Acanhado retrato

Carlos Nascimento Silva pisa no freio ao percorrer “a natureza do mal”
Carlos Nascimento Silva guarda para o fim uma grande maldade
01/02/2004

É difícil falar de maldade nos dias de hoje. Afinal, há uma banalidade na violência que nos faz crer que já atingimos o mal absoluto. Mas nem sempre violência quer dizer maldade. O Mal, aquele com “m” maiúsculo, o opositor do Bem, também em maiúscula, é mais transcendental que a mera efemeridade do corpo físico.

Maldade mesmo é enfiar dois aviões em dois dos mais altos prédios de seu próprio país para justificar um mandato conseguido de formas escusas, sem apoio popular, e de quebra arranjar uma justificativa para criar umas guerras mundo afora para reativar a economia. Isso, claro, se o Michael Moore (autor de Stupid white Men — uma nação de idiotas) estiver correto sobre George W. Bush e sua caterva.

Maldade mesmo é querer ver a mãe morta, de preferência sofrendo, e estar ao lado dela fingindo-se comovido, e ao mesmo tempo pisando no tubo que leva soro a ela. Maldade é comer a irmã no dia do casamento dela, e contar para o futuro cunhado. Maldade é queimar rabo de gato. Aos 33 anos. Você e o gato (se é que gato chega a ter essa idade). E mesmo assim, não estamos falando tudo.

Por isso, ao terminar a leitura de Vale da Soledade — a natureza do mal, último romance de Carlos Nascimento Silva, ficamos um pouco em dúvida com o subtítulo que ele dá a seu trabalho. Faltou, talvez, soltar o freio no mal que habita em todos nós e jogar isso no papel, deixar que os demônios interiores fizessem a festa, sem que o autor tivesse medo da reação. Mas parece que ele pisou no freio.

Concordo que as soluções dadas por Silva são poéticas. Afinal, não são necessárias as descrições de sangue e tripas e espancamentos etc. para dar um retrato do mal. Afinal, às vezes é até melhor não dizer, pois o silêncio fala mais, mais alto e de maneira mais eficaz. Mesmo assim, ficamos esperando um pouco para que a natureza do mal nos seja melhor mostrada. Não, nunca explicada. Não precisamos de explicação para algo que todos temos.

A história de Vale da Soledade gira em torno de Amaro, o segundo filho dos quatro de Severo com Dona Nicolina. O primeiro núcleo narrativo do livro (iria dizer primeira parte, mas as histórias no início vão se entrelaçando, apenas no final se poderia dizer “a última parte”) fala de como Severo fugiu com Dona Nicolina para se casarem, pois sabiam que não teriam a autorização do pai de Nicolina, patriarca de uma tradicional família nordestina. Nessa época estamos na virada do século 19 para o 20.

O segundo núcleo mostra o relacionamento, ou a ausência dele, de Amaro com Severo, e como isso levou à fuga de Amaro da casa paterna, para buscar abrigo na fazenda do Barão. Aí estamos em momentos que antecedem a Primeira Grande Guerra, e o cenário é o Vale da Ribeira no interior paulista, onde foram plantados os primeiros cafezais. Amaro, recolhido pelo Barão, se envolve com as duas filhas de seu protetor, Senhorinha e Neném. Amaro se casa com Senhorinha, enviúva dela, e se casa com Neném. Dizer mais seria estragar o enredo.

O último núcleo se passa no Rio de Janeiro, nos estertores da ditadura Vargas. O café já deu seus últimos suspiros como força econômica. Amaro vai a busca de novos horizontes comerciais e acaba encontrando outras coisas. Novamente, dizer o que acontece é estragar o enredo.

A natureza do mal de que fala Silva é o leitmotiv por trás das ações das personagens de Vale da Soledade. Nenhum deles, apesar da camada de normalidade que cobre cada um, é uma boa pessoa. A rede intrincada de relações que existe entre as diversas famílias mostra que nenhuma ação é gratuita, tampouco espontânea, menos ainda voltada para o bem do outro. Cada um pensa em si, e no seu interesse, e estamos conversados.

Temos nesse instante um momento de reflexo, não de reflexão. Reflexo porque ainda somos em grande parte assim. Não evoluímos o suficiente para abandonar os interesses próprios em prol do outro. E assim nos reconhecemos nos personagens de Silva. O espelho causa estranheza, a princípio, mas à medida que a leitura avança, vamos nos distanciando, pois esperamos que as personagens sejam piores de caráter. E não são. Será que estamos acostumados demais com a crueldade e barbárie do mundo que nos cerca?

Confesso que não entendi outro aspecto do livro. Em alguns trechos, ele se detém em explicar de maneira relativamente detalhada o cenário político brasileiro à época da ação das personagens. Alguns trechos são desnecessariamente detalhados, pois bastaria a menção do tempo, de alguns personagens, que a história viria aos olhos do leitor. Porém, Silva deve ter posto isto de propósito para mostrar que nada na história é movido por nobres motivos. Os grandes discursos são para os livros de história. Mas o real é cruel, malvado e nada bonito. Novamente, se essa foi a relação, não a entendi.

Mas é necessário dizer que Vale da Soledade está acima da média. Silva não busca dar respostas fáceis ao leitor, e consegue deixá-lo preso à trama até o fim do livro, onde é revelada uma grande maldade. Enfim, vemos o que somos. E aí só resta rezar.

Vale da Soledade — a natureza do mal

Carlos Nascimento Silva
Record
274 págs.
Carlos Nascimento Silva
Nasceu em Minas Gerais e foi criado no Rio de Janeiro. É mestre em literatura e professor aposentado da PUC/RJ e UERJ. Em 1995, publicou A Casa da Palma, em 1998, Cabra-cega. O primeiro recebeu o prêmio daquele ano da União Brasileira dos Escritores e o prêmio anual da Associação Paulista dos Críticos de Arte. O segundo ganhou o prêmio Jabuti na categoria romance em 1999, além de ter sido recebido o prêmio de “melhor livro de ficção do ano” da Câmara Brasileira do Livro.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

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