Parece-me que, quando disse outro dia que a literatura é podre (Mirisola é pus. O cancro é outro, Rascunho, novembro # 43), acabei por ofender pessoas de quem gostava. Não era meu propósito, claro. Nunca é. Mas pelas reações começo também a desconfiar que aqueles que me rodeiam são incapazes de ver o que realmente ocorre ao redor deles. Ou então têm uma atitude meio cínica a respeito das coisas da literatura. E isso é bom. Como é bom!
Ora, se a literatura é podre, ela o é somente porque assim o fazemos (reparem na primeira pessoa do plural). E não apenas como leitores, profissionais ou não. Como prosadores e poetas que somos, elegendo nossos ícones, gastando adjetivos e mais adjetivos para qualificar a obra alheia, acabamos por tornar a literatura podre. Não é trabalho de um homem só. Zeitgeist, para quem nele acredita e o venera.
Tenho extremo respeito pelo Zeitgeist e até ergui um altar em sua homenagem. Menos por admiração e mais por temor. O Zeitgeist não manda no tempo futuro, que é o que me interessa, mas exerce imensa influência sobre o dia-a-dia dos que nele pensam. É ele, o Espírito do Tempo (que nada tem a ver com Profecias Celestinas e que tais), quem sopra bem-aventuranças e maldições sobre os que vivem sobre a Terra em determinado período. Não se pode querer combatê-lo, porque seria o mesmo que travar batalha só e desarmado contra o exército da vez. Há que se aceitá-lo. E, com resignação, acreditar na sua finitude.
Pode parecer que falo em parábolas, como um destes profetinhas que você certamente já leu. Mas é só impressão e má-vontade sua, leitor.
Só o Zeitgeist é capaz de me explicar a ascensão e queda de um livro como Meu pé de laranja lima, de José Mauro de Vasconcelos, que em 2003 saiu do prelo da Editora Melhoramentos em sua 100ª edição. O caso deste livro ilustra bem o que quis dizer nos parágrafos acima, sobre podridão, alguma benevolência, finitude e eternidade.
Quando foi lançado, na década de 60, Meu pé de laranja lima foi um sucesso surpreendente. A história do pequeno Zezé, que descobre a amizade e a dor em meio à miséria, cativou boa parte dos leitores-mirins daquele tempo. Mesmo leitores ávidos de Monteiro Lobato se curvaram a José Mauro e seu personagem cheio de lirismo e pieguice. Por quê? É o que pretendo explicar neste texto.
Para quem não leu, informo que Meu pé de laranja lima conta a história de Zezé, um menino traquinas que vive no subúrbio do Rio de Janeiro. Sua família não é miserável, mas chega perto. Seu pai está desempregado e é a mãe quem sustenta a casa. Zezé não faz outra coisa que não travessuras próprias da sua idade. Mas ele tem dois dons para os quais os da sua casa ainda não atentaram: imaginação e sensibilidade.
O primeiro é visto como algo próprio da idade, que passa com o tempo, graças a Deus! É graças à imaginação que Zezé acaba por fazer amizade com um pé de laranja lima que há nos fundos da casa nova. É sob seus galhos que o pequeno desabafa suas dores infantis, que não são poucas. Vale destacar ainda, neste universo imaginoso, a figura de Luciano, o morcego.
Já a sensibilidade faz dele um sofredor. Em casa de pobre não há espaço para o que chama de “frescuras”. Como sofre o pequeno Zezé e como sofrem os leitores de Meu pé de laranja lima com a indiferença familiar para o que, para nós, é evidente: trata-se de um artista em potencial.
O livro tem um ponto de ruptura, que é a amizade que se estabelece entre Zezé e o Portuga, um velho rico e solitário. Contar mais seria tirar do leitor a possibilidade do choro e, por conseqüência, da admiração da pieguice. Não convém.
Durante anos os críticos bateram nas mesmas teclas quando se referiam ao Meu pé de laranja lima: é piegas e é inferior a Monteiro Lobato, para crianças. Eu acrescentaria ainda mais um dado nesta análise que, no mais, é superficial e não leva em conta nuances subjetivas: tem palavrão. Pode ser bom um livro para crianças que tem palavrão?
Engraçado como a “Grande Crítica Brasileira” se esqueceu, ao longo do tempo, de levar em conta a subjetividade. À medida que quis se tornar mais objetiva e, por extensão, mais exata em suas considerações, simplesmente se esqueceu de que por detrás de um livro existe um leitor. Com seus Bakhtins em punho, os críticos saíram por aí condenando a pieguice ao ostracismo, como se dela não se tirasse nada mais do que choros vazios de real emoção.
Tenho cá para mim — e só porque sou fã deste tipo de especulação fantástica — que na verdade os críticos da década de 60 (e os de hoje também, como não?) queriam leitores conscientes de suas funções na sociedade, atentos para as diferenças de classes, para os porões da ditadura e para as mazelas do povo brasileiro. Logo, qualquer coisa que fugisse da cartilha, neste sentido, não teria razão de ser.
Se você, leitor, não percebeu a brincadeira do parágrafo anterior, melhor parar por aqui. Entre a gente não há senão uma barreira.
Sempre há uma cartilha, não é mesmo? Sempre é preciso rezar uma ladainha para agradar ao santo da vez. Isso me impressiona, sobretudo porque a literatura é vista como algo iconoclasta e, não raro, rebelde. Mas há um método até mesmo na rebeldia. E um método que visa à consagração daquilo que num primeiro momento é subversivo em status quo. O destino de todo discurso supostamente de vanguarda é se tornar reacionário num futuro próximo. Não há visionário que não queira ser o profeta de seu tempo.
José Mauro de Vasconcelos não rezou pela cartilha. Como também não devem ter rezado os milhões de leitores de Meu pé de laranja lima, que buscaram na história de Zezé um pouco de dor mais palpável e, que me perdoem a sinceridade, mais importante do que aquela que era cantada nas ruas. Sorte deles.
Dor é uma palavra cara. Talvez porque rime com amor nos piores poemas do mundo. Dor tampouco é algo que se deva ensinar às crianças. E é justamente o que Zé Mauro de Vasconcelos faz. Daí certa ojeriza por esta que é sua obra-prima: trata de dor e de uma dor simples, para crianças. Adultos estabelecidos intelectualmente em suas cátedras ou nas desconfortáveis cadeiras das redações de jornais não se permitem sentir dor por algo menor, como é o suplício de Zezé.
Vale a pena ressaltar para o leitor que não tenha lido Meu pé de laranja lima que não se trata de uma dor como a que lemos recentemente no chamado “romance-favela”. Não há violência na dor de Zezé, não há traficantes no cenário de José Mauro, não há hostilidade na pobreza da família, nem há planos mirabolantes de assaltos frustrados nem tampouco retratos sócio-econômicos da família brasileira. Meu pé de laranja lima nada tem a ver com livros de exaltação da marginália por discutível senso de heroísmo.
Há algumas semanas, já sabendo que iria escrever este texto, perguntei a alguns leitores de Meu pé de laranja lima, hoje todos adultos, sobre suas impressões a respeito do livro. A dor e o choro foram unânimes, como eu previa. Perguntava, então, a eles, sobre o impacto desta dor e choro na infância. Não me surpreendi com as respostas.
Incrível perceber como José Mauro criou uma geração de pequenos leitores sob o signo do sofrimento. Um sofrimento legítimo, daquele tipo que os poetas românticos buscavam. Um sofrimento que é perseguido sem nenhum sucesso (e sem perspectiva de) pela geração que por ora canta os problema do tédio e da violência na cidade grande. Por ser legítimo, não é de se surpreender com a abrangência e eficácia do sofrimento pelo escritor descrito. Não leva ninguém ao suicídio, não mobiliza as massas para um levante popular, nem evidencia a falta de sentido na vida ou qualquer bobagem destas. É simplesmente um sofrimento que marca.
Minha experiência no que diz respeito à releitura de Meu pé de laranja lima, num sábado de sol, é exemplo típico disso. Leitor ávido de todo tipo de literatura, desde peças gregas, passando pelos inevitáveis Shakespeare e Cervantes, os românticos do século 19, a felizinha década de 20, os existencialistas, os utópicos, os pós-modernos e os revoltadinhos beatniks de ontem e de hoje, achei que não iria chorar. A literatura, por sua podridão, havia me secado para o que há de mais evidente na arte: a emoção. Qual o quê! Durou pouco mais de 100 páginas a minha geleira. Depois disso, liguei-me a um momento eternizado nas profundezas do ser, lá onde esta literatura podre de hoje não alcança, simplesmente não alcança, porque não é forte nem sincera o bastante. E compreendi algo que havia soterrado sob o sem-número de palavras que meus olhos percorreram na última década em busca de algo que se aproximasse da Verdade: é na dor que reside a verdadeira arte, aquela que transita soberana pelo tempo. Pode ser uma “alta dor”, daquelas que só se sinta diante de uma Missa de Bach. Mas também pode ser uma dor mais rasteira, piegas mesmo, destas que se sente lendo Meu pé de laranja lima.
E a pieguice?, você quer saber. A pieguice está lá, página após página em Meu pé de laranja lima, nos movendo em direção à dor. Ouvidos treinados de bom leitor por vezes doerão: ressonâncias, chiados, aliterações despropositadas, ecos — tudo isso você encontrará. Sem contar os inúmeros lugares-comuns, muitos dos quais repetidos no texto que agora escrevo. Ora, mas isso tudo a gente também encontra na literatura seca que se produz hoje em dia, seja em verso ou em prosa, e ninguém (quase ninguém; eu digo) diz nada, porque é bonito perceber ruídos na literatura contemporânea. Com a agravante de que esta literatura que se produz hoje, com os mesmos chavões e defeitos lingüísticos, não causa a dor.
Por mais defeitos que Meu pé de laranja lima possa ter — e ele os têm aos montes —, algo que não pode passar despercebido ao olho do leitor crítico é sua capacidade de atingir o leitor, de feri-lo mesmo no que ele tem de mais frágil, de ligá-lo a mágoas profundas, ocultadas por anos e anos de sublimações necessárias à sobrevivência. José Mauro pode não ser um Monteiro Lobato ou, para usar um nome mais atual, um Pedro Bandeira, mas não é inócuo. Sua pieguice tem um propósito. E é nela que reside a qualidade maior do livro: honestidade.
Complicado falar de honestidade, porque é algo difícil de se detectar objetivamente. E, como sabem os que me lêem, vivemos num mundo que prega conceitos objetivos o tempo todo. Para o leitor, fica difícil dizer que um texto é honesto ou desonesto, porque esta é uma constatação que está no éter. Sim, no éter. Muitas vezes o texto é redondo, a idéia está bem encaixada e tudo, mas há a desonestidade. Da qual nenhum leitor pode jamais se furtar, correndo o perigo de se tornar cúmplice. José Mauro de Vasconcelos é piegas, mas sua pieguice é honesta. E é nesta honestidade que reside a força do texto, que se transforma em dor e que acaba por anular todos os percalços lingüísticos do texto.
Ao término do livro, seja que livro for, honesto ou desonesto, objetivo ou piegas, moderno ou antiquado, lá está ele: grave, meticuloso, cheio de meandros, mimado e nada condescendente: o Zeitgeist. Também ao final de Meu pé de laranja lima está o Espírito do Tempo, que não manda no todo, e sim naquilo que para nós é compreensível e palpável: uma época, uma geração. Há quem se submeta e, por isso, viva restrito a um par de anos, de lustros. Por outro lado, há quem conspire e, seja no subterrâneo, seja muito acima da cabeça dos homens, consiga ver além no tempo.
Os que se submetem geralmente escrevem em jornais. Os outros, não.