bahia com sotaque forçado. Falamos de Salvador e da Bahia, mas é preciso dizer que esta ambientação nos seus contos soa puramente acidental, uma vez que os espaços, mesmo quando citados, não são explorados em suas especificidades. As regiões citadas como os bairros da Ondina, Federação, Campo Grande, Vila dos Barris etc. aparecem aqui e acolá, mas podem ser confundidas com qualquer outro grande centro urbano. De qualquer forma, permanece de positivo a distância dessa Bahia tão decantada, mas percebida hoje em grande parte apenas pelos turistas que chegam à procura da famosa e cada vez mais difusa malemolência baiana. Longe disso tudo, Mayrant quer escrever e tratar de indivíduos e isso o afasta dos clichês e estereótipos que mais alimentam as indústrias hoteleira e carnavalesca que uma boa literatura.

As suas histórias são de indivíduos absolutamente simples, homens e mulheres comuns com quem certamente esbarramos no centro, daí, talvez, o tom melancólico e meio decadente que perpassa as suas histórias. Os seus protagonistas passam invariavelmente pessimismo, marcados por um cotidiano opressor que em geral soa como algo irreversível. Em praticamente todos os contos, nos deparamos com o desamparo e a solidão da condição humana. São esses momentos que o autor procura captar nos espaços das grandes cidades, marcados pela crueza das relações, pelo sexo fácil, pelos desencontros amorosos. Em todos, perpassa uma certa desilusão embebida em melancolia e niilismo de se continuar vivendo em meio às adversidades do cotidiano.

Nas fímbrias do seu discurso, há uma leve desesperança, um atordoamento, um desamparo humanos imensuráveis. E se falta amor (e humor) na maioria de suas histórias, é porque suas personagens são atingidas pelo egoísmo e pela crueza e dificuldade em se manter relações.

Personagens que estão contaminadas pela solidão, como a do misantropo que decide criar passarinhos em Porque não amasse ninguém. Há ainda a mediocridade do funcionário público em O parafuso, cujo narrador conta friamente como planejou a morte de um casal num fosso de um elevador. Há a menina que “esperava um homem desde a infância”; o tema do aborto aparece de raspão em Pés quentes nas noites frias; a violência em A vida num domingo; o desempregado com nível superior que dá graças a Deus por conseguir uma vaga como gari em Varrer rua; o inesperado incesto que surpreende no desfecho de O amor como deve ser; o imponderável e o fantástico no conto Dissolução, mas que bem poderia se chamar O homem invisível, por explorar o tema do duplo, da pessoa e personagem que se confundem e procura a si mesmo. Por fim, o fantástico volta em O inédito de Kafka, fechando o livro.

Suas histórias são contadas por um narrador cortante, que parece ser sempre o mesmo em praticamente todos os contos do livro, a despeito da diversidade de temas e de personagens, como vimos. Algumas frases soam deslocadas, quando não sabemos se sua intenção é justamente explorar esse elemento do fantástico. Isso ocorre, por exemplo, quando os objetos parecem ter vida própria, o que não deixa de ser engraçado, vide: “as garrafas térmicas de café aguardavam os viciados” (p. 73) ou “Várias mesas cobertas com toalhas quadriculadas bocejavam, à espera da movimentação do meio-dia, quando então levariam uma surra de copos, cotovelos e pratos” (p. 19). Vez ou outra, entretanto, as impressões do autor soam como “ensinamentos” que podem parecer artificial, deslocados das histórias, meras digressões, “gorduras” que poderiam ser cortadas.

Da mesma forma, os contos, de tão curtos, às vezes parecem ansiar por mais espaço, pedir um pouco mais de desenvolvimento. Uma leitura mais atenta pode suscitar a expectativa por um maior adensamento em alguns enredos, pela descrição mais clara dos espaços em que transitam seus personagens, assim como uma caracterização psicológica melhor definida etc., mas isso não chega a prejudicar o livro.

Ressalte-se, por fim, a importância desse lançamento para o mercado editorial brasileiro, fustigado por best sellers estrangeiros e por autores cujo manto duvidoso do sucesso e da celebridade passageira já o entronizaram. Residindo em Salvador, o autor tem de conviver com um cenário de grande restrição editorial. A cidade não conta ainda com uma editora de médio porte, a despeito de suas tantas livrarias e leitores, o que não deixa de ser vergonhoso e de uma pobreza cultural ímpar. Assim, para dar vazão aos textos dos escritores que estão começando, é vital que uma editora com distribuição nacional como a Cosac abra-se para autores fora do eixo, com uma dicção contemporânea e que tem o que dizer, como é o caso de Mayrant Gallo.

O inédito de Kafka
Mayrant Gallo
Cosac & Naify
193 págs.
Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho