Branco sobre branco

O tênue e indelével vestígio da presença de Wilson Coutinho
01/02/2004

Wilson tinha saído para uma entrevista, foi tudo o que pude entender do bilhete que ele deixou sobre minha mesa: “Vou ao Instituto da Telegrafia Sem Fios. Não devo demorar”. Que relação podia haver entre um instituto ligado à pesquisa telegráfica e nosso caderno literário? — me perguntei. Não dei muita atenção ao bilhete, e na verdade nem à “telegrafia sem fios”. Ainda não existiam os celulares, mas há muito existia o telégrafo por ondas hertzianas. Tudo me pareceu bem razoável.

Já era noite quando Wilson Coutinho chegou. Não tinha almoçado, concluí, pois estava pálido, trazia olheiras achatadas como aranhas, as mãos um pouco instáveis. “Ao contrário, almocei muito bem”, ele me corrigiu. “E esse foi o meu grande erro”. Na volta de Cascadura, preso em um engarrafamento na Avenida Brasil, sentiu náuseas. “Eu devia ter ouvido os conselhos do Professor Casimiro. Ele bem que insistiu nisso, que era melhor preferir o vazio”. Não lhe deu atenção e agora estava naquele estado.

Quem seria Casimiro? E o que meu amigo foi fazer no subúrbio? “A sede do Instituto é em Cascadura, ocupa um casarão gótico no número 708 da rua Cerqueira Daltro”, ele me explicou, percebendo minha inquietação. Casimiro Sete, matemático e astrofísico, professor honorário em Toronto e em Governador Valadares, era o diretor do Instituto da Telegrafia Sem Fios. Foi tudo o que me disse, e preferi não perguntar mais nada, pois Wilson poderia se sentir incomodado com minha desconfiança. Expor minha agitação podia, além do mais, ser inconveniente, já que ele era o editor do suplemento, e eu um simples redator. Melhor ficar quieto.

Fechamos nosso caderno literário, com um artigo de capa sobre Erich Heller, já depois da meia-noite. Por algum tempo, desci até a oficina para resolver uns problemas na paginação. Quando voltei, encontrei Wilson debruçado sobre um quadrado de metal vermelho que me lembrou os apetrechos usados nas mesas de sinuca. “Não é um quadrado, é uma caixa”, Wilson apressou-se em me alertar. Havia algo dentro dela, existia um conteúdo, embora não pudesse ser visto. Advertiu-me ainda que a opinião não era sua, pois só via naquilo um quadrado mesmo, com um vazio no meio. O objeto pertencia ao Professor Casimiro e a opinião também.

A explicação fazia parte da teoria suprematista, inspirada nas teorias do pintor russo Malevich. Mesmo no vazio, dizia Malevich, ainda se guarda uma certa quantidade de energia, que é a transição entre o não-existente e o existente. “Na verdade, ele não falava em não-existente, mas em pré-existente”, Wilson especificou. Naquele quadrado, devia haver também essa energia, por que não? Não era uma força desprezível, embora não pudesse ser testada. Era o que, naquele momento, Wilson se esforçava para ver, mesmo sabendo que a energia de Malevich não podia ser vista. E aquele empenho em ver o invisível, pensei, era um exemplo do meio do caminho.

Achei melhor convidar meu amigo para um chope no Leblon. “No Leblon, não, em Cascadura”, ele me corrigiu. “Vamos ao Bar Sete”. Era, ele me explicou, o bar mais tradicional do bairro, freqüentado por advogados, bicheiros e, naturalmente, pelos suprematistas de Casimiro. Na verdade, a casa pertencia ao professor e funcionava como seu escritório. Um gabinete informal, invisível, como a energia guardada no quadrado vermelho.

Confesso agora que, tomado pela mais nefasta desconfiança, enquanto o táxi se arrastava pela Avenida Brasil, eu me perguntava se meu querido Wilson estava realmente bem. Talvez fosse o início de um estresse, os primeiros sinais de um colapso iminente. O estilo discreto de Wilson Coutinho provocava a ilusão de que ele trabalhava pouco quando, porque amava seu trabalho, trabalhava 24 horas por dia. Mesmo enquanto dormia, o sono era interrompido por idéias dispersas, ou recheado por sonhos que iluminavam aspectos do mundo diurno, e assim ele continuava a trabalhar.

O bar não estava cheio, de modo que, assim que entrei pude perceber, na parede dos fundos, logo acima do caixa, uma cópia, bastante imperfeita, de Branco sobre branco, a célebre tela de Malevich. Um quadrado branco inclinado sobre um fundo branco. Mais nada. Um nada que era uma grandeza. Só que, por causa do vapor que emanava da cozinha, e também das baratas que passeavam pelas paredes, o branco estava encardido. Mas isso não tirava a importância da reprodução.

Foi o que Casimiro me disse. Eu o tratava assim, Casimiro, e não por Professor, como todos, inclusive Wilson, o chamavam. Era minha maneira, discreta, de desmoralizá-lo, de mostrar que não o levava muito a sério. Num efeito contrário, ele pareceu interessado em minhas observações. Afora o tom de contrariedade, ou talvez por causa dele, elas guardavam uma ênfase que o atiçava.

Até que o Professor Casimiro me perguntou: “O senhor vê as baratas?” Não só via, como me irritava que elas estivessem ali, a preencher o vazio de Malevich com seus cascos nojentos, suas antenas asquerosas. Tirei um sapato e me levantei, disposto a caminhar até a parede para matá-las. Foi um impulso, e nesse momento nem pensei em Casimiro. “Não!”, gritou o professor. Não disse mais nada, não voltou a protestar, mas foi um berro tão emotivo que me contive.

“Eu dizia: as baratas sobem na tela porque elas percebem a energia guardada no branco. Só elas, porque não têm preconceitos, e também porque não se detêm nas amarras do pensamento, são capazes de perceber essa energia”, Casimiro prosseguiu. “É”, limitei-me a comentar. “Pode ser”. Tentei dizer mais alguma coisa, engatei uns grunhidos, mas não saiu mais uma sílaba. Quem precisava de férias provavelmente era eu, já que Wilson me observava com a expressão muito feliz.

Aproveitando que o professor foi ao banheiro, perguntei a Wilson: “Você quer me dizer o que estamos fazendo aqui?” Ele me pediu paciência, que eu tomasse outro chope e relaxasse. Depois cochichou: “E precisamos estar aqui para fazer alguma coisa? Vim só para ver melhor como é essa gente”. De fato, me falta na maior parte das vezes essa liberdade interior, essa disponibilidade para existir que Wilson sempre teve de sobra. Estar ali por estar, nada mais. Ser paciente manter-se desimpedido, para esperar que as coisas enfim aconteçam. Ou não. Porque é uma obsessão inútil, e além do mais um fardo, a idéia de que coisas importantes estão sempre prestes a acontecer. Isso se chama esperança e a esperança é um vício dos mais intoleráveis.

Wilson Coutinho gostava de uma frase de Berson: “A realidade é apenas um caso particular do possível”. Não devemos dar grande crédito ao real, ele me dizia, porque o que é real hoje pode não ser amanhã. A realidade é fruto do acaso, e não do esforço, como nos ensinou a ética cristã. Para sincronizar com o mundo tal qual ele é, basta, às vezes, apenas ser. Era o que Wilson tentava me explicar, mais um pavor silencioso tomava conta de mim, e eu quase não podia ouvir. Ainda assim, achei que devia, ao menos uma vez, me submeter a sua maneira especial de encarar o mundo. Provar, um pouquinho que fosse, de sua imensa liberdade. Não me arrependo.

O que aconteceu de especial naquela noite? Nada aconteceu. Não, não vim aqui para contar uma história, a esperança de um relato coerente ficou no século 19 com Flaubert e suas raparigas. E era isso que meu caro Wilson queria me dar: a chance de provar a força que se guarda na liberdade. A tal energia escondida no quadrado vazio de Malevich, a meio caminho entre o não-ser e o ser. Em outras palavras: aquilo que quase é. Não chega a ser, não chega a não ser. Fica entre. A vida, na verdade, está no meio do caminho.

Hoje, poderia dizer de Wilson Coutinho o que Aaron Scharf disse da obra de Kasimir Malevich: “Um tênue vestígio de sua presença é tudo o que resta”. Mas como isso é grande!

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho