Canção fúnebre

Em sua vasta obra, Sándor Márai recorre a recursos narrativos múltiplos para tratar de sua obsessão pelo passado
Ilustração: Sándor Márai por Robson Vilalba
01/02/2013

“Nascido com o século 20” é o que se costuma dizer sobre Sándor Márai — e o mesmo poderia ser dito de Borges, Nabokov ou Hemingway.

É irônico constatar, portanto, após a leitura dos livros de Márai, o quão dependente o universo desse autor é do século 19 — de seus ritos, seus gestos, seus costumes e suas instituições. O contato já fica evidente no título de um de seus livros: Confissões de um burguês(que não é exatamente uma autobiografia, mas uma “ficcionalização biográfica”).

Diante da vasta obra de Márai — literalmente dezenas de volumes, contando os póstumos — é preciso estabelecer um percurso: tratarei nesse ensaio de Confissões de um burguês, publicado em volumes entre 1934 e 1935; Libertação, escrito durante a 2ª Guerra Mundial mas publicado somente depois da morte do autor; e De verdade, romance composto de partes escritas em fins da década de 1940 e fins da de 1970.

De verdadeé o mais ambicioso e complexo dos três. A primeira metade, De verdade, foi publicada na Hungria no início dos anos 1940; a segunda parte, Judit e a fala final, foi finalizada por Márai em 1979. Depois de sua morte, as edições e traduções passaram a incluir também a segunda parte, que é o que acontece na edição brasileira (também na italiana, cujo título é La donna giusta, e na norte-americana, Portraits of a marriage).

A própria variedade de traduções para o título reflete a complexidade da história do livro (a tradução ao português é quase literal, já que Az igazi — o título original em húngaro — significa “o real”). Cada metade é dividida em duas — e para cada parte, um narrador (totalizando, portanto, quatro narradores em De verdade). São quatro monólogos que giram em torno de um casamento e suas conseqüências: 1) a mulher que avista o ex-marido em um café, comprando “cascas de laranja cristalizada”; 2) o ex-marido, que avista a sua segunda esposa (e seu segundo divórcio) entrando num carro com outro homem; 3) a segunda mulher que, em Roma, muitos anos depois, conta a um amante como se casou com o homem do segundo monólogo (que era casado e fora seu patrão); 4) o último monólogo, bem mais curto que os anteriores, é do amante da segunda mulher, que resume toda a trama para um interlocutor invisível, dentro de um bar em Nova York:

…pois vou te contar, meu garoto. Vou te contar como é. Tome cuidado apenas para passar longe dos que trabalham com cimento. Que está olhando?… Não sabe o que é isso? Não assiste tevê?… Ei, você é muito cru ainda. Tem muito para aprender nesta aldeia grande e biltiful, Nova York. Dá pra se ver que você veio tarde, por grana ou dissidente. Fique feliz se te derem o visto. E escute. Porque há muita gente inútil apertada por aqui. Mas nós dois, de Zalá, devemos ficar juntos.

A chave está no monólogo, que é um artifício fundamental na obra de Márai — e é também o monólogo que nos leva novamente ao século 19 e ao caráter profundamente “teatralizado” da prosa desse autor (decorrente, em parte, de sua leitura fiel de August Strindberg). Nesse aspecto, Confissões de um burguêsé bastante semelhante a De verdade, com a diferença de que apenas uma voz aparece — a do burguês que confessa, e que é em grande medida a voz do próprio Márai, relatando sua infância, suas viagens de juventude e o início de sua carreira de jornalista e escritor. É o monólogo que sustenta seu livro mais conhecido, As brasas, no qual o general Henrik repassa toda sua vida diante do ex-companheiro Konrad (um interlocutor bem semelhante àqueles que encontramos em De verdade).

Máscaras da verdade
As Confissõesnão são desafiadoras em termos de narrativa — são lineares e cronológicas. O resultado final é um conjunto um pouco amorfo de reminiscências e histórias pitorescas sobre famílias, dinastias, hábitos alimentares, vestuário, relações entre patrões e empregados, crescimentos das cidades, das aldeias e dos povoados, meios de transporte e muito mais:

Uma vez, uma única vez, confiaram-me a compra do par de sapatos “que eu quisesse”; depois do almoço meu pai me estendeu uma cédula de cinqüenta coroas, e de noite cheguei em casa com o sapato “mais caro” que havia na cidade: não as botas com botões que eu costumava usar, mas um sapato de janota, de amarrar, amarelo-canário, forrado de antílope, pelo qual pagara quarenta coroas, cuja visão fez minha mãe chorar aos soluços; o tema do sapato foi recorrente na família durante anos, e parentes mais distantes também o mencionavam, lamentando que eu “acabaria mal” se não me emendasse urgentemente.

De verdade tem a virtude de, ao menos, multiplicar os pontos de vista, desenvolvendo, a partir disso e a partir da sobreposição dos monólogos, uma interessante reflexão sobre a confiabilidade da própria narração (o procedimento é levado ao extremo no Faulkner de Enquanto agonizo, e reproduzido no mais recente Últimos pedidos, de Graham Swift). Um mesmo fato, gesto ou palavra é relatado primeiro pela mulher, depois pelo seu ex-marido e, finalmente, pela segunda esposa e ex-empregada. O próprio título se justifica diante desse jogo de máscaras da verdade, que é sempre relativa e dissimulada. Um trecho do primeiro monólogo:

“Eu não quero a infelicidade dele. Se ele não pode ser feliz comigo, que vá embora, que procure a outra.”

“Quem?”, perguntou minha sogra, enquanto examinava com muito cuidado os pontos do tricô, como se aquilo fosse o mais importante.

“A de verdade”, eu disse áspera.

“Você sabe dela…?”, perguntou baixo minha sogra, sem olhar para mim. 

E, ao final de seu monólogo, ela diz: “O que descobri?… Bem, que não existe mulher de verdade”. O tema ecoa também no monólogo seguinte, de seu marido, de forma bastante requintada: ele está contando ao seu interlocutor como soube da conversa de sua ex-mulher com a amiga, justamente naquele dia em que o viu comprando “cascas de laranja cristalizada para a minha segunda mulher”. O protagonista do segundo monólogo, consciente do encontro que gerou o primeiro monólogo, reflete sobre esse fato na abertura de sua fala — “as duas mulheres, a minha primeira e a amiga, falaram de tudo”, relata, e continua:

E a primeira contou para a amiga que gostava muito de mim, quase havia morrido quando nos separamos, mas depois se acalmara, porque tinha descoberto que não era eu o homem de verdade, mais exatamente, eu também não era o homem de verdade, e, ainda mais exatamente, se isso é possível, descobrira que o de verdade não existia. 

O romance de Márai, portanto, postula uma busca pelo inexistente, pelo vazio, por tudo aquilo que escapa — aquilo que está sempre além da linguagem, da memória ou da história. Essa constatação pode abarcar também as Confissões de um burguês, uma vez que no centro desse romance também está a desconfortável consciência do “fim de uma era”, ou seja, a derrocada do ambiente burguês no qual Márai foi criado. É evidente que, na década de 1930, quando publica Confissões de um burguês, Márai não poderia estar ciente da amplitude que essa derrocada ainda poderia alcançar — a 1ª Guerra Mundial implodiu o Império Austro-Húngaro e desfigurou a Hungria, mas a guerra seguinte e a posterior ocupação soviética mostrariam que aquilo era só o começo. Daí decorre, por exemplo, a mudança de tom que separa Confissõesda segunda metade de De verdade, Judit e a fala final, na qual a sordidez das fugas, dos esconderijos e do abandono das perspectivas é muito pronunciada.

Instantâneos da destruição
É nesse ponto que a leitura de Libertação se torna importante. Escrita logo depois da 2ª Guerra Mundial, mas publicada depois da morte de Márai, essa novela consegue aliar experiência direta e reconstrução ficcional, apreendendo a dramaticidade do conflito a partir da trajetória de uma mulher, Erzsébet. Ela consegue circular pela Budapeste ocupada pelos nazistas por conta de documentos falsos, mas sua preocupação principal é a situação de seu pai, um importante intelectual perseguido pelos fascistas húngaros. Na expectativa da invasão soviética (o front oriental está cada vez mais próximo de Budapeste), Erzsébet precisa encontrar um abrigo para si e outro para seu pai.

O tom de Libertação é completamente diverso, seja das Confissões, seja do romance De verdade. Com o uso da terceira pessoa, Márai apresenta uma mobilidade narrativa que está ausente dos outros dois livros, além de se forçar a dar profundidade psicológica à trama a partir de imagens e descrições, e não a partir dos devaneios autocentrados que marcam sua utilização da primeira pessoa. A lamentação fluida e sem objeto das Confissões, por exemplo, desnorteada por conta da vastidão e da indeterminação daquilo que se perdeu, transforma-se, em Libertação, em uma vigorosa canção fúnebre: Erzsébet percebe a dissolução de uma época nas ruínas dos edifícios, nos cadáveres espalhados nas ruas, na destruição programada das pontes sobre o Danúbio. “Era como se nada mais a interessasse; parou, perturbada, e olhou perdida em torno. A paisagem conhecida da cidade ardia em chamas e fumaça”.

A concisão e a força narrativa de Libertação contrastam muito com o distanciamento que Márai coloca em algumas palavras de Confissões— as poucas linhas que dedica à sua participação na 1ª Guerra Mundial:

Eu tinha dezessete anos quando fui chamado pelo exército, pela formatura nos tempos de guerra passamos aos trancos e barrancos, meus colegas de escola foram levados para Isonzó, onde dezesseis deles foram trucidados assim que chegaram; eu mesmo, com Ödön, selecionado para a artilharia, transitei entre um hospital e outro; depois assistimos à revolução, e esperamos o momento em que por fim poderíamos viajar para o exterior…

Em Libertação, a mediação narrativa do confronto com a guerra busca um efeito de contundência: “Erzsébet sentia que havia ordem no país. Pensava com ironia na ordem, que na verdade era de extermínio e destruição” ou “O que poderiam ter feito? Essa era a pergunta que ninguém enunciava e que bradava na mente das pessoas”. O narrador, que segue os passos de Erzsébet pela cidade e, a partir desse trajeto, captura instantâneos da destruição, procura dar conta do amargor de uma realidade que é marcada pela traição, pela fome e pelo desespero.

A determinada altura, o drama de Libertação se desloca para um porão, um esconderijo com dezenas de pessoas amontoadas, compartilhando odores, dejetos e a espera. Os russos estão chegando a Budapeste, trazendo a ainda desconhecida e amarga “libertação”. Os alemães estão encurralados e podem decidir metralhar a todos antes da retirada. A agonia do esconderijo, sua carga ambivalente — morte e libertação sempre em paralelo, junto com a incerteza e a esperança. “Não se pode olhar dessa forma para as pessoas. Os animais vivem melhor”, fala Erzsébet. “Agora sinto que algo está acontecendo. Não sou bolchevique, mas sinto, entende? Sinto com meu corpo que os russos vão trazer algo, que vamos sair, o senhor e eu, e todos os outros, judeus, cristão, proletários, senhores, vamos sair dos porões, vamos voltar para a superfície da Terra, e tudo será melhor”.

Os três livros apresentam sensíveis diferenças: enquanto Confissões de um burguêsvai progressivamente em direção ao futuro, com sua série de fragmentos memorialísticos, De verdadese desloca para o futuro no posicionamento dos narradores, mas os fatos são sempre os mesmos, já encobertos pela cortina de fumaça do tempo; a complexidade no trato dos fios narrativos, tão presente em De verdadee fundamental para a eficácia de seu efeito estético, é irrelevante para a consideração de Libertação, que extrai sua força de uma visão narrativa incisiva e panorâmica, sem ter a extensão que auxilia o jogo de oscilação dos sentidos que encontramos em De verdade. Por outro lado, todos eles se encontram no primeiro plano da obsessão recorrente de Márai: usar a ficção como ferramenta de prospecção do passado, transformando o esquecido (o recalcado e o traumático) em partícula viva e atuante na experiência de seu tempo presente.

Sándor Márai
Nasceu em 1900, em Kassa, no então Império Austro-Húngaro. Famoso e muito lido na Hungria dos anos 1930-40, sua obra ficou quase esquecida no Ocidente durante a ditadura comunista. Suicidou-se em 1989, na Califórnia.
Kelvin Falcão Klein

É crítico literário, autor de Conversas apócrifas com Enrique Vila-Matas (Modelo de Nuvem, 2011). Escreve em falcaoklein.blogspot.com.

Rascunho