“O mundo precisa do conto”

Quem são os leitores, estes seres em extinção?
Miguel Sanches Neto: amor pelos livros das mais diversas formas
01/02/2004

No meio editorial, só se fala em venda, entronizado que foi o Deus mercado. Tudo bem, também quero vender, ganhar um dinheirinho com meu trabalho, ter o respeito das editoras, pois uma editora só reconhece sua maioridade depois de você ter vendido mais de 10 mil cópias de um título. Tudo isso é legítimo, faz parte do horizonte de expectativas dos autores brasileiros que, depois dos anos 80, perderam, como classe, seu amadorismo e entraram sem medo no mundo do consumo. Esta entrada começou com os relatos memorialísticos dos anos da ditadura (quem não se lembra de um sucesso como Que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira), com os romances semipoliciais, e temos toda a estupenda produção de Rubem Fonseca, e com o novo romance histórico, e aí os exemplos são inúmeros, mas dá para citar Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro. Estavam dadas as condições para o autor nacional ser sucesso de venda aqui e no exterior.

Só que paramos de falar neste conceito antiquado que é o leitor, tema relegado aos debates nas universidades, e isso é mau sinal, pois a universidade brasileira mantém uma relação muito estranha com a literatura autóctone, usando-a como se fosse um adorno caipira, que envergonha seu alto cosmopolitismo. Deixemos a universidade de lado, ela já tem os seus problemas de sobrevivência, e voltemos a esta figura anônima e indispensável que é o leitor. Para uma editora, o leitor aparece apenas nas estatísticas de venda. Para o autor brasileiro, ele nem aparece, ou só aparece raramente.

Escritor que entrava em pânico só de pensar em receber uma crítica negativa e que, por isso, imprimia os próprios livros, distribuindo-os seletivamente para os eleitos, Jamil Snege tinha um carinho muito grande pelos leitores acidentais, que ganhavam o livro de um amigo ou que mandavam encomendá-lo nas duas ou três livrarias em que ele podia ser encontrado. Quando o leitor entrava em contato com ele, o velho turco ficava todo faceiro, mostrava-me as cartas, relatava uma conversa telefônica. “Tenho um leitor em Porto Alegre”, me dizia. Outra frase que ele sempre repetia: “Só por milagre alguém chega a uma livraria e pede um livro da gente”. E sempre festejava este milagre.

Parece que estamos perdendo a alegria de encontrar estes leitores, pois só olhamos os boletins de venda.

Por causa da militância crítica, recebo centenas de livros de todo o Brasil, de autores que querem publicidade. Alguns escrevem pedindo para eu divulgar suas obras. Acabei amigo de vários deles, que passaram a se interessar sinceramente por minha literatura. Mas a maioria vê o crítico como um instrumento publicitário, e estou me afastando destas pessoas que querem aparecer a todo custo.

Muito mais rara é a figura do leitor que procura o autor para comunicar que gostou do livro. Quando acontece isso comigo, faço como Jamil Snege: comemoro, dou toda a atenção, torno-me amigo, seria capaz até de batizar o filho deste leitor tão desinteressado — não vale os que querem que você os leia. Tenho dezenas destes leitores, colecionados em dez anos de escrita, mas gostaria de citar três.

O publicitário Pedro Vianna, que morava em Belo Horizonte, mas hoje está em Manaus, se tornou um grande amigo depois que nos conhecemos pessoalmente. Nascido em Barbacena, menino de sítio, homem de grande caráter, ele se identificou com minha literatura e sempre me escreve, alegrando-se quando sai alguma notícia sobre meu trabalho.

Talvez pela proximidade física, ou simplesmente por reconhecer em meus livros a sua região, acabei tendo uma leitora especial em Campo Mourão, a professora Jussara Maria Camargo, que me acompanha religiosamente no jornal e nos livros. No fim do ano, me mandou deliciosos doces de casca de laranja, que adoçaram um pouco esta solidão a que nos obriga a literatura.

Este mês, ganhei mais um leitor, Wladimir Saldanha, de Salvador, que me mandou uma carta extremamente inteligente sobre meus contos: “Tem-me feito bem o seu livro. Aquele bem que pode fazer a verdadeira literatura, quando nos anima a tirar as lentes baças e enxergar com os olhos. Assim é seu texto, visão sem anteparos”. Suas palavras é que me fazem bem, porque espontâneas e sem outro intuito além de comunicar uma experiência de leitura. Wladimir é de uma generosidade e de uma perspicácia que comovem: “Na minha leitura, o senhor está me dizendo para acreditar na vida e no ser humano, acreditar mesmo quando a razão desaconselha”. A carta toda merecia ser transcrita, mas os trechos acima já revelam a grandeza de alma deste leitor.

Há ainda um ponto a ser destacado. Com a mercantilização da literatura, as editoras têm recusado livros de contos, levando-nos a produzir romances, que ainda contam com um pequeno espaço nas prateleiras das grandes livrarias. E Wladimir faz um apelo: “Não li seu romance, mas bom como for, rogo que continue no conto. O mundo precisa do conto, da concisão do conto, da força do conto”. Este pedido tão sincero me deprimiu um pouco. Embora com um novo livro de contos a sair este ano, tenho agora só me dedicado ao romance.

E, para mim, é sempre difícil desapontar um leitor, esta entidade em extinção.

Miguel Sanches Neto

É doutor em Letras pela Unicamp, professor associado da Universidade Estadual de Ponta Grossa (Paraná). Estreou nacionalmente com Chove sobre minha infância (2000), um dos primeiros romances de autoficção da literatura brasileira. Autor de dezenas de livros em vários gêneros, destacam-se os romances Um amor anarquista (2005), A máquina de madeira (2012), A segunda pátria (2015). Acaba de lançar O último endereço de Eça de Queiroz (Companhia das Letras) e sua poesia reunida A ninguém (Patuá). Finalista dos principais prêmios nacionais, recebeu o Prêmio Cruz e Sousa de 2002 e o Binacional de Artes Brasil-Argentina, de 2005.

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