Três contos canhotos

Três contos de Fernando Marques
Ilutração: Marco Jacobsen
01/02/2004

Pizzarelli na danceteria

Nas histórias policiais antigas, amigas do lugar-comum, o criminoso sempre volta ao local do crime. Faz sentido: toda emoção deixa saudade. O criminoso não volta ao local, volta ao próprio crime. Que pode ser imaginário. Ou castigo auto-imposto.

Ele voltou. Era o primeiro dia do ano. A festa que abandonara, bêbado, não lhe rendera os afagos femininos que sonhara. Decidiu comprá-los. Ali estava, outra vez, diante da danceteria sórdida.

Parou nas proximidades o carro novo, substituto recente do automóvel com que havia rodado o equivalente a duas voltas ao mundo.

Entrou no recinto ruidoso. Lá fora, o dia clareava; lá dentro, noite ainda fechada. Mas os móveis de plástico sustentavam somente convivas esparsos. Os olhos trôpegos distinguiram a mulher: “Is your pussy vacant?”, disse, dado que a moça procedia da Guiana Inglesa, como soube após rápida abordagem. Mas o convite direto para que ela fosse para a sua casa a deixou desconfiada. Nada feito, e ainda menos depois de um homem mais jovem ter se aproximado.

Poderia ter havido conflito, evitado porque o outro foi mais prudente que ele. Passa. Vamos ver, vamos ver. Ninguém à vista. O dinheiro era, como de hábito, magro. Mas tinha o talão de cheques. De que vale um pré-datado?

De novo na calçada, dirigiu o convite a outra senhora, que sorriu reticente e informou estar trabalhando. Não estava, portanto, para brincadeiras de rentabilidade duvidosa. Ninguém mais dedicado a seu ofício que as moças de vida fácil. Fossem assim os deputados.

Entrou no carro, já disposto a desistir — a boa hora de ir embora. Viu a morena magra e alta: a comparsa da baixinha que lhe batera a carteira semanas atrás. A lógica sugeria que fugisse ou, no mínimo, que contornasse o risco. Fez o contrário: parou rente ao meio-fio, chamou-a para ir a sua casa. O dia, a essa altura, acordara nítido, sem sofisma, imaculado de bruma.

Iria com ele? Nada. Riria dele, safada. Mas quem é burro peça a Deus que o mate e ao diabo que o carregue. Era o caso. Insistiu que fosse e, como no poema, lhe aplacasse a vontade. Ela soube ser prática:

— Trinta?

Regateou:

— Vinte. No cheque.

A garota mediu-o do queixo à testa, a cara vermelhusca na moldura da janela: bêbado. Ainda que cega e surda, teria sentido o hálito. No banco de trás, o casaco e o violão foram devidamente aferidos, embora de relance. Pediu tempo, ia pegar a bolsa. Era como se ela se preparasse para a longa viagem.

— Vê se volta logo — exigiu, rei autoproclamado.

Esperasse, voltaria já. E entrou rebolando na danceteria.

Ele, dentro do Fiat, guloso de orgia, agindo como se fosse inexpugnável, quis comprar cinco reais de. Chamou o sujeito mais próximo, propôs o negócio esquálido. Ao garoto branco, vinte e poucos anos se tanto, não escapou a bagagem no banco traseiro, nem a carteira preta, abarrotada pelo talão.

Lá dentro, aconteceu o quê? Bidu: o garoto e a morena magra confabularam. Os pobres se entendem. Ele no carro, à espera. Mas quem sente pena de otário? Voltaram os dois — e, com o rapaz e a jovem, vieram outros dois sujeitos, desses que o ex-presidente chama de inempregáveis. Uma besta solene, o ex-presidente: eram, isto sim, inestimáveis guarda-costas e auxiliares do assalto iminente. Pois é, o time adversário somava quatro, todos de acordo.

Soldados inimigos de um e de outro lado. Quando foi pinçar a cédula de cinco, o moço meteu o braço, arrancou a chave da ignição, o Fiat novo, a pintura metálica, o som, o disco do John Pizzarelli, imaginou que fossem levar tudo, tu-do, decidiu, o instante eterno de coragem rara, lutar pelo automóvel que sequer tinha sido pago.

Mas o garoto queria era a carteira de falso couro que supunha recheada. Dentro, trinta reais — os trinta que negara à prostituta, distribuição de renda na marra — e o talão de folhas bisonhas. Mão na carteira de cá, mão na carteira de lá, cabo de guerra com o bandido atrevido, sim, mas também medroso, veja você, ele mordeu o braço do ladrão, ai!

O alarme, providencial, dispara.

O calhorda foge agora, ele fica no Fiat, não, ele salta do carro, dá as costas; a garota, em pé na outra porta, levanta o banco à direita e facilita o saque. Sintonia fina, fácil, fácil: sem que notasse, dois deles limparam o violão e o casaco. O líder levara a carteira. Ele foi atrás, desabalado e patético:

— Devolve a carteira, devolve a carteira!

Tinha perdido o senso do perigo. Para seu espanto, ouviu em resposta:

— Só quero o dinheiro, só quero o dinheiro! — ladrava o cachorro enquanto sumia na curva. De fato, abandonou a pretinha no asfalto, os documentos espalhados.

Recolheu os pertences remanescentes, trinta contos e os cheques tinham ido, tristíssimo voltou para o Fiat notando, então, o dedo imóvel:

— Ele quebrou meu dedo — gemeu, contemplando a falange partida.

Falava mais consigo mesmo do que com a prostituta, que ficara por ali e se fazia de santa, a cínica, com certeza ainda aceitaria o programinha à guisa de consolo. Humana, entende?

— Desliga o alarme — teve a audácia de sugerir, como se fosse a mais doce das aliadas.

Ele já não podia escutá-la. Lamentava-se, mas sem se fazer entender, as palavras saíam aos trancos, desesperadas, os olhos míopes fixados no dedo que, torto, penso, teimava em se manter imóvel.

Partiu para o hospital com o carro aos solavancos.

A aventura terminava mal — e mal começara. Você continua lendo? Então vamos.

Ilutração: Marco Jacobsen

Pizzarelli no hospital

O Fiat fugia tirando finos do meio-fio, a toda nas vias baldias da madrugada. De fora, lembrava o Piquet com vinte anos de atraso, o adolescente vetusto na pândega irresponsável. Dentro dele, que dirigia o carro ou se deixava dirigir, o motivo resumia-se a pânico: medo de perder os movimentos, os remordimentos do dedo. Lanhava violão e a gente precisa de uns dedilhados. Sem falar no remorso, que repontava.

A vida parou. Ou foi o automóvel? Estacionou o Mille, enrolou-se com as chaves que se enroscaram nos dedos sãos e no anular imóvel, entrou no saguão a passos desarvorados. Tudo muito rápido — ou você nunca teve o dedo partido num assalto. O rosto girou sobre o pescoço, era como se chineses jogassem pingue-pongue na entrada. Soube logo que devia dirigir-se ao guichê, a pé, claro: ainda guiava o Fiat sob a luz baça da enorme ante-sala. Passou a mão nos cabelos crespos, afinal chegara.

No guichê, veja você, pediu prioridade. Seu caso era grave. Queria ser atendido na hora, agora. Explicou ter sido vítima de assalto e articulou argumento que lhe pareceu definitivo, perfeito como um crime:

— Toco violão, toco violão — reivindicou, exibindo o dedo empenado como a prova dos outros nove. Ter sido roubado lhe valera fratura qualificada, com privilégios anexos.

A senhora negra de jaleco branco, que atendia pacientes exaustos, só podia achar graça. Então não tem fila, moço? Tem fila, o senhor espere. Tenha calma. Fizesse a ficha, aguardasse a vez e baixasse a voz, recomendou o guarda. Este era homem forte, meio obeso, as banhas reprimidas no uniforme cinzento e justo — como se a farda pertencesse a outra pessoa. Talvez bigodes fartos, começo de calva sob o quepe. Trabalhador.

Preenchida, aos soluços, a ficha — choramingava —, o herói resolveu maldizer a demora, o hospital, a saúde pública, o governo da besta solene: como se atreviam a fazê-lo esperar, a ele, que tocava “Samba e amor” em ré menor, embora esganiçado nos agudos? O peeme voltou a adverti-lo: que se comportasse, senão. Bom.

Devia ter escutado. Aquietou-se, mas, poucos minutos depois, reincidiu nas reclamações, enfático. E foi: as mãos impacientes do guarda o agarraram, guindaram-no, tornou-se vazio e leve como um saco plástico, pedalou o ar por um instante e iniciou a resistência desesperada. Que afinal não foi de se jogar no lixo hospitalar: de um momento para outro, pesava. Para onde o levavam?

Cabe o plural, a essa altura já eram dois a arrastá-lo. Súbito, novo argumento brotou das tripas crispadas:

— Eu escrevo no jornal, eu escrevo no jornal! — gritava. Cada qual tem o álibi que merece, não é verdade?

Tudo pareceu muito rápido ou, pelo avesso, muito demorado. Mas o relato, preguiçoso, passou por cima de todo um corredor, ao longo do qual tinha sido puxado como um animal; olhares curiosos, perplexos ou simplesmente sonolentos acompanharam o martírio. Que se estendeu até o largarem em frente à mesa do plantonista, no posto de polícia:

— Está nervoso por quê? — inquiriu o meganha, assustadoramente calmo.

Começou a entender onde estava, as nuvens de uísque desfeitas a muque. Existem uns bichos por aí que ao morrer mexem a cauda: lagartos, peixes. Pois é: em lugar de serenar, as coisas que bailavam dolorosas dentro dele vieram à tona de novo e com mais força — quis fugir, desatinado e ingênuo. É claro que o agarraram, desta vez com mais raiva, ele que já os havia obrigado a um trabalho extra, pessimamente pago.

Não queira saber o que aconteceu, leitor burguês, crítico paulista, colega bem-pensante, funcionário das palavras: foi algemado. Mas não a si mesmo nem a outro homem, a outro pulso — ele foi, sim, algemado à parede. À parede fétida e encardida do posto no hospital, onde entrara como se a sua fratura fosse melhor que a dos outros.

Tenho pena do meu personagem, caro crítico, tenho pena de meu Pizzarelli estúpido, indefeso no colo de uma polícia que, bom. Os bêbados, você sabe. A gente tem que usar de certa energia.

Acorrentado como um escravo, como os antepassados — alguns podem ter conhecido o pelourinho. Ou talvez se imaginasse mais Panificadora Bragança, mais esquina de Voluntários da Pátria com Real Grandeza que o próximo. De todo modo, a dor dos outros nos dá tédio. Foi sempre essa a canção das elites, mas Lula, meus amigos, é polvo.

Sobe música.

Ali, atado inapelavelmente à parede, chorou várias vezes mais e, uma das mãos em concha sobre o rosto molhado — suor, lágrimas e sangue, como na Bíblia —, lastimou a noite de ano-bom, a boemia idiota, a própria indigência. A prepotência absurda num cenário em que se amontoam dramas, o pedantismo pueril, o porre sem talento. A humilhação. Um homem deve ser humilhado de vez em quando, você não acha?

As lágrimas convulsas produziram mal-estar no policial, que só faltou lhe emprestar o lenço e lhe fazer carinho. O preso chorava aos arrancos, se os animais chorassem chorariam assim, completos. Guinchando, manja? Fungando e soluçando, saca? Ah, viver é um negócio meio desagradável, relevem a ênfase: viver mata. Foi, naquelas horas, o mais miserável dos homens modernos.

A história continua na delegacia, para onde o levaram. Vamos acompanhá-lo?

Ilutração: Marco Jacobsen

 Pizzarelli na delegacia
A pista na asa-sul desenrolava o tapete de asfalto para o carro, que deslizava. A cidade mostrava-se tranqüila, pelas janelas, na primeira manhã de 2002.

Ele entrara no automóvel da polícia minutos antes; àquela altura já havia se acalmado, a ponto de ter sido dispensado das algemas. A seu lado, no banco de trás, dois guardas se transferiam do posto no hospital para a delegacia, findo o dia de trabalho. Nos bancos da frente, os titulares da viatura. Dir-se-ia um quadro de família.

Desceu do carro no pátio da delegacia, mandaram que esperasse sentado. Noutro veículo, chegava o guarda que o arrastara nos corredores do hospital. A acusação que faria contra ele havia de ser, no entanto, benévola: embriaguez. Nem tudo se perdoa a um bêbado, mas, ao menos, se perdoa o porre.

Tinha o dedo tão partido quanto antes, o cansaço começava a desabar nos ombros; restava a ansiedade, insidiosa, que o deixava aceso como se tivesse cheirado cocaína.

Fiel ao próprio modus operandi, exibido nos episódios recentes, quebrou o jejum para perguntar quando seria ouvido. Pediu pressa, ora essa. Exigiu pressa da polícia, teve a coragem. Responderam, ríspidos, que se calasse.

De vez em quando resmungava, estatelado no banco de cimento, as palavras aos soluços. Gente entrava e saía da delegacia. Outros casos prolongavam a demora. E veio a sua vez, desatou a matraquear diante do escriba indiferente:

Que tinha sido assaltado, que escrevia no jornal, que sua especialidade era o turfe, que tinha filhos, que não era bandido, ah, isso não era.

Policiais devem ser psicólogos, assim como há psicólogos que são bons policiais, não é verdade? Eles ali foram ótimos: resolveram deixar que falasse com o delegado, como pedia. Quem sabe assim se acalmasse e parasse de gastar a boa vontade dos outros. E ele já está na sala do chefe.

O bacharel pareceu compassivo, ora o que é isso fique tranqüilo, ao vê-lo chorar desabrido, desabalado, numa sinceridade tocante. O que pode uma noite de álcool. Mas Pizzarelli falou em prestar queixa contra o guarda que o detivera no hospital. Disse e repetiu: fazia questão da ocorrência contra o guarda. O delegado achou que era demais, tornou-se feroz e esganiçado, abriu a porta da sala teatralmente e, aos gritos, ordenou que mudassem a acusação de embriaguez para a de desacato à autoridade — bem mais grave.

De quebra, mandou que lhe fechassem as algemas.

Poderia ser preso, sem direito a fiança. A lei tem suas sutilezas. O pernóstico pretendia apenas assustá-lo, é claro: onde já se viu dar queixa da polícia na polícia? Filha da puta!

Ele começa a sofrer de verdade.

Quem sofre, pensa — a felicidade é obtusa — e Pizzarelli pensou. De novo o fluxo: a vaidade ingênua, a noite desperdiçada, a coisa toda inútil, tudo lhe veio à cabeça numa velocidade de náufrago. A história vinha triplicada, exasperada porque já não havia álcool que justificasse as coisas nem remédio à vista para a desgraça iminente: preso.

Na penitenciária da Papuda. Você poderá, se quiser, visitá-lo aos sábados.

Havia uma hora ou duas, tivera o sentimento nítido de estar vivendo um pesadelo, mas prestes a se dissolver: ele, o dono do sonho, teria de acordar. Por isso mesmo seu sofrimento no hospital conseguira ser catártico, purificador: lá ele se ferira fundo porque sabia que a situação não iria durar muito. Dor genuína, sem dúvida, mas a prazo fixo, com hora de acabar. Penitência.

Agora já não tinha certeza de que a coisa toda terminasse tão cedo.

Imune ao tempo por dois segundos: se a dor é tão necessária quanto a alegria, estar alegre é apenas uma outra forma de sofrer, compreende?

O que a gente não pensa numa hora dessas.

Certo, não pensava assim articuladamente, estou penteando as idéias de Pizzarelli. O incauto pensava assim enroscado: a dor necessária se a dor necessária se a dor é necessária tão necessária quanto a alegria para a saúde de nossas vidas de nossas vísceras — acho que vou vomitar — sofrer é só uma maneira de sentir prazer, ah!

Verteu a golfada fétida sobre o piso liso da delegacia.

Rua. Uma das pistas que cortam a asa-sul. Se eu disser que o dia era cinzento, o leitor vai imaginar que estou usando um símbolo, ainda por cima símbolo manjado. Mas era cinzento o dia. Fazia calor, porém.

Seu carro ficara no hospital, estava a pé. Foi a um primeiro pronto-socorro que se achava fechado, era feriado. Depois encontraria o endereço exato. Já podia entrever os aventais.

Os civis o haviam liberado, tinha desistido de dar queixa contra o guarda.

Os detalhes são vários e vis e tenho preguiça de contá-los: o vômito, por exemplo, lhe valera a irritação consternada dos policiais. No intuito de se livrarem dele, aceitaram as suas desculpas e o levaram, prestimosos, para se lavar das culpas na torneira mais próxima. Pizzarelli, sem galochas, esbanjou litros de água no rosto, no peito, nos braços.

À saída, recusou polidamente o cafezinho.

Na rua deserta e reta, o céu agora azul, seguia tentando se equilibrar sobre o meio-fio, como costumava fazer quando menino. A angústia do dedo teso persistia. Em volta, a claridade desolada. Lembrou-se da ex-namorada, figura de mulher na hora rara, deusa das águas sob os céus completos de sua letra. O dedo voltou a doer. A sensação de derrota como um pensamento que a gente afasta.

Plano geral da cidade sob o sol do meio-dia. Iria demorar um pouco até que chegasse em casa.

Fernando Marques

É professor universitário, jornalista, escritor e compositor. Publicou os livros Contos canhotos (LGE), Retratos de mulher e o livro-disco Últimos. Doutor em literatura brasileira pela UnB.

Rascunho