A travessia de Deonísio

Conto de Henrique Schneider
Henrique Schneider: a narrativa se dá, também, por meio de reconstituições.
01/01/2004

Deonísio esperou até que o pai e a mãe dormissem. Quando não escutou mais nada no quarto contíguo a não ser o ressonar entrecortado do pai, calçou os sapatos com todo o vagar e silêncio possíveis. Depois, levantou-se da cama onde ainda havia pouco deitara inteiramente vestido, e estava pronto. Abriu com cuidado a porta de seu quarto e afastou-se como se os seus treze anos não pesassem nada. Hesitou um instante quando chegou à porta da frente, mas não mais do que isso; não fosse hoje e não teria como encarar os colegas amanhã.

A noite grande bateu fria em seu peito imberbe e ele chegou a pensar num casaco para a madrugada, mas desistiu: se voltasse, talvez os pais ouvissem, talvez o irmão acordasse, talvez percebesse o tremor que lhe embalava as pernas, talvez. Assim, saiu para a noite com a coragem resoluta de sua ainda infância, percorrendo com pressa as ruas dormentes da cidade, os longos quarteirões planos que o ligavam ao destino. Andava pelo meio da rua, sob a luz benfazeja dos postes, porque as sombras eram mais sombras naquela hora e porque, se a coragem era basta para a decisão, não era de muita sobra para o caminho.

Andou quase meia hora, seguindo o mapa verbal que os colegas lhe haviam indicado, ouvindo e se assustando com todos os barulhos que a noite traz e percebendo a distância que aumentava, inelutável, entre um poste e outro, até estes se acabarem e darem lugar a um caminho iluminado apenas pelo clarão da lua crescente.

“Quando se acabarem os postes, anda mais cem metros. É uma casa amarela” — ensinara Carlos, o colega mais próximo, aquele que melhor lhe compreendia a solidão. — “É só bater na porta” — completara.

Deonísio não tardou a perceber a casinha e, mesmo na pequena claridade da noite, pode entender que o amarelo da parede era descascado de anos, sujo como algo que envelhecera sem cuidado, uma cor triste que as tintas do dia só tornariam mais feia. Lá dentro, pelas frinchas grossas da janela, podia-se entrever uma luz escura, embaçada. Parou em frente à porta e, apenas quando sentiu o coração batendo por todo o corpo, é que se apercebeu que o suor que lhe enchia as mãos não era feito da pressa.

Bateu na porta antes que o medo redivivo o lembrasse que tinha apenas treze anos e esperou. Demorou quase nada e ela foi aberta por uma mulher de camisola e um chambre barato de algodão, destes que se vestem e tiram com facilidade.

“Deonísio?” — perguntou ela.

“Sim” — ele respondeu, a voz lutando para ser adulta.

“Entra. Eu já te esperava. O Carlos me avisou.”

O garoto entrou e não sabia o que fazer com o corpo dentro daquela casa pobre e de poucas peças. A mulher percebeu sua inquietude — quantos iguais, em quantas noites parecidas — e chamou-o para o quartinho ao lado, onde uma cortina floreada fazia às vezes de porta. Ele seguiu-a pisando de leve no assoalho irregular e indagando-se, alarmado, se o suor do caminho não se transformaria em mau cheiro quanto tirasse os sapatos.

“Tira os sapatos” — a mulher ordenou. Não era bonita, nem feia, e aos olhos de Deonísio, teria uma idade incalculável. Talvez fosse um pouco mais velha que sua mãe, pensou com uma ponta de vergonha. Sentou-se na cama e sentiu as saliências do colchão de crina de cavalo, mais fundo no meio, barco curto e largo a navegar nas águas que ele agora descobriria.

Tirou os sapatos e aspirou fundo; dos pés vinha o cheiro dos seus treze anos, mas nada impossível de agüentar, pensou. Além disso, o quarto possuía os seus próprios cheiros, misturas de homens e móveis velhos, escuridões e tristezas. Estava com os sapatos na mão, sentado na beira da cama com seu desconforto juvenil, quando a mulher aproximou-se sorrindo.

“Vamos ver se tu és bem machinho, mesmo. O Carlos me disse que levas jeito para a coisa” — e riu, quase alto.

Mentira. Dizia isso apenas para encorajá-lo, secá-lo deste suor novo e desconhecido. Nem Carlos e nem ninguém diria tal coisa. Ele, o solitário do colégio, o garoto estranho que preferia os livros ao futebol. A mulher só falava para agradá-lo.

E tentando agradá-lo ela lhe trouxe a proximidade das carnes e pôs-se a despi-lo com a desenvoltura de tantos anos. Desabotoou a camisa branca do garoto e alisou-lhe o peito magro, como se pusesse a mão sobre um tesouro raro. Quando ela abriu os botões das calças, Deonísio estremeceu num quase medo e sentiu o volume impetuoso que crescia por baixo do tecido. Depois, relaxou: cruzara a noite para isso, e o tremor era apenas um bom prenúncio.

A mulher dobrou as calças e colocou-as sobre as costas de uma cadeira; depois, alarme súbito, tornou ao garoto:

“Trouxe o dinheiro?” — perguntou.

Deonísio levantou-se da cama, tomado do mesmo susto, e procurou no bolso das calças dobradas. Tirou do bolso uma resma de notas úmidas e estendeu-as à mulher.

“Aqui.”

Ela contou-as sem pressa, ante os olhos trêmulos do novo cliente; quando terminou, largou o dinheiro num criado mudo onde também guardava o pente, um espelhinho e uma caneca de louça cheia de água.

“Agora, sim” — disse ela, e Deonísio não conseguiu evitar um certo desconforto. Depois, com movimentos estudados, tirou o chambre e a camisola e um corpo branco e excessivo abriu-se aos olhos maravilhados do garoto, jardim de delícias a serem descobertas, e deitou-se na cama ordinária.

“Vem descobrir o céu, menino.”

E ele foi. Aninhou-se ao lado da mulher, tremendo de ansiedade, enquanto ela, professora, já começava a guiar as vontades de seu corpo. Deonísio sentia aquele calor que provinha dela e dele e, pela primeira vez em toda a noite, estava inteiramente tranqüilo. Foi quando ambos ouviram a voz minúscula por trás da cortina floreada.

“Mãe.”

A mulher parou um instante e mandou que Deonísio também parasse.

“Que foi, filho?”

Uma cabecinha de sete ou oito anos surgiu na cortina, os olhos quase maiores que o rosto.

“A dor de barriga não passou.”

“Espera um pouquinho” — respondeu a mulher. E depois, para Deonísio:

“Espera um pouquinho.” Levantou-se e vestiu o chambre, enquanto o menino aguardava teso e mudo na porta do quartinho, olhos fixos em Deonísio. Ela pegou o pequeno pela mão e ambos desapareceram em direção à outra peça, deixando Deonísio sozinho e de volta à infância.

Pouco depois, ela voltou.

“Dei um chá e fiz uma massagem na barriga dele. Agora, está dormindo” — respondeu, como se precisasse justificar-se. — “Manha de criança.”

Tirou o roupão outra vez, reacendendo com sua claridade o calor do corpo de Deonísio, e entrou na cama. Pouco antes de quitar-lhe em definitivo a infância, apenas pediu num sussurro:

“Não geme alto, pra não acordar de novo o menino.”

***

Na manhã seguinte, na escola, Deonísio era outro em sua mesma solidão. Não contou aos colegas da sua noite passada. Nem poderia: ao mesmo tempo em que preferia guardar para si o brilho do instante em que deixara a infância, nenhuma palavra haveria para explicar o fulgor no olhar daquele garoto desconhecido..

Henrique Schneider

Nasceu em 1963, em Novo Hamburgo (RS). É autor das novelas Pedro BruxoO grito dos mudosA segunda pessoa e Contramão. Também integrou as coletâneas Antologia universitáriaCaio de amoresO livro dos homensPorto Alegre — curvas e prazeres e Os cem menores contos brasileiros do século.

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