Autor de centenas de artigos e ensaios, além de 22 livros, João Adolfo Hansen é um dos intelectuais mais importantes do Brasil do século 20. Como crítico e historiador da literatura, suas proposições podem ser consideradas um divisor de águas nos estudos das letras luso-brasileiras anteriores ao século 19. Além disso, dedicou-se ao estudo de um amplo arco de matérias: a obra do padre Antônio Vieira, a poesia de Gregório de Matos, as letras setecentistas, a obra de Machado de Assis, os modernistas (Drummond, Clarice Lispector, Cecília Meireles e outros). Escreveu sobre obras recentes e sobre clássicos como Dante, Cervantes, Camões etc., além de contribuições para os estudos de música antiga e das artes plásticas. Em 2019, a Edusp lançou Agudezas seiscentistas e outros ensaios, primeiro volume com os principais textos críticos do autor.
O conde Lucanor, no Livro dos exemplos, conta a história de um rei que, enganado por tecelões burladores, andava nu e todos à sua volta, para agradá-lo, atestavam a beleza das vestes que não trazia. O escritor dinamarquês Hans Christian Andersen reelaborou a história no conto A roupa nova do rei e tornou-a famosa. No caso, um menino aponta a nudez do rei e os súditos, movidos pela coragem da criança, confirmam a realidade, anulando a soberba do monarca. De volta à nossa matéria e tendo em conta a crítica e a historiografia da literatura brasileira praticadas desde o século 19, a obra de João Adolfo Hansen denuncia corajosamente a nudez do rei. Com rigor analítico e inteligência, levanta questões cruciais sobre categorias críticas aplicadas mecanicamente e pergunta: é possível haver nacionalismos antes da nacionalidade? O que são as categorias “literatura”, “autor” e “originalidade” em práticas letradas nas quais a imitação é um princípio determinante? Como funcionam as convenções poéticas e retóricas nas práticas discursivas anteriores ao século 19? Qual é a convenção de “tempo histórico” específica de cada época ou de cada obra? O que é um autor? A noção de “alma” é a mesma em Dante e em Machado de Assis? O que é a publicação de uma obra numa sociedade de práticas orais e manuscritas? O que é um livro? No caso, a última pergunta é o título de uma obra de 2013, na qual se propõe um amplo debate acerca da noção aparentemente óbvia de “livro”, um objeto em nada natural e, sim, um artefato material e simbólico.
No âmbito mais amplo dos estudos literários e das ciências humanas em geral, o pensamento de Hansen dialoga e se integra com as principais correntes e autores do século 20, dentre eles, Roger Chartier e Michel de Certeau, com os quais mantém amizade e interlocução. Em 1983, com O o: a ficção da literatura em Grande sertão: veredas, Hansen propõe novas possibilidades de ler a obra de Guimarães Rosa, para além dos esquemas sociológicos regionalistas recorrentes na crítica brasileira. Conforme Leon Kossovitch, no prefácio do livro:
Hansen faz proliferar os nomes, geração de línguas, todas elas roseanas, saídas da escrivaninha, mas, não menos, do cerrado, quando não da Floresta Negra, em uso quase sempre retorcido, motivação arbitrária que arrepia etimologias, pois procede de não se sabe onde e de lugares batidos.
Geralmente, as preocupações teóricas estão presentes nos principais ensaios de Hansen, seja pela revisão seja pela refutação de categorias analíticas, ajustando-as ao texto e não o contrário: é a obra que dita os caminhos de sua inteligência. Alguns ensaios são eminentemente teóricos, tais como Autor, publicado no livro Palavras da crítica, organizado por José Luis Jobim; ou Discreto, publicado em Libertinos, libertários, de Adauto Novaes. Em 1985, publicou Alegoria: construção e interpretação da metáfora, outro estudo de feição teórica e de revisão histórico-literária da noção fundamental de metáfora. Na terceira edição, lançada em 2006 pela Hedra, lê-se a seguinte observação: “esgotado desde sua segunda edição, em 1987, (…) é um estudo fundamental para todos aqueles que trabalham com interpretação de textos e imagens”.
Admiradores e opositores
Em todo caso, foi com A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahia do século XVII, publicado pela Companhia das Letras em 1989, que o nome de João Adolfo Hansen alcança projeção no polêmico campo da “Literatura Colonial Brasileira”. O prêmio Jabuti, de 1990, e a presença em jornais e revistas fazem com que suas pesquisas e ideias obtivessem grande difusão, arregimentando admiradores e opositores. A tese do livro refuta aspectos tradicionais dos estudos sobre as letras e as artes antes do século 19, dentre outros, as proposições idealistas, centradas na noção de “estilos de época” ou projeções nacionalistas. Demonstra a inconsistência de noções como “Clássico” e “Barroco”, tais como aparecem em manuais de história literária, inventadas por Heinrich Wölfflin e Alois Riegel e, portanto, refuta os usos de categorias anacrônicas recentes, amplamente utilizadas para classificar modos heterogêneos de escritas e de estilos que circulavam nas letras e nas artes praticadas até, pelo menos, o século 18. Com isso, pôs em evidência e em revisão dogmatismos críticos repetidos mecanicamente nos estudos literários:
Pode-se, com rigor, falar de “literatura brasileira” na colônia ou, simplesmente “literatura”, nos séculos 16 e 17? As expressões são anacronismos. Antes de 1822, óbvio, não há “Brasil” na acepção de “nacionalidade” implícita em “Literatura Brasileira”. E a prática e o conceito de “Literatura” datam do Iluminismo, pressupõem os Estados Nacionais; a ordenação progressiva do tempo; a impossibilidade de repetição histórica; a separação do público/privado; o indivíduo burguês, auto representado como livre-concorrência, direitos, consciência e psicologia; a extinção da retórica e da “mímesis” aristotélica; a “originalidade” como mercadoria cultural; a nova divisão dos saberes, em que o livro de ficção ou de poesia é Arte, como “desinteresse estético” etc.
(Metáforas barrocas do Brasil. Caderno Mais, Folha de S. Paulo, 1995).
O rei está nu, apontava Hansen, e logo apareceram reações favoráveis e contrárias. Dentre as oposições, talvez a mais célebre encontra-se nas páginas da Folha de S. Paulo, no suplemento literário Mais, de 1996, quando João Adolfo Hansen e Haroldo de Campos protagonizaram um debate em torno da poesia atribuída a Gregório de Matos. De um lado, Haroldo de Campos, com o artigo Original e revolucionário, defendeu a “inegável originalidade” da poesia do poeta baiano, tido como notável ancestral da poesia nacional. Do outro lado, o neófito, crítico igualmente perspicaz, em Floretes agudos e porretes grossos, propôs que os diferentes parâmetros históricos e filológicos de autoria e escrita descartam os conceitos modernos de “plágio”, de “intertextualidade” e, sobretudo, a noção iluminista e romântica de “originalidade” como categoria satisfatória para a leitura da poesia baiana do século 17. Além disso, a ausência de autógrafos e as práticas letradas seiscentistas apontam para uma produção artística compartilhada e não propriamente uma individualidade criadora.
E assim A sátira e o engenho apareceu e modificou radicalmente a abordagem das letras anteriores ao século 19, sobretudo com a ampliação das categorias críticas e os princípios historiográficos e filológicos à disposição. Em sintonia com a nova abordagem, no início dos anos 2000, com a tese Critica textualis in caelum revocata? Uma proposta de edição e estudo da tradição de Gregório de Matos e Guerra, Marcello Moreira ampliou ainda mais as propostas de Hansen, demonstrando exaustivamente as dinâmicas de produção, circulação e classificação da poesia atribuída a Gregório de Matos. Posteriormente, os dois especialistas realizaram uma das mais importantes edições dessa poesia, numa monumental publicação em cinco tomos. O último volume, além de glossários e a bibliografia, contém um laborioso estudo, feito a quatro mãos, sobre os modos de produção e de circulação da poesia nas terras luso-brasileiras antes do século 18.
Padre Vieira
No estudo das letras do século 17, destacam-se os trabalhos sobre a obra do padre Antônio Vieira. Os primeiros textos sobre o tema apareceram no final dos anos 1970 e, desde então, são quase 50 anos de estudos ininterruptos. Na edição recente das Obras completas do padre Antônio Vieira, dirigida por Eduardo Franco, com a colaboração de numerosos especialistas de várias partes do mundo, coube a Hansen, além de outros textos, o ensaio introdutório da Clavis Prophetarum (Chave dos profetas), uma das obras mais emblemáticas da produção vieirina. Em 2003, Hansen organizou um volume de carta do padre Vieira, publicado pela Hedra com o título Cartas do Brasil, cujo ensaio introdutório é um dos principais estudos sobre o tema. Ademais, ao tratar das letras jesuíticas (as obras de Anchieta, Nóbrega, Fernão Cardim, Simão de Vasconcelos, entre outros), Hansen reivindica a reconstituição das categorias históricas pressupostas nos textos, tanto as poético-retóricas, provenientes das preceptivas linguísticas do passado, como as noções culturais e teológicas específicas, tais como: “Providência”, “alma”, “Razão de Estado”, “Guerra Justa”, “liberdade”, “hierarquia” etc., lançando novas luzes na interpretação dessas produções letradas.
Assim, no âmbito da historiografia literária praticada no Brasil desde o século 19, herdeira das proposições nativistas de Ferdinand Denis e Wolf, passando pelas metodologias específicas de Silvio Romero, de José Veríssimo, de Ronald de Carvalho e outros, até os mais recentes, como as notórias abordagens de Antonio Candido e de Afrânio Coutinho, utilizam-se noções e modelos teóricos comprometidos com a demonstração de um sistema orgânico progressivo das produções literárias, cujo fim é a definição do que se pretende como “Literatura Brasileira”, numa perspectiva de que a “Literatura” seja o repertório representativo da identidade nacional. Com isso, o cânone “nacional” reduz-se àquelas obras que melhor respondam aos critérios nativistas requeridos. Na tese de Hansen, além da discussão de conceitos como “literatura”, “práticas letradas”, “escrita”, “autoria”, “circulação” e muitos outros, que demonstram a historicidade dos termos, refutam-se noções naturalizadas pela crítica tradicional, tais como “barroco”, “nação”, “cor local”, “gênio nacional” etc. e propõe-se a aplicação de categorias interpretativas particulares pertinentes às obras analisadas. Com isso, houve uma notável ampliação dos objetos de interesse, ou seja, do cânone histórico disponível, e das chaves de leitura. Mais ainda, reativaram-se concepções discursivas desaparecidas, apagadas pelas mudanças da cultura, ou substituídas por noções extemporâneas, tal como observa Hansen:
As categorias escolásticas que compõem a pessoalidade “eu-tu” no processo de interlocução dos discursos são ignoradas e substituídas por categorias liberais e psicológicas da subjetividade burguesa; a orientação metafísica, religiosa e providencialista do sentido da história, que é própria da política católica portuguesa em luta contra a heresia maquiavélica e luterana, é eliminada e substituída por concepções evolutivas, iluministas e liberais, formativas, progressistas e nacionalistas; a regulação retórica dos preceitos artísticos e das formas, além da interpretação teológico-política da sua significação e do seu sentido, são apagadas, propondo-se em seu lugar categorias estéticas exteriores, como a expressão da psicologia dos autores, a oposição “forma/conteúdo”, o realismo documental, a antecipação protonacionalista do Estado nacional brasileiro. Além disso, o uso naturalizado da noção de “Barroco” para classificar essa poesia e totalizar seu tempo generaliza transistoricamente as definições liberais, às vezes marxistas, das noções de “autor”, “obra” e “público”.
Em 2001, a revista Teresa, no seu número 34, publicou um dos ensaios mais célebres de João Adolfo Hansen, o Barroco, neobarroco e outras ruínas, texto mais de uma vez reproduzido em outros periódicos ou coletâneas. Trata-se de uma pormenorizada exposição teórica e metodológica sobre o estudo das práticas letradas antigas, cujas especificidades demonstram convenções outras de leitura e de interpretação, de modo que a alteridade do passado se dê a conhecer, com doutrinas e juízos próprios. Para tanto, discutem-se os termos e os meios de acessar as ruínas discursivas, segundo “regras de intervenção” que não as descaracterizem:
O passado está felizmente morto e seus restos só interessam no presente como material para um trabalho de destruição de universalismos que descartam sua historicidade. Os mortos só interessam na crítica dos vivos e dos muito vivos.
Vários ensaios importantes de Hansen foram publicados como prefácio ou introdução de livros com os quais colaborou, direta ou indiretamente. É o caso do texto de abertura do livro Teatro do sacramento, de Alcir Pécora, de 1989. Naquele momento, apenas os dois críticos poderiam dialogar em pé de igualdade, no estado em que se encontravam os estudos sobre os sermões do padre Antônio Vieira. Essa fecunda interlocução resultou, dentre outras colaborações, no livro Poesia seiscentista, publicado pela Hedra em 2002. Trata-se de uma antologia da chamada “poesia de agudeza”, organizada por Pécora. O ensaio introdutório, assinado por Hansen, é um incontornável estudo sobre a recepção e a interpretação daquela poesia. Em 2008, um ensaio da mesma envergadura, intitulado Introdução: Notas sobre o gênero épico, antecede as obras organizadas por Ivan Teixeira no volume Épicos, publicado pela Edusp e a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Também de 2008 é o prefácio de Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco e a construção do herói colonial, livro de Guiomar de Grammont. Em 2011, escreveu o volumoso prefácio do já citado Critica textualis in caelum revocata?, de Marcello Moreira, obra crucial para os estudos das letras praticadas no Brasil do século 17 e 18.
As intervenções intelectuais de João Adolfo Hansen, desde os anos 1970 até nossos dias, têm enriquecido os estudos literários e o debate das ciências humanas em geral, com ideias corajosas e instigantes. Com atuação vigorosa, Hansen milita em favor da cultura como um direito inalienável e meio de ação e transformação social.