No distante 1980, Fausto Wolff dava o grito de alerta: “Se todos os jovens poetas brasileiros pegassem numa enxada, em vez de encherem o saco dos outros com suas dorzinhas existenciais de merda, talvez a lavoura não melhorasse, mas em compensação, o novíssimo Parnaso seria bem longe do Rio e Drummond poderia trabalhar em paz”. E a ala dos poetas surdos só aumentou desde então; no lugar de Drummond coloque Gullar e o cheiro das dorzinhas permanecerá. Um quarto de século de subnutrição poética contempla o Rio de Janeiro.
Poucas coisas conseguem ser mais perniciosas às letras que um jovem poeta. Particularmente, detesto-os. Mas eles são ardilosos, costumam se disfarçar em senhoras e senhores aposentados que numa permanente ação entre amigos se multiplicam feito moscas neste triste Rio dos “poetas perdidos”. Uma enxadinha não lhes faria mal, terapia ocupacional, e os manteria longe dos teclados e canetas. Mas nessa onda de arranjar ocupação para a terceira idade e faturar alguns trocados, pululam nefastos espertalhões, oferecendo “oficinas de poesia”. Santa miséria, bendita ingenuidade, patéticos e perigosos produtos egressos dessas arapucas. Já dizia Borges: “Certas pessoas têm dificuldade em sentir a poesia, daí dedicam-se a ensiná-la”.
No meu entender está aí a porta de entrada, ou saída, vocês decidirão: sentir a poesia. É característica do idiota, do débil mental, fazer o que quer que seja sem sentir… Fausto Woff é um escritor imune a essa epidemia alienante que costumeiramente horizontaliza a poesia, a literatura e em última instância, a vida.
Gaiteiro velho é o terceiro livro de poesias de Fausto Wolff. E se nos anteriores, Cem poemas de amor e uma canção despreocupada e O pacto de Wolffenbütell e a recriação do homem, a opção pelo humor descompromissado por pouco não o encaminhou para a fileira dos que merecem a enxada, Gaiteiro velho marca a entrada definitiva de Fausto no clube dos grandes poetas brasileiros. Fausto Wolff estabelece o contraponto com a emoção comedida de Carlos Nejar, grande poeta pampeano, que assim como Gaiteiro velho tem em A espuma do fogo o tempo como protagonista de seus versos: “O tempo que se alimenta/ do seu próprio tempo”.
O gaiteiro velho de Fausto Wolff não esconde o parentesco com o avô de Nejar, mas diferentemente deste, Fausto dispensa os heróis e seus heroísmos, e tanto este como aquele utilizam como matéria prima a honestidade.
Coerente e capaz de surpreender. Parece simples? Mas não é. Nunca esqueçam, apressados e saltitantes poetas: a espontaneidade não é regalo ofertado pelos professores. Que outro poeta reúne a pureza do conterrâneo Mário Quintana e o idealismo romântico de Lord Byron? Para quem ainda não sabe, Fausto também já percorreu o mundo garimpando fortes emoções, pode estar aí a justificativa para os poemas de Gaiteiro velho serem fartos em metáforas vivas e lirismo angustiado. Some-se a isso a integridade intrépida deste que é um dos nossos três maiores autores vivos. Na contra mão da turma que merece a enxada, Fausto não particulariza as dorzinhas. Cúmplice da solidão, personificou no “velho” aquele sábio que carrega o pampa dentro de si, genuíno personagem de Fausto Wolff, movido pelo sonho, pela utopia, solitário, protegendo os mais fracos e ansiando por justiça, que objetiva transformar, para melhor, a realidade. O Gaiteiro Velho joga truco com a morte. E vence. A intimidade inevitável com o gaiteiro permite o contato com um dos raros escritores brasileiros que sabe realmente escrever para crianças, crianças de todas as idades, com inteligência, clareza, ternura e sutileza indispensáveis. Vide o Ogre e o passarinho, Sandra na terra do antes e Tristana a maior gota d’água do mundo. Fausto alcança o que muitos, inconscientemente a maioria, tentam: contar uma história em versos, acessível a todos de todas as idades. É óbvio que a turma da enxada não vai gostar, falta dor de corno, algumas gaivotas sobrevoando a praia, a mulher amada e outras baboseiras das quais se alimentam os coitados poetastros. O gaiteiro/Fausto é o Lacombe Lucien, O garoto selvagem de Truffaut, o menino triste do Império do sol de Spielberg, o menino do conto Os assassinos de Ernest Hemingway, tentando decifrar o pai, a vida e a morte, o velho menino de dez anos do conto Um presente para o menino do livro Matem o cantor e chamem o garçom, em que Fausto/Parsifal/gaiteiro é duro com o menino a quem desilude da necessidade da escola e o apresenta à morte. O gato que morre e o pontapé na cadáver do felino, a realidade próxima, que o leitor pode tocar, realidade constante sem ser repetitiva, graças ao talento incomparável do autor. Embora o título sugira um personagem caro e familiar aos gaúchos, o poeta derrubou as cercas, concedendo ao gaiteiro liberdade de espírito, harmonia com seus semelhantes e com a natureza. Resumindo: o objetivo ainda inalcançado de Marx. Como diz o gaiteiro encerrando o poema Tempinho brabo: “Não devemos ser assassinados/ Pela beleza que criamos”. Ah! se Lula lesse…. E, infelizmente, falando no ex-torneiro mecânico, ora provador de bonés e camisas, recomendo ao menos, não vamos exigir demais, a leitura do poema Enjôo vespertino. Antes, porém, alguém saberia informar quantos CIEPS poderiam ser construídos com o dinheiro empregado na compra do aviãozinho do nosso ex-retirante ora turista nada acidental? “Por causa dessa dor/ Preciso dar um jeito/ De furar o olho vesgo/ Da ignorância./ Aquela coisa descolorida/ Que se transformou em cicatriz/ E foi moldando, aleijada,/ A minha vida./ Além desta costura brutal,/ Feita por açougueiros despreocupados, /Deve haver um país/ Onde as crianças/ Não tenham medo dos mortos/ E os vivos não estejam assim, /Tão pavorosamente mortos”. O Gaiteiro velho obriga Fausto a dar descanso às suas costumeiras metáforas desleixadas e utilizá-las como profecias sem deixar de ser crítico, bem-humorado, irônico e sarcástico.
O mestre André Seffrin diz na orelha do livro que Gaiteiro velho é um canto à morte e, humildemente, este aprendiz discorda, pois o Gaiteiro é Fausto, sua produção, sua história contada em detalhes, seu modo próprio de lutar contra a morte. O poeta apreensivo ante a vida estende a mão às crianças, estamos diante de um filósofo que sabe brincar sem desviar-se da realidade; preocupado com a infância, chamou um velho gaiteiro para deliciar as crianças. Na mala de garupa, o gaiteiro carrega a liberdade e a melancolia, o singelo e o cortante, o acordeom e a esperança no ser humano. Apesar da precariedade ética da espécie, o autor respeita o leitor. Tivesse vivido os anos 20 em Paris, engrandeceria, e muito, o grupo de Gertrud Stein, Ezra Pound, Ford Madox Ford e outros de análogo significado.
Gaiteiro velho é um livro que aponta para o futuro e ao mesmo tempo atiça a cada leitura a fogueira vital da saudade. Saudade da infância sem xuxas e de adultos preocupados em cuidar do povo. Saudade de Darcy Ribeiro, saudade do mundo que Marx viu, e Fausto e meu pai também viram, saudade de Erico Verissimo, Dyonélio Machado e Mário Quintana, saudade da simplicidade, saudade das ruas sem crianças abandonadas… E me veio a lembrança uma frase do próprio Fausto que, no momento, não recordo onde li: “Já não é mais a morte que me mete medo, é a possibilidade de morrer sem entender este maldito enredo”. Agora fica claro por que é tão comum ler e ouvir que é “um maldito”, este que de maldito não tem nada, trata-se na verdade de uma qualificação simplista, criada pelos covardes e invejosos para designar os indispensáveis. Se À mão esquerda é um dos três maiores livros da literatura brasileira, Gaiteiro velho — vociferai, ó despeitados — é um de nossos mais densos e reflexivos livros de poesia.