A astúcia teórica

Resenha do livro "O redemunho do horror: as margens do Ocidente", de Luiz Costa Lima
Luiz Costa Lima, autor de “O redemunho do horror: as margens do Ocidente”
01/01/2004

A um cuidadoso trato editorial, sob a direção de Paulo Roberto Pires, jornalista e tradutor, alinha-se, uma vez mais, o rigor teórico de Luiz Costa Lima que, de modo inquestionável, conquistou, obra a obra, um lugar próprio na territorialidade do pensar, capaz de resistir a forças da ruína impostas por modelitos de ocasião, tão ruidosos e brilhantes quanto enganosos e fugazes. Em respeito à natureza da publicação, faz-se imperioso que a resenha se atenha a duas angulações: uma centrada no livro em si; outra relacionada com o conjunto da obra do autor.

O pensamento como projeto inventivo
A exemplo de obras anteriores, a presença da astúcia reflexiva vem anunciada já no título. Assim, por ele, a compreensão da obra deve iniciar. Há, no título, forte apelo, oriundo do impacto da palavra “horror”, principalmente levando-se em conta o cenário com o qual se exibe o tempo presente. A princípio, mesmo o leitor um tanto familiarizado com a obra do autor, pode sentir-se tocado por certo espanto, ante a suspeita de o teórico, num surto de desvio emocional, haver descambado para um tipo de tematização, à altura de desfigurar toda uma trajetória de disciplina metodológica, em parceria com invejável inventividade. Logo, no entanto, o possível susto inicial se retrai, frente à observação do que precede o “horror”: “redemunho”.

A escolha por uma variante menos usual (redemoinho/remoinho) serve de senha para indicar que o olhar equilibrado e cirúrgico com o qual Costa Lima empreende mais um alentado esforço de reflexão, na tentativa de compreender as tensões que envolvem a ficção e a história, elege o “redemunho” e não o “horror” como foco prioritário. Assim, cabe, ao leitor atento, reavivar o que efetivamente significa “redemunho”, variante de uso exclusivo na língua portuguesa do Brasil.

Qualquer dicionário registrará, pelo menos, dois significados: 1) “movimento em círculo causado pelo cruzamento de ondas ou ventos contrários”; 2) “movimento circular e forte, de pequeno diâmetro, que se processa em espiral, da superfície para o fundo das águas de um rio”. Comparando-se ambos, deduz-se que o segundo sentido é o mais ajustado às pretensões que resultam no livro em questão. Sob esse aspecto, o leitor incauto terá todas as razões para sentir-se lesado, ante o fato de, ao longo das 425 páginas de texto, não encontrar nada que lhe contemple eventual ou neurótica expectativa de relatos, episódios ou descrições de ocorrências catastróficas, traço, em tempos atuais, tão ofertados quanto consumidos por larga margem de público. Não, o “horror” flagrado pelo autor é aquele que, em sentido contrário, se oculta intestinamente por entre as redes da história.

Sob o efeito do “redemunho”, o “horror” é disfarçado, diluído e misturado nos incessantes movimentos circulares engendrados pelo processo histórico que, triturados pela velocidade giratória de um liquidificador, produzem uma espécie de líquido pastoso no qual não mais se identifica o horror praticado: o “crime” histórico se torna ascético. É esta a face que Costa Lima tematiza. Os contornos do horror ficam claros quando se unem duas sentenças formuladas pelo autor: 1) “O horror moderno, aqui visto em sua aurora nebulosa, depende da pretensa universalidade de uma idéia” (p. 131); 2) “As culturas são vasos fechados. O aculturado é a prova da impossibilidade de passagem” (p. 172).

O que impulsiona o pensar do teórico é perceber os procedimentos ficcionais construídos por escritores cujas obras eles as escreveram ou na condição de representantes do modelo colonizador em terras colonizadas, ou, em situação inversa, na perspectiva de um olhar do colonizado, sob conflitivos paradigmas fixados pelo colonizador. Na primeira linhagem, situam-se cronistas como João de Barros, Diogo do Couto e Fernão Mendes Pinto. Neles se prefiguram os textos de fundação do “olhar lusitano” voltado para as auspiciosas e exóticas regiões do Oriente e África. Na segunda, perfilam-se Joseph Conrad, o escritor polonês que migra para a Inglaterra, William Henry Hudson, filho de ingleses, nascido na Argentina. Por fim, fecham a galeria os ficcionistas Alejo Carpentier e Gabriel García Márquez. Daí decorrem “as margens do Ocidente”, atando as pontas no arco dos tempos: do século 16 ao 20. Assim, o livro é composto, oferecendo ao leitor a possibilidade de, pela ficção tratada como “jogo de simulações” em que a “verdade” da História cede à força das fabulações, o autor, com a rentável perspicácia do conhecimento, possa esgarçar a tessitura das obras, vendo-as portadoras de um ardiloso embate entre o verossímil e a imaginação. Nelas, Costa Lima desvenda o “horror” metamórfico e prismático, a partir de um movimento (redemunho) com o qual o Ocidente construiu a estratégia da modernidade. Em síntese, o horror é o redemunho.

O livro no conjunto da obra
A despeito da unicidade decorrente da costura dos capítulos, o livro, objeto da resenha, adquire significado ainda mais amplo, se remetido for ao projeto maior do autor. Quer-se, pois, afirmar que a recente publicação permite vislumbrar um “andar” a mais na “edificação” teórico-crítica que Costa Lima começa a erigir, de modo explícito, no limiar dos anos 80, ocasião na qual já acumulava a publicação de cinco livros.

A partir da época mencionada, salvo qualquer juízo equivocado, o autor esboça a abertura de linhas de abordagem teórica: 1) a preocupação com os processos de representação — Mímesis; 2) a análise das estratégias de veto — poder. A primeira é inaugurada por Mímesis e modernidade: formas das sombras (1980). A segunda é iniciada por O controle do imaginário: razão e imaginação nos tempos modernos (1984). As duas linhas condutoras da construção teórica não são regidas por tensão dialética e sim por um diálogo complementar que, segundo parece, Costa Lima foi alternando. Desse movimento pendular, originam-se outras obras. À primeira matriz somam-se: Os limites da voz (1993), Vida e mímesis (1995) e Mímesis: desafio ao pensamento (2000). À segunda matriz, agregam-se: Sociedade e discurso ficcional (1986), O fingidor e o censor: no ancien régime, no iluminismo e hoje (1988), além dos dois primeiros capítulos de A aguarrás do tempo (1989). Outras publicações intercaladas gravitam em torno do projeto teórico-crítico, como “satélites” do pensamento central em que se alocam as duas matrizes, cujo eixo situa a relação entre mímesis e poder.

A breve configuração proposta tem por objetivo arriscar a seguinte avaliação: a escrita de O redemunho do horror bem se alinha como “obra-síntese” das duas matrizes que, desta feita, Costa Lima esquadrinha, valendo-se de escritores estrangeiros, a exemplo do que, em relação ao Brasil, o mesmo autor fizera com Terra ignota: a construção de Os sertões (1997), no tocante ao ponto de vista do olhar de Euclides da Cunha, como representante colonizado pelo modelo instalado no Brasil, desde as raízes coloniais, e membro do poder-governo, originado da recente República. Igualmente a esse fim, destinam-se alguns ensaios reunidos em Pensando nos trópicos (1991).

Enfim, O redemunho… continua a fidelidade de um teórico que faz da originalidade de sua investigação a ratificação de uma atitude intelectual a ignorar concessões, demonstrando que, abaixo da linha do Equador, o pensamento ativo e criativo sobrevive.

O redemunho do horror: as margens do Ocidente
Luiz Costa Lima
Planeta
455 págs.
Ivo Lucchesi

É doutor em Teoria Literária pela UFRJ e professor do curso de Comunicação da FACHA – RJ.

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