A insignificância perfeita

Em outras culturas, Leonardo Fróes seria um poeta consagrado. Tem estilo e voz inconfundíveis
Em antologia de contos orientais, Leonardo Fróes mescla seu talento de tradutor com o de ficcionista lírico
01/02/2004

A poesia do carioca Leonardo Fróes, 62 anos, é uma excursão à montanha. Recomendável ir sozinho, sem livros e bagagens, sem ninguém para carregar, se possível nem a si mesmo. Lírica da suavidade, da água da pedra e da filosofia pura que vem da observação. O autor é discreto, não vive a insegurança da vaidade, não apela para terceiros para encontrar as localidades insuspeitas do idioma. Sua estréia aconteceu em 1968, com Língua franca, em que convocava os vermes para a redenção. Não publica muito, é exato e necessário para falar. Sua obra poética está reunida em Vertigens (Rocco), de 1998. Também gosta de fazer rir, mas um humor inteligente, intravenoso, como em Ciência sapal, em que o motorista acredita que atropelou o sapo porque ele está muito achatado. Brinca com a vida levada a sério. Mostra o quanto o dramático está próximo do patético. Procura o equilíbrio coloquial, não fugir do cotidiano, no máximo afugentar a rotina de vez em quando. Usa expressões que tenham sentido no momento do poema. Não guarda metáforas para depois. Naturalista, evita figuras vazias e retórica. Destila fé, mas não caça Deus no nome. “O que eu chamo de deus é bem mais vasto/ e às vezes muito menos complexo/ que o que eu chamo de deus.” Não quer mandar no jogo dos versos, mas apenas participar. “A vida é maior que a gente/ e mais do que a gente espia.” Não transforma o sentimento de ser menor do que o mundo em impotência. Respeita, ritualiza, reverencia as impossibilidades. É minucioso e detalhista ao capturar os fenômenos naturais e sociais invisíveis, os serventes limpando o hospital, os pequenos insetos no caqui, o boi mascando a grama. Estabelece história da anti-história. Abre as margens. Sua contemplação é civil, amadora, pouco preocupada em institucionalizar funções ou moralizar. Leonardo Fróes é límpido, porque sua poesia celebra até a queda. Não reclama da fila, encontra algo da fila para pensar. Como um montanhista solitário, não está interessado em apenas subir. Desde a ida, se preocupa em descer. A expedição só está encerrada depois da volta. “Sente-se disperso entre as nuvens,/ acha que reconheceu seus limites. Mas não sabe,/ ainda, que agora tem que aprender a descer.” A única ambição da sua poética é gastar os sapatos e se descobrir. Mastiga reflexões, martela anotações de viagens e rumina contemplações diferenciadas do senso comum. Singularmente simples. “Os meus papéis estão cansados de mim.” Entre escrever e ver, prefere ver o que já escrito, traduzir o que ainda não foi lido suficientemente, muito menos compreendido. Reproduz a grandeza do imprevisto. “Só as aves entendem/ o que estou olhando ao longe/ sem pensar mas sentindo/ minha insignificância perfeita.” Essa inutilidade simétrica e redonda, aperfeiçoada e luminar, revela o movimento de seus textos. O mínimo se multiplica. O ínfimo é íntimo. Sua poesia traça vizinhança com as fábulas, o motor ficcional encadeando as imagens, o enredo sensível e delicado de quem conversa sem querer impressionar. Uma conversa para se entreter com os movimentos sonoros da oralidade. Em Leonardo Fróes, o passado não está findo. Tudo pode ser investigado pela invenção. O que persevera é uma história adulta para as crianças. Pureza no tema e malícia lúdica na fala, transitando do trivial ao maravilhoso. Seus versos são contos versificados, visuais e cromáticos, adquirindo o tempo do espaço.

Se a poesia de Leonardo Fróes é de um montanhista, de ficcionista microscópico das escarpas, ela pode ser dividida em diuturna, momento da própria viagem, do aprendizado árduo das trilhas, e noturna, hora da fogueira, do descanso e da tradição verbal. Quatorze quadros redondos (1998) traz essa marca da segunda personalidade, que perdura a produção mais recente do autor: decantando lendas e fábulas e priorizando personagens, hipérboles e aforismos. Um exemplo de suas histórias é o velho que decide conhecer a estrada nova por curiosidade, ao invés de andar pelo caminho antigo e seguro, e vê o cansaço agravar a distância até que seu cajado se torna uma enxada. A preocupação do escritor é não aparecer, pincelar gravuras com a fidelidade de uma testemunha, movido por uma serenidade plástica. O que prevalece é a intuição da inteligência. Dar formação rochosa e relevo ao espírito, absorver o temperamento calmo da montanha, que não se mostra para quem não está perdido nela. Fróes acha a interioridade do artista do lado externo. Seus textos articulam uma distração fixa. Opõe-se à concentração classificatória com a devoção do devaneio. Olha para se esvaziar, não para encher os olhos.

Em entrevista ao Rascunho, o poeta Leonardo Fróes, que já ganhou o Jabuti por Argumentos invisíveis (1996) e traduziu Faulkner, D.H. Lawrence, George Eliot, entre outros, antecipa questionamentos de seu novo livro, Contos orientais. São quarenta histórias recontadas do Japão, China, Coréia e Índia, desde o século 4 a.C. até o século 18 d.C. Em mais de uma década, Fróes pesquisou dois mil contos asiáticos,

• A paisagem montanhosa da Itália influenciou decisivamente Goethe. O senhor não é um homem da praia carioca, porém da serra, radicado em Petrópolis. De que modo sua poética repercute esse seu lado de montanhista e naturalista amador?
A mudança mais óbvia talvez esteja nos temas. Antes de vir morar na serra, com 30 anos, eu falava de “labirintos de argamassa”, de “ruas entupidas”, de angústias e vivências urbanas. Passei, aqui, a falar do que me cerca, de bichos e plantas, de morros e estradas. Mas a mudança mais sutil talvez esteja nos ritmos. A cidade é nervosa, a mata é calma. Pode ser que minha música, soprada agora pelo vento, tenha pegado alguma coisa da fluidez da água e da terra, os elementos que mais me apaziguaram. Assim como pegamos dos outros, no convívio social, principalmente quando jovens, tiques e posturas que se tornam parte de nós sem que o saibamos, também devo ter pegado, da solidão que me rodeia, alguma coisa desse lento consolo que a natureza oferece com seus perfis e fantasmas.

• Percebo que sua obra não é feita pela compulsão de existir, mas aos goles e aos bocados, com lançamentos cada vez mais esparsos entre e uma e outra produção. É consciente ou uma imposição do mercado? Acredita que o escritor só deveria falar quando há algo de novo para acrescentar ao seu trabalho, em vez de ficar repetindo o que já disse em obras anteriores? Ou essa repetição é salutar?
Existir é inevitável, não demanda compulsão. Sou impulsivo, e muito, por temperamento, mas isso já seria outra coisa, e tento me controlar em relação ao trabalho. Publico pouco, a longos intervalos, e jogo fora sem pena tudo que não parece essencial no momento. Preciso sofrer uma transformação, pessoal ou estilística, para achar que é necessário mostrar o que estou fazendo. Creio que há sempre em minha obra, de livro a livro, uma mudança radical de voz e forma, e é com isso que eu aprendo a meu próprio respeito. Não sugiro, porém, que outros façam assim. Cada autor deve saber, porque o próprio trabalho indica, o que é que mais lhe convém. Muitos precisam se aprofundar na mesma linha para aperfeiçoar o que dizem. Tudo, por esse prisma, pode ser salutar. O importante é ser autêntico. É tentar ser sincero, sem ceder a pressões externas.

• Sua poesia pode ser vista como inscrições rupestres? São leve, entretanto, extremamente intensas. Parecem desconexas, mas têm a unidade de uma ciência.
Bem que eu gostaria que meus poemas fossem mesmo como inscrições rupestres, gestuais e incisivos. Tudo que escrevi nas montanhas foi escrito de um só jato, sem nenhuma alteração depois, nem mesmo uma vírgula a mais ou a menos. Mas já passei longos anos sem escrever uma só linha. Como para tudo na vida, acho que é bom esperar o momento certo. Se eu tiver conseguido, com minhas limitações, chegar de fato a uma ciência — uma ciência de ser — a poesia estará justificada?

• Em Contos orientais, mergulha na tradição de textos antigos para acentuar o caráter fabular de sua poesia. Em vez de reproduzir clássicos chineses, japoneses e indianos, reconfigura as histórias ao seu timbre. A coletânea é um trabalho eminentemente autoral? Como aconteceu a somatização dos contos?
Sou desde jovem um velho leitor de antiguidades, e há várias décadas convivo com textos orientais traduzidos em línguas ocidentais. Procuro no Oriente o que mais me falta, a infinita paciência que é a mais chinesa das virtudes. O livro que estou lançando agora pode ser inserido, de certa forma, na tradição dos contos orientais escritos por europeus na própria Europa, lá pelo final do século 18, na esteira do enorme sucesso das Mil e uma noites. O Oriente, para os autores aos quais eu me refiro, era então apenas o Oriente Médio, mas na Inglaterra, por exemplo, constituiu-se nessa época um subgênero de contos à moda árabe por autores ingleses, muitos dos quais eram mulheres, como Clara Reeves e Maria Edgeworth. Não posso me vangloriar de autoria, no trabalho que fiz, pois nada ali foi inventado por mim, a não ser os títulos que dei aos contos. Somatizei-os com a passagem dos anos, aprendendo muito com eles, e quis repassar a outros os ensinamentos dos quais me apropriei.

• Entre centenas de documentos, as discrepâncias são enormes, já que os relatos atravessaram milhares de anos pela tradição oral, tornando-se obras de autoria coletiva. Quais as mudanças que mais chamaram atenção de uma versão a outra? E quais as transformações mais significativas em suas adaptações?
Um mesmo conto, em determinada versão, pode conter cenas e personagens secundários que em outra versão estão ausentes. Cada vez que os recontavam, ao que parece, iam acrescentando mais coisas, assim como as casas velhas alongam-se com o tempo em puxadas e ganham novos adornos. Meu trabalho foi podar os excessos, escavar sob as diversas camadas para tentar chegar ao cerne das construções.

• Como a tradição oriental é totalmente diferente, percebe-se uma religiosa busca sexual, com uma autonomia muito diferente da repressão ocidental. No engraçado e alegórico Como fazer amor com um nabo, uma virgem engravida após comer um nabo embebido no sêmen. Há também situações de homossexualismo, vida nos bordéis e infidelidades. A sexualidade é mesmo menos estigmatizada, mais vista como autoconhecimento?
Há uma idéia muito enquistada entre a gente, a de que os orientais, por serem tão espiritualizados, estejam acima das circunstâncias do sexo. Não é isso, porém, o que se vê nesses contos, que eram narrados em público nos bairros de diversão existentes nas sucessivas capitais que tiveram, por exemplo, o Japão e a China. Aí, em tais bairros, a literatura licenciosa ia de par com a prostituição e os jogos, a bebida e os folguedos, a mais ampla liberdade de ação. Julgando sempre pelos contos, que são indicadores valiosos, percebemos que o sexo era visto como uma coisa natural que acontece e que tem de ser resolvida, sendo uma via de conhecimento, sim, como outra qualquer. A hipocrisia e os tabus são denunciados, e tudo é visto sem espanto. Se considerarmos a tradição iconográfica, a arte erótica hindu, chinesa ou japonesa, veremos de modo ainda mais claro a confirmação desse ponto. Quanto ao homossexualismo, encontrei-o principalmente em Ihara Saikaku, autor japonês do século 17 que se especializou em escrever sobre prostitutas e gays. Um de seus livros, O grande espelho do amor entre homens, é todo constituído, como já diz o título, por histórias de relacionamentos estáveis e profundos entre samurais e garotos. Por outro lado, fontes ocidentais a que também tive acesso, como as “Lettres édifiantes et curieuses” dos jesuítas franceses que estiveram como missionários na China, entre 1702 e 1776, ou a “História de Japam”, do frei português Luís Frois, que participou da malograda tentativa de cristianização do país, mencionam casos de prática homossexual entre os bonzos, reprovando-os, é claro, com seu rigorismo católico.

• De que modo essas fábulas alimentaram La Fontaine e Thomas Mann?
O conto que em minha coletânea se chama A menina que era um rato foi posto em versos por La Fontaine, em suas Fábulas, com o título La souris metamorphosée en fille. O original pertence ao Pancatantra, o grande livro hindu de fábulas, que também forneceu matérias, como muitos especialistas já mostraram, aos fabliaux medievais europeus, aos contos dos irmãos Grimm e talvez até a Esopo. Já o conto Cabeças trocadas, que resumi em pouco mais de duas páginas, foi transformado por Thomas Mann, com seu talento de romancista, na novela Die Vertauschten Köpfe — eine indische Legende, a qual se estende por 95 páginas na edição de Estocolmo de sua obra completa. O original pertence ao Vetalapancavimsatika, Os vinte e cinco contos do vampiro, que também provém da Índia e data, na primeira versão escrita, do século 11.

• Um equivalente ao seu projeto são as Fábulas italianas, de Italo Calvino?
Nunca li este livro, mas a referência me deixou curioso e vou ler assim que puder. Meu projeto, porém, tem muitos equivalentes na tradição européia. Dentre os que conheço, posso mencionar como exemplos as Mythologies de Yeats, onde o poeta deu forma escrita a contos coligidos por ele na tradição oral irlandesa, ou as Moralités légendaires de Jules Laforgue, poeta que recontou a seu modo e em prosa várias histórias preexistentes e já muito comuns na Europa, como a de Hamlet, a de Lohengrin e a de Salomé.

• Os contos sempre deixam uma impressão interrogativa, não uma gargalhada, um leve estremecer dos lábios, um contentamento reflexivo. Uma das virtudes é a autocrítica das histórias, às vezes ironizando o próprio budismo, outras denunciando o autoritarismo. Não há maior sabedoria do que rir por dentro (e não para fora)?
Sim, rir é o melhor remédio, como o povo sempre ensinou, e em rir por dentro, concordo, deve haver grande sabedoria. É justamente essa terapia do riso o que mais me encanta nos contos, porque os ensinamentos se transmitem sem que a gente nem chegue a perceber.

• Qual o provérbio dos contos populares que escolheria como epígrafe de sua literatura?
“O caminho se faz quando se anda por ele e as coisas são feitas pelos nomes que cada um lhes vai dando.” Está no texto intitulado As palavras, que se baseia em Chuang-tzu e encerra minha coletânea.

• Identifico em sua poesia uma inclinação minimalista, cada vez mais rarefeita, de absorver detalhes em detrimento do conjunto, própria da tradição do Oriente. Essa influência é decisiva? Estará presente em seu próximo livro?
Eu não sou nada oriental, não tenho sabedoria nenhuma, tenho raros momentos de serenidade, e é por isso que continuo perguntando e escrevendo. Ainda assim, é verdade, cada vez me torno mais detalhista, como se o mundo pudesse mesmo estar num grão de areia, desde que o olhemos com suficiente atenção. Um braço de mulher entrevisto numa poltrona de ônibus, só o braço, pois do resto eu não via mais nada, serviu de tema a um poema que recentemente escrevi. Não sei se isso, essa atração pelas pequenas coisas, é influência do Oriente ou do campo, porque quando estou plantando, quando troco os meus livros pela enxada, tenho de espiar toda hora para ver se há brotos novos nas plantas, se elas precisam de alguma ajuda minha ou se há insetos querendo devorá-las. De onde vem isso, se do Oriente, do campo, da própria idade, realmente não sei. Mas sei que faz um bem danado e restaura.

• Sua poesia está entrando no terreno da prosa. Coloca em prática a definição de “música residual instintiva”?
Nunca entendi muito bem a distinção que se faz entre poesia e prosa. Para mim tudo é texto, são palavras da alma. Por muitos anos, meus versos se alongaram até encher toda a página, mas agora estão voltando a encolher, como se eu mesmo fosse diminuir de tamanho com a passagem do tempo. Sim, acho que é isso, procuro a “música residual instintiva”, aquela que ficou no coração e não consegue se sublimar em silêncio.

Contos orientais
Leonardo Fróes
Rocco
204 págs.
Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho