Das incertezas

Viver de maneira incerta parece ser uma marca registrada que veio para permanecer
Ilustração: Conde Baltazar
01/09/2024

Os tempos atuais não são apenas velozes, efêmeros e fugidios, mas também colocaram as incertezas no cotidiano de todos nós de maneira quase absoluta.

Essa afirmação, que poderia servir para qualquer período da história, e de certa forma assim o é, vive um frenesi, que vai do cidadão comum no seu cotidiano aos grandes desafios que a política, a economia, as tensões sociais nos impõem.

Reflito sobre isto a partir das fricções sociais no círculo de amigos, colegas e conhecidos até às leituras e notícias que nos chegam a cada segundo nos meios virtuais. Viver de maneira incerta parece ser uma marca registrada que veio para permanecer um tempo ignorado, tão incerto quanto essa sensação que nos perturba e nos desestabiliza.

Tivemos recentes traumas coletivos dessa possibilidade do incerto na pandemia do covid-19, que ceifou milhões de seres humanos e explicitou as incertezas de forma brutal e gigantesca ao colocar diante de nós a dúvida se estaríamos vivos a curtíssimo prazo. Incertas também foram as indicações de prevenção e tratamento que oscilaram do pouco que se sabia do vírus na pesquisa científica à inesgotável cretinice das receitas permeadas de ignorância e má-fé. Mesmo após a conquista inquestionável das primeiras vacinas que salvaram a humanidade, persistiu a incerteza fomentada pelos negacionistas da necropolítica.

O guarda-chuvas da pandemia que nos colocou a todos sob ele, na verdade, é apenas uma funesta ilustração dos múltiplos temas que nos acolhem no universo de incertezas a que estamos submetidos num mundo em acelerada transformação. Incertezas e medos geralmente andam juntos e pode-se dizer que alguns fenômenos que nos preocupam diária e intensamente nos atingem enquanto coletivo. Nas grandes metrópoles as incertezas e o medo vão da segurança pessoal nas ruas e nas residências à precariedade dos empregos e das remunerações que sustentam famílias e que são, cada vez mais, itens incertos e tênues, já que contingentes de trabalhadores e trabalhadoras têm seus ofícios degradados na farsa do “empresário de si próprio” e da meritocracia que exala iniquidade.

Poderia listar aqui um sem número de incertezas que nos metem medo e dúvidas relacionadas às guerras genocidas em curso, às ameaças de permanência ou retorno de governantes autoritários e fascistas, os desastres ambientais e a urgência ecológica, entre muitos outros que nos aglutinam no desespero do incerto amanhã.

Talvez, mais do que nunca, e certamente motivados pela hiperconectividade virtual que acelera mais a desinformação que a informação, o que mais ouvimos é o sentimento desastroso do beco sem saída. É como se a ausência das certezas que ampararam o mundo em longos períodos, geralmente marcados ou pela ignorância e/ou pela truculência de governos severamente autoritários e opressores em relação à maioria, tivesse ceifado a alegria e a tranquilidade que teriam nos sustentado em outras épocas.

A literatura e a história nos mostram esses impasses humanos em inúmeras obras ao longo dos séculos. A saga de Umberto Eco em O nome da rosa e o tema da proibição da leitura do segundo livro da Poética de Aristóteles é exemplar neste sentido. De um lado, Eco nos apresenta o velho monge Jorge de Burgos que, ao fazer de tudo para ocultar a obra e deixá-la inacessível, o faz porque entende que o riso é uma fonte de incertezas e, portanto, apenas cria imensas dificuldades ao enfrentamento da vida pelos homens. Em oposição, e baseado no pensamento aristotélico que considera o riso uma característica central do ser humano e reflexo de sua racionalidade, portanto, instrumento fundamental na administração da vida, está o personagem Guilherme de Baskerville.

O que me faz compartilhar essas leituras das incertezas contemporâneas, ou ao menos a sensação de que elas estão muito profundas no nosso cotidiano e nos conduzindo de maneira equivocada na tomada de decisões pessoais e coletivas, tem relação a outras leituras que já fiz nessa coluna e que dizem respeito ao alto grau de não reflexão, de repúdio à crítica e ao pensamento que são cada vez mais incentivados pelo achatamento do pensamento crítico, pela normatização de comportamentos de ódio à política e negação ao diálogo aberto e franco. A tergiversação sobre os problemas colocados pela organização política, social e econômica do planeta, o não enfrentamento das questões centrais que nos oprimem e estão nos levando a encruzilhadas destruidoras de seres humanos, tanto material quanto espiritualmente, surfam sobre as incertezas, tendo-as como combustível estratégico para assegurar podres poderes.

Os beneficiários visíveis desse processo cruel de destruição do pensamento autônomo de cada um de nós estão estampados numa sociedade repleta de “influencers”, “coachs”, “autoajudas”, “redentores pela fé”, “salvadores da pátria”, entre outros muitos e variados embustes que propõem de tudo, menos buscar a reflexão baseada na razão, na evidência científica e no diálogo proporcionado por políticas inclusivas e democráticas. Em vez da reflexão de um texto literário, impõe-se a exaltação da receita simplória; ao instrumento da dúvida, impõe-se o texto fácil de 140 caracteres. Treinar tornou-se, há muito, mais prestigioso e lucrativo que formar.

A violência da dominação expressa-se não somente na força das armas que matam aos milhares, mas alicerça-se no medo e na incerteza que estão sendo cotidianamente cultivados pelo “mercado” que nos entende apenas como seres quase humanos que só servem para consumir e servir. Evidentemente tudo isso se traduz em regras, normas e comportamentos que se impõem na economia, no mercado de trabalho e nas necessidades de sustentabilidade de cada um e de suas famílias. Não é uma opção, constitui-se num sistema articulado com objetivos estratégicos.

Essas leituras foram inspiradas por um livro que é um alento contra a não reflexão que nos assola. Trata-se do bem editado livro de Nilma Lacerda, Cartas do São Francisco — novas e antigas conversas.

Ressalto o capítulo Buscar perguntas, construir respostas, texto que coloca com rara felicidade uma síntese das posições de autores referenciais para a literatura e seu lugar na sociedade. Nilma nos conduz ao saudável elogio da incerteza dos resultados e do lugar da literatura, e o faz com elegância ímpar e erudição necessária. É um antídoto contra esse mundo de mediocridades que nos conduz ao vazio.

Não resisto em adiantar ao leitor que, ao dialogar com Graciela Montes, Winnicott, Primo Levi, Antonio Candido, Marina Colasanti, Georges Bataille e Roland Barthes, a autora aborda duas questões para a leitura literária que são imprescindíveis quando construímos políticas públicas para a formação de leitores.

A primeira, sobre a necessidade da leitura literária, está no parágrafo alusivo a Antonio Candido e o seu O direito à leitura:

Pensamos, em geral, que a literatura é formadora por transmitir conhecimentos, expor dilemas éticos resolvidos em favor do bem, ajudar a formular regras de comportamento. Candido, no entanto, afasta-se dessa perspectiva moralista (…) constatando que a literatura “nos organiza, nos liberta do caos e portanto nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade”.

A segunda, baliza para evitar a redução de políticas às receitas infalíveis de salvação muito fomentadas por leituras polianas da realidade, está às páginas 117 e 118:

Estamos de acordo que a literatura, em seu iniludível compromisso com o humano, colabora na elaboração das perguntas e na construção das respostas para o enigma da existência, mas é preciso ficar claro que a literatura não salva ninguém. (…) A literatura não ensina bons modos, não é garantia de nada. Sua única função é lembrar-nos do humano.

Em um mundo que vive a complexidade da exaltação da ignorância e da violência como solução para os conflitos e as incertezas, as reflexões de Nilma Lacerda são iluminações e mostram o quanto necessitamos de mais literatura em nossas vidas.

José Castilho

É doutor em Filosofia/USP, docente na FCL-Unesp, editor, gestor público e escritor. Consultor internacional na JCastilho – Gestão&Projetos. Dirigiu a Editora Unesp, a Biblioteca Pública Mário de Andrade (São Paulo) e foi secretário executivo do Plano Nacional do Livro e Leitura (MinC e MEC).

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