J. M. G. Le Clézio

A conversa com o escritor que buscar traduzir a relação com o cotidiano
Le Clézio: “A literatura contemporânea é uma literatura do desespero”
01/12/2003

Olhe pela janela e me diga o que vê? Além do céu escuro e das pombas brancas que insistem em retornar ao peitoril, o que mais acontece? O que mais? Para quem conhece o norte da África há pouca novidade e as tâmaras caindo das palmeiras significam nada. As mesmas casas, o mesmo ar, as mesmas faces escuras e, principalmente, o mesmo odor adocicado. Quando se caminha pelas vielas o cheiro é quase insuportável e para o estrangeiro é como um tique apertar o nariz com o indicador e o dedão tentado inutilmente retirar de si o que está fora.

Não temos mais a presunção de acreditar, como na época de Sartre, que um romance pode mudar o mundo. Hoje, os escritores não podem senão constatar a sua impotência política. Quando lemos Sartre, Camus, Dos Passos ou Steinbeck, vemos claramente que esses grandes escritores engajados tinham uma confiança infinita no futuro do ser humano e no poder da escrita. Não podemos mais acreditar nisso, hoje. A literatura contemporânea é uma literatura do desespero.

Parado na rua frente à mesquita dá para ver os sapatos e tamancos e chinelas enfileirados pelas pessoas que chegam para a reza do fim da tarde, carregando sob os braços pequenos embrulhos e sacolas de vime. No topo do minarete, o mulah estende um tapete avermelhado espalhando grãos de areia para que se percam contra os vermelhos raios do sol poente. As mulheres de ombros e colos nus são avisadas que devem se cobrir com lenços de cores sóbrias. Um menino coxo retira da parede restos da mesma tinta branca que impregna todas as paredes, de todas as casas, colorindo de claro as solas dos muitos pés descalços. Um jovem de 16 anos, pele escura e nariz afilado, disfarça sua preocupação enquanto observa o movimento na rua. Jean Marie diz que ninguém transpira no norte da África, ou pelo menos nenhum suor é visto tanta é a secura. Mesmo nas bordas do Mediterrâneo a pele desidrata antes que seja possível aparecerem sinais de umidade nas roupas.

Eu tomo meu chá e peço outro, menos doce. Uma criança passa correndo fugindo de outras crianças, mais velhas, carregando bastões e pedras e gritando feito tuaregs caçadores. O jovem sentado na mesa ao lado acende um cigarro e traga e contém o engasgo e disfarça e olha ao redor para ter certeza de que ninguém percebeu e bebe um gole de chá de menta e volta a observar as pessoas que entram na mesquita. As crianças espancam o garoto menor e ninguém se manifesta. É preciso que a mãe apareça para que os meninos mais velhos parem e do mesmo modo que tudo começou tudo se acaba e as pessoas que circulam pela rua continuam do mesmo modo que continuavam antes. Jean Marie pergunta se conheço o México.

Fui enviado ao México para prestar o meu serviço militar. Durante os dois anos em que lá permaneci, tive a ocasião de viajar. Estive especialmente no Panamá, onde encontrei os emberas. Passei quatro anos (1970-1974) com essa população indígena da floresta. Foi uma experiência perturbadora, porque descobri uma maneira de viver que nada tinha a ver com o que havia conhecido na Europa. Os emberas vivem em harmonia com a natureza, com seu meio ambiente, com si mesmos sem, contudo, ter necessidade de seguir uma autoridade jurídica ou religiosa qualquer. Achei isso estimulante e quando, ao voltar, quis falar da coesão social dessa comunidade, os críticos disseram que eu era ingênuo, simplista e que caíra no mito do “bom selvagem”, embora não fosse esse o meu propósito. Eu jamais poderia dizer dessas pessoas com quem vivi que se tratava de selvagens, nem que eram bons. Eles viviam de acordo com outros critérios e valores.

Mohamed levanta-se e pede licença para ir rezar e leva consigo a bolsa de couro que lhe dei de presente. A roupa que veste não fica bem em seu corpo, fazendo com que sua figura destoe das de seus conterrâneos. Mas isso não parece incomodá-lo, pelo contrário, deixa-o orgulhoso. Tirthankar Chanda desliga o gravador.

— Aqui é a Tunísia, não é o Irã.

Ao caminhar entre as mesas, Mohamed abotoa cuidadosamente o paletó e aperta o nó da grava. O jovem que acendeu outro cigarro olha com desdém o modo como nosso motorista caminha de peito cheio. Apesar de também estar com trajes ocidentais, a roupa não o destaca, sua aparência nobre sim.

A cultura ocidental tornou-se excessivamente monolítica. Ela privilegia até a exacerbação seu lado urbano e técnico, impedindo assim o desenvolvimento de outras formas de expressão: a religiosidade e os sentimentos, por exemplo. Toda a parte impenetrável do ser humano está oculta em nome do racionalismo. Foi essa tomada de consciência que me impulsionou em direção a outras civilizações.

Jean Marie encosta-se na parede e pergunta sobre o Brasil, mais especificamente sobre Lula. Respondo que não sei o que dizer, que as notícias são desencontradas, que a ficção dos noticiários causam tanto sono quanto a maioria das ficções dos romances. E me desculpo pelos meus modos. De repente sinto-me mal por não conseguir falar com clareza o que se passa em minha mente e parece que essa atitude piora ainda mais minha aparente condescendência. Falo que existe um pequeno universo de autores que valem a pena, assim como devem existir políticos que valem a pena. E olho para os lados procurando o garçom que virá me salvar e os dedos de Jean Marie estão apertados uns contra os outros e um gato malhado entra no café e circula sob as mesas e corre e pega um camundongo que comia distraído os restos de fritura e o gato sai e eu me pergunto até que ponto posso ser eu mesmo sem me ofender.

Acho que o romance tem como qualidade principal ser inclassificável, ou seja, ser um gênero polimorfo que participa de uma certa mestiçagem, de uma mistura de idéias que é o reflexo, no final das contas, do nosso mundo multipolar.

Súbito o bar esvazia e ficamos eu e Jean Marie e Tirthankar Chanda bebendo chá e esperando que as preces terminem e possamos pagar nossa conta e voltar ao hotel para nos prepararmos para o jantar e terminado o chá ficamos quietos, pois o balconista e os garçons não ligam para nossas intenções e continuam ajoelhados sobre os tapetes estendidos na calçada enquanto os alto-falantes ecoam a ladainha nas vielas estreitas e salas de escritório e cafés e casas e edifícios modernos e cortiços feitos de barro e areia e cal e poeira que o vento desfaz mais lento que a burocracia.

Presunçoso, sinto que de repente, no mundo, somente eu, Tirthankar Chanda e Jean Marie e o jovem fumante continuamos em nossos lugares com a diferença que o jovem perdeu toda sua aura de conforto e mexe-se na cadeira atento não apenas ao deserto no qual transformou-se a rua, mas também a todos aqueles que dedicam alguns minutos a deus, inclusive os pássaros imóveis no céu e as moscas em infinita queda.

A maioria dos automóveis parara de circular e os poucos que trafegam pertencem à minoria cristã e judia que, mesmo não crendo, diminuem a velocidade de seus carros em respeito à maioria e a Alah.

Se tivesse que descrever meus livros, eu diria que são o que mais se parece comigo. Ou seja, trata-se para mim menos de expressar idéias do que expressar o que sou e aquilo em que acredito. Quando escrevo, busco essencialmente traduzir a minha relação com o cotidiano, com o acontecimento. Nós vivemos numa época conturbada em que somos invadidos por um caos de idéias e imagens. O papel da literatura hoje talvez seja o de fazer eco a esse caos.

Jean Marie chama minha atenção para o modo como somente os olhos do jovem movimentam-se despregados do momento presente. Mesmo quando a brasa do tabaco consome o cigarro até a carne dos dedos o rapaz não se exaspera. Nem ao menos abre os dedos, apenas suporta a dor e deixa que as cinzas sejam levadas pelo vento.

O romance é, de fato, um gênero burguês. Durante todo o século 19, ele encarnou de forma magnífica as venturas e desventuras do mundo burguês. Depois, veio o cinema. Este roubou a cena e mostrou ser um instrumento de representação do mundo bem mais eficaz. Os escritores procuraram então ampliar o alcance do gênero romanesco fazendo dele um espaço para a expressão de idéias e sentimentos. Foi assim que perceberam o quanto esse gênero é maleável, fluido, prestando-se facilmente às experimentações formais. Desde então, cada geração renovou o romance, reinventando-o ao lhe acrescentar novos elementos.

Terminada as preces, a vida volta para as ruas e os garçons dispõem-se novamente a nos atender. Jean Marie pede licença para ir ao banheiro e eu peço um doce de goma e figos secos. Mohamed retorna no mesmo momento que dois homens mais velhos levantam-se de suas mesas e vão até o jovem que voltou a fumar. Mohamed explica que os homens mais velhos sentiram-se ofendidos com a atitude do rapaz, pois consideram inaceitável que um filho de uma tradicional família islâmica de Tunis comporte-se daquela maneira e que os pais do garoto devem sentir-se muito mal, mas que não era correto culpá-los, mas sim a influência ocidental tão perniciosa aos jovens.

Meus romancistas preferidos são Stevenson e Joyce. Eles extraem a sua inspiração dos primeiros anos de existência. Através da escrita, eles revivem seu passado e tentam compreender os “porquês” e os “como”. Quando se lê Ulysses, de Joyce, tem-se realmente a impressão de que o objetivo do autor não é narrar o instante presente, mas dizer tudo o que ele possui, tudo o que o formou. Ele ressuscita os menores sons da rua, alguns trechos de conversas e os castigos corporais sofridos na escola que ainda o perseguem como a uma obsessão. Naipaul também retorna, através da imaginação, a seus primeiros anos de formação. A literatura só tem força quando consegue expressar as primeiras sensações, as primeiras experiências, as primeiras idéias, os primeiros desapontamentos.

Mohamed aceita um figo seco e o mastiga com prazer enquanto continua a traduzir os motivos da discussão e eu fico sabendo que os homens mais velhos acham que o rapaz está sendo afastado da religião também pela menina cristã com quem foi visto fazendo compras no lado ocidental da cidade.

— Um deles é o tio, irmão da mãe do garoto. Ele é quem está mais irritado, apesar de gesticular menos. O outro é só um conhecido que está tentando acalmar a situação. Os braços agressivos servem para suprir a necessidade do tio de mostrar raiva.

— Agora o rapaz está dizendo que a menina por quem está apaixonado não é cristã, e sim os pais dela. E que a menina vai se converter ao islamismo. Se bem que pelo amor que sente o rapaz faria qualquer coisa, submetendo-me mesmo ao homem crucificado.

Jean Marie retorna e Mohamed, em poucas palavras o põe a par do que acontece. Tirthankar Chanda sugere que partamos para evitar confrontos. Apesar de Tunis estar longe de Nova Iorque e Iraque e Afeganistão, radicais existem por todos os lados.

Eu me considero um exilado porque toda a minha família é de Maurício. Há várias gerações, somos nutridos com o folclore, a cozinha, as lendas e a cultura mauricianos. Essa cultura é muito mesclada, onde se misturam a Índia, a África e a Europa. Nasci e fui criado na França com essa cultura. Cresci dizendo a mim mesmo que havia um outro lugar que era a minha verdadeira pátria. Um dia eu irei para lá e saberei o que é. Na França, eu sempre me considerei, portanto, um pouco como uma “peça trazida”. Em compensação, gosto muito da língua francesa, que talvez seja o meu verdadeiro país!

O tio perde a calma e acerta um forte tapa no rosto do rapaz, fazendo-o cair da cadeira e ao tentar levantar leva outro tapa e mais outro até que é lançado para fora do café. Em nenhum momento o rapaz faz movimentos para proteger-se ou reagir, pelo contrário, do mesmo modo que suportou a brasa do cigarro queimando seus dedos ele agüenta a surra. As pessoas que passam não prestam atenção ao que acontece, simplesmente desviando. Os garotos que voltam da escola e querem parar são empurrados por pessoas mais velhas e repreendidos por policiais. Uma mulher desvia do trânsito, montada em um dromedário e uma garota de treze anos atravessa a rua correndo e protege o jovem com o próprio corpo.

Não sei quanto ao prêmio Nobel, mas sei o que gostaria de falar publicamente. Eu gostaria de falar da guerra que mata as crianças. Essa é, para mim, a coisa mais terrível de nossa época. A literatura também é um meio de lembrar essa tragédia e de colocá-la em evidência. Em Paris, colocaram recentemente véus nas estátuas de mulheres para denunciar o fato de, no Afeganistão, a liberdade das mulheres ser negada. Isso é bom. Deveriam também marcar todas as estátuas de crianças com uma grande mancha vermelha no lugar do coração para lembrar que, a cada instante, em algum lugar da Palestina, da América Latina e da África, uma criança é morta a bala. Nunca se fala disso!

Mohamed pega os figos que ficaram no prato e guarda-os no bolso do paletó e sai do bar pedindo para que eu não interfira, pois é assunto de família. Jean Marie me acompanha sem mostrar exaltação até que se aproxima do amigo do tio e fala algo em seu ouvido antes que o garoto continue o trajeto de seu punho que espera no ar a chance de vingar-se das agressões sofridas pela menina. O amigo corre até o tio e fala baixinho e ambos olham para a mão do jovem e viram as costas e vão embora cortando a multidão que nunca parou. A menina olha para o garoto com extrema ternura e pergunta algo sem obter resposta. Mohamed explica que o orgulho do rapaz foi ferido no momento em que a menina colocou seu corpo na frente dos golpes do tio. A menina chora gritando que não foi sua intenção duvidar da masculinidade do rapaz.

A família Le Clézio é originária do Morbihan, na Bretanha. Por ocasião da Revolução, um de meus antepassados, que se recusara a entrar no exército revolucionário quando solicitado a cortar os cabelos longos, teve que fugir da França. Ele embarcou com toda a família num navio que se chamava Le Courrier des Indes (O Correio das Índias), com a intenção de ir para a Índia. Mas, quando o navio fez escala em Maurício, ele desceu, pois sua mulher era oriunda da ilha, onde ainda tinha família. O ramo mauriciano Le Clézio origina-se nesse antepassado aventureiro e rebelde. Aliás, ele é o herói de um de meus romances. Escrevi a história de sua instalação em Maurício. Sinto-me próximo desse homem que se exilou no outro lado do mundo para fugir de alguma coisa. Tenho a impressão de compreendê-lo.

Wilson Hideki Sagae

É escritor.

Rascunho