Em torno da subliteratura

A curta e longa vida dos romances policias; e as loucas viagens da ficção científica
01/12/2003

Tereza, minha mulher, está francamente assustada porque de uma hora para outra comecei a reler os livros mais velhos da minha biblioteca. Comentei sobre essa súbita compulsão aqui mesmo no Rascunho, tempos atrás. Mas não falo agora dos clássicos da literatura simbolista. Essa onda já passou. Refiro-me à subliteratura que eu li na adolescência, estou falando dos romances policiais — autores prediletos: Conan Doyle e Agatha Christie — e também dos de ficção científica — Ray Bradbury e Isaac Asimov —, que foram o meu deleite no passado.

Para a minha tristeza, muitos dos livros que li com imenso prazer já não estão mais comigo. Quando decidi abraçar para valer a literatura séria, a alta literatura, imediatamente me livrei de todos os livros que julguei, na época, não estarem à altura das minhas ambições intelectuais. Só Zeus sabe como hoje me arrependo desse expurgo esnobe e, por isso, idiota. Dessa época votada ao simples prazer de se ler boas histórias contadas com a máxima perfeição, sobraram aqui em casa só dois livros: A mulher do mágico, de James M. Cain, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.

É claro que o romance do Huxley, hoje vejo, é grande demais para ser enquadrado na categoria de subliteratura. De qualquer maneira, como não me sobrou nada do Bradbury ou do Asimov ou do Arthur C. Clarke, é dele que vou falar. As ruminações que se seguem tentam resgatar certo sabor, certo aroma, certo brilho pego de relance, do passado perdido entre as flores da literatura de massas.

A mulher do mágico
Os romances policiais envelhecem muito rápido. Principalmente os que têm sua força concentrada mais no aspecto policialesco do que no romanesco. É por isso que raras vezes, na história da literatura, uma narrativa policial chegou a atingir o patamar das grandes obras. Edgar Allan Poe, o inaugurador do gênero, conseguiu tal feito, com Os crimes da rua Morgue, O mistério de Marie Roget e A carta roubada. Dostoievski também, com Crime e castigo, e William Faulkner, com Santuário (apesar de que já há quem, talvez por preconceito, se recuse a incluir estes clássicos no rol dos romances policiais).

As narrativas de Raymond Chandler, Dashiel Hammett e James Cain estão para as de Poe e Dostoievski assim como um bom sanduíche está para um prato refinado. A comparação é infame, reconheço, mas dá a deixa para que eu me aproxime da equação que estrutura A mulher do mágico, romance de Cain, publicado em 1965. O binômio violência e sexo, articulado à exaustão pela hard boiled, reputada escola da literatura policial, é agora substituído pelo binômio carne e sexo.

Clay Lockwood e Sally Alexis, protagonistas do romance, se conhecem em um restaurante. Ele é um bem-sucedido executivo da Grant, megaempresa que beneficia e comercializa carne; ela, supervisora das garçonetes do restaurante O Pórtico, um dos clientes da Grant. Logo no primeiro contato tem início o jogo de sedução. Clay é solteiro, economicamente estável e sexualmente agressivo. Sally também esbanja sex-appeal, mas é casada com nada mais nada menos do que o Grande Alexis, mágico de um clube noturno, filho de um multimilionário e, é claro, herdeiro de sua fortuna. Até aqui, nada de mais. São os limites traçados pelo autor para que a trama possa deslanchar. É claro que haverá um crime ou dois. É claro que haverá traições e surpreendentes reviravoltas. Afinal essas não são as bases de toda literatura policial?

Forma fixa
Uma boa história policial tem que seguir uma receita mais ou menos fixa e respeitar algumas regras. François Fosca, estudioso do gênero, estabeleceu as seis regras básicas aplicadas por Poe (elas são citadas n’O mundo emocionante do romance policial, de Paulo de Medeiros e Albuquerque, da editora Francisco Alves). O talento do romancista está em tirar o máximo partido dessa forma fixa. E James Cain é, sem sombra de dúvida, um dos mais talentosos, fato atestado pelo sucesso de livros como O destino bate à sua porta e O instituto.

As obras de Cain seguem quase sempre o mesmo planejamento: um homem se apaixona por uma mulher, envolve-se com ela em um crime e acaba traído por ela. N’A mulher do mágico, livro datado por natureza — como são datadas as obras-primas mais recentes de Alfred Hitchcock, com seus cenários, guarda-roupa e expressões idiomáticas tipicamente dos anos 70 —, foi empregado o mesmo esquema. Nesse livro o leitor médio, que procura algumas horas de bom entretenimento, encontrará uma trama sedutora e engenhosa, e o leitor sofisticado, tudo isso e mais uma prosa concisa e elegante. O american way of life está todo nele, principalmente o da aristocracia e o da alta burguesia, com sua pomposa justaposição de vinhos importados, jantares no iate-clube, telas impressionistas e sonatas de Beethoven.

James Cain é um autor consciencioso, que enreda o leitor com a rapidez e o cuidado de um prestidigitador. Tanto Clay quanto Sally, agora juntos, não são personagens esquematizadas, com obsessões que vão sendo postas em prática de maneira lógica e programada. É o impulso erótico que os move, por isso agem o tempo todo de forma inesperada e intempestiva. Além disso, sexo e dinheiro sempre andam juntos. Para botarem as mãos na fortuna de Alexis, é necessário antes que o pai do mágico saia de cena. Outro mérito de Cain: a primeira morte, a do velho rico, só acontece 120 páginas depois de iniciado o romance, pois até então o que tivemos foram os lances sinuosos de sedução, para que Clay, Sally e o leitor estivessem devidamente preparados para cometer e sofrer com os crimes que se seguiriam. A perdição de Clay são as mulheres que o cercam e a constatação de que apenas vendendo carne não conseguirá satisfazê-las. Por isso não vacila em pôr em risco sua vida estável, praticando um assassinato. Ou melhor, vacila. Mas duas outras figuras femininas, a amante do mágico e a mãe de Sally, ambas também sexualmente ativas, se encarregam de mantê-lo enredado. Por essas e por outras, A mulher do mágico é mais uma prova de que, sim, os romances policiais envelhecem muito rápido, mas que delícia revisitar a América provinciana e jovial, por isso fora de moda, dos livros de James Cain.

Admirável mundo novo
Como já disse, passei toda a minha adolescência devorando literatura policial e de ficção científica. Os futurologistas da ciência que mais li foram os americanos e em menor grau os ingleses, principalmente Asimov, Bradbury e Clarke. Não é algo de que me orgulhe, essa monomania. Podia ter feito melhor uso do ócio ilimitado daquela época, gastando-o — também — com prosa mais digna de minhas atuais pretensões literárias. Afinal, a adolescência é também a época ideal para se esbaldar com Cervantes, Sterne e Joyce. Tempo e energia, dois elementos fundamentais nas equações de Einstein, é o que não falta entre os doze e os dezoito anos.

Tudo bem. Não devo me lastimar. Por caminhos tortuosos, uma década depois de ter me deslumbrado com o Fahrenheit 451, do Bradbury, tomei contato com algo não menos deslumbrante, que, seguindo na direção diametralmente oposta, deu a volta no meu simplório universo e me acertou em cheio na nuca. O nome do bólide é O Aleph, e o de seu autor, Borges. Mas, êpa!, sem querer abandonei o território da ficção científica. Aqui, onde acabei de chegar, os robôs, as viagens tripuladas a planetas vizinhos e as civilizações extraterrestres, quando aparecem, são mera desculpa para se tratar de tema muito mais nobre: o ser humano, as desconfianças e os temores que o assolam. De fato, na obra destes dois mestres da fantasia, Bradbury e Borges, quase não há espaço para a reflexão sobre as conquistas da ciência e a evolução tecnológica — estas duas, sim, matéria-prima da ficção científica.

Todavia, partindo do autor d’O país de outubro e rumando ao do Livro dos seres imaginários, antes de chegar em Borges passei obrigatoriamente por George Orwell e Aldous Huxley. Por culpa destes dois ingleses, que tentaram descrever revoluções sociais realmente revolucionárias, sofri horrores. Tanto o sorumbático 1984, do Orwell, quanto o admirável Brave new world, do Huxley, estão no meio do caminho entre a prosa fácil, que se lê submerso no mais puro deleite, do Bradbury, e as narrativas elaboradíssimas, sem saída e sem entrada, como mandalas tibetanas, do Borges.

Alfas, Betas, Gamas, Deltas e Ipsilones
Huxley estabeleceu como pedra fundamental de sua sociedade futura o pioneiro da indústria automobilística e demiurgo do capitalismo, Henry Ford. Nesta quase obra-prima da literatura universal, o autor, ao fazer uso da ironia e da sátira, deixa de adotar o culto cientificista e otimista, de um lado, e a posição pessimista e anticientificista, de outro, para mostrar como a fabricação em série de indivíduos sem individualidade pode conduzir à verdadeira Utopia.

Comunidade, Identidade, Estabilidade, eis o lema inscrito no brasão do Estado Mundial. Aqui, a espécie humana como a conhecemos não existe mais. O perfeito socialismo do futuro é o mais vitorioso dos sistemas, pois nele não há engrenagem fora do lugar nem cidadão insatisfeito. Talvez, em vez de Estabilidade devesse constar Felicidade no tal brasão. Afinal, trata-se de sociedade baseada nesse estado de espírito — “Ó maravilha! Que adoráveis criaturas aqui estão! Como é belo o gênero humano! Ó admirável mundo novo que possui gente assim!” (Shakespeare, A Tempestade, Ato V) — e comandada por uma legião de polichinelos, de verdadeiros clowns. Porém, logo nos damos conta de que os comandados também formam, à semelhança de seus superiores, um bloco coeso e de proporções assustadoras de bobos da corte. No mundo do Grande Ford impera o socialismo estratificado, composto de castas, como na Índia dos brâmanes. Os Alfas, líderes da comunidade, ocupam o topo da pirâmide, cabendo aos Ipsolenes, seres limitados e analfabetos, ficar na base.

Máquina de montar homens
Publicado em 1932, apenas treze anos antes das bombas que dizimaram Hiroshima e Nagasaki, o livro não toca em momento algum no tema da fissão nuclear. Isso seria desnecessário, se tivermos em mente seu objetivo primeiro: mostrar um estado totalitário perfeito, muito mais eficiente do que as ditaduras do passado e até mesmo do que as de sua época, como o bolchevismo, o fascismo e o nazismo, que começavam a tomar conta do mundo. Huxley, no prefácio: “Um estado totalitário realmente eficaz é aquele em que o executivo todo-poderoso, constituído de chefes políticos e de um exército de administradores, controla uma população de escravos que não precisam ser forçados, porque têm amor à servidão”. Trocando em miúdos: “Os mais importantes Projetos Manhattans do futuro serão amplos inquéritos patrocinados pelo governo com a participação de políticos e cientistas, que verificarão o chamado problema da felicidade — em outras palavras, o problema de como fazer o povo amar a servidão”.

Dessa maneira, no Admirável Mundo Novo a somatória de alguns itens fundamentais para a manutenção da ordem — segurança econômica, técnicas de sugestão altamente aperfeiçoadas a fim de se condicionar as crianças, pequenas doses regulares de soma (substituto do álcool e de outros narcóticos, menos prejudicial e mais prazeroso do que a heroína), promiscuidade sexual incentivada pelo sistema e, o mais importante, mecanismos perfeitamente seguros de eugenia, destinados a padronizar o ser humano (o processo consiste no controle da taxa de oxigênio destinada ao embrião; quanto menos oxigênio, mais estúpida a criança, ou seja, um futuro Ipsilone) — torna obsoletos a tortura e os cadáveres como resultados da opressão.

A grande sacada de Huxley foi atrelar suas próprias previsões às de uma figura curiosa do passado. “Por ter vivido num período revolucionário, o Marquês de Sade muito naturalmente fez uso de certa teoria das revoluções a fim de racionalizar seu caráter peculiar de insanidade. Robespierre realizou a espécie mais superficial de revolução, a política. Aprofundando-se um pouco, Babeuf tentou a revolução econômica. Sade considerava-se o apóstolo da revolução verdadeiramente revolucionária, para além da mera política e da simples economia — a revolução individual de homens, mulheres e crianças, cujos corpos doravante se tornariam de propriedade sexual comum a todos e cujas mentes deveriam ser purgadas de todas as decências naturais, de todas as inibições laboriosamente adquiridas da civilização tradicional.” E conclui: “Sade foi um lunático e o objetivo mais ou menos consciente de sua revolução era o caos e a destruição universal. As pessoas que governam o Admirável Mundo Novo podem não ser sensatas (no sentido que se pode chamar de absoluto da palavra); mas não são loucas, e seu fim não é a anarquia, e sim a estabilidade social. É para realizar a estabilidade social que levam a cabo, por meios científicos, a última e pessoal revolução realmente revolucionária”.

Discordo do bom e velho Aldous somente num ponto. As pessoas que atuam nesse sistema equilibradíssimo são mesmo loucas de pedra. E sua insanidade fica exposta quando essa sociedade é visitada por alguém cujo padrão intelectual exógeno, arcaico e passional, entra em choque com o padrão vigente. Como não podia deixar de ser, com a chegada do elemento desagregador — sua presença nenhum habitante desta sociedade sem mácula havia previsto —, o próprio conceito de imaculado é posto em xeque. Ele, o único que conhece de cor passagens inteiras de Shakespeare, vem de fora do Mundo Novo e atende pelo apelido de Selvagem.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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