Todas as coisas se amam e, por isso mesmo, todas as coisas terminam. É o que parece anunciar esta obra-prima da humanidade: Adeus às armas, de Ernest Hemingway. Uma história de amor que atravessou o século, por assim dizer, centrada na vida de dois guerreiros, participantes da primeira Guerra Mundial, cercados de balas e de afetos, esperançosos de um mundo maravilhoso que parecia se anunciar. Mas neste momento histórico em que a possibilidade de uma terceira grande guerra se anuncia, o mundo assiste, com certeza envergonhado, ao fim de um ciclo da literatura; ou, mais extensivamente, o fim de um ciclo da cultura intelectual, em pleno domínio da fantástica internet, em que o impresso rasteja e se humilha como se o homem e os seus dramas não mais existissem em meio à farra da tecnologia.
Não é por acaso, assim, que a editora que publicou a primeira edição brasileira deste belo romance — na tradução de Monteiro Lobato — anuncia a obra de Ernest Hemingway destacando os conflitos humanos gerados pela primeira Guerra Mundial com este título que parece se tornar real para a literatura que resfolega seus últimos suspiros num mundo que lhe nega qualquer interesse, indiferente. Sem qualquer preocupação com a sua agonia.
Desde que me sentei para escrever esta coluna, senti-me tocado por estas graves inquietações cada vez maiores e cada vez mais graves. Não que a literatura precise de manchetes e de capas de revistas para sobreviver. Mas é que o leitor reclama notícias e até de breves exames para conhecer a literatura que se produz no seu país, nos lugares mais diversos e nos mais diversos modelos. Deve, por natural direito à informação, saber quem escreve e como escreve.
E, mais ainda, como o seu país está ganhando e desenvolvendo sua cultura. Se não é assim, então está tudo errado. Decidi-me por Adeus às armas por representar tudo isso.
É certo que na época do lançamento deste incrível romance, o ano de 1929, a humanidade passava também por incríveis modificações, na verdade aterradoras alterações, já tendo atravessado uma primeira grande guerra que destroçara os espíritos, desmontara uma sociedade desorientada e desmotivada. Daí por que as contradições se adensavam e o Homem procurava com argúcia e balas o seu lugar no mundo. Os dois primeiros decênios mostravam esta inquietação extraordinária sobretudo no campo das artes e na literatura, que via nascer desde o fim do século passado e no princípio do novo século com vanguardas notáveis, reveladoras e obras literárias surpreendentes, incríveis. Vem daí o romance de Proust tentando apreender o tempo, de um lado e, do outro, o trabalho de Joyce desmontando o tempo, desmanchando o Ser.
Observe, então, os dois lados da moeda, de um lado aquele que compacta o tempo, dando-lhe um único bloco de passados, de presentes e de futuros reunidos, e, do outro, o tempo desmontado, desarmonizado, desorientado. Tempo de muitas mudanças. Estamos assim diante de uma intensa perplexidade do Ser.
Sem esquecer jamais que ambos os livros escritos e publicados em datas próximas — Em busca do tempo perdido, entre 1913 e 1918, e Ulysses, entre 1914 e 1921 —, ou seja, em plena primeira grande guerra, quando a humanidade se desmancha, e marcavam, assim, a nossa trajetória sobre o dorso do mundo debatendo-se e sacrificando. Desmontando-se e reinventando-se.
Dentro deste quadro revela-se Adeus às armas, apresentado pela editora brasileira como um “pungente retrato de conflitos humanos”. Assim, apesar dos trágicos problemas da época, a literatura manteve sua inquestionável importância com os jornais mais lidos anunciando e analisando as obras de autores das mais diversas tendências, ajudando a construir o mundo, como é de sua missão, geralmente em suplementos ricos em informações e exames aprofundados.
O romance de Hemingway começa com uma cena aberta de grande angular, tentando seduzir o leitor pela denúncia da agressão à natureza provocada pela forte atuação dramática do homem, mas nesta edição há um erro grave de tradução/revisão. “No último verão daquele ano…” Ora, o ano só tem um verão. E aí se aplica a surpreendente e renovadora técnica do olhar do personagem que, afinal, é o narrador plural…
“…víamos as montanhas.”
As montanhas para lá do vale e a lomba onde cresciam os castanheiros foram capturadas e também houve uma vitória além da planície, no platô ao sul; as folhas caíram cedo naquele ano. Víamos as tropas em marcha sempre envolvidas numa nuvem de pó e o pó acamava-se sobre as folhas. E depois que os soldados passavam, a estrada estendia-se deserta e branca, só pintadas pelas folhas secas.
Mesmo assim, a cena final é destacada pelos estudiosos como uma das mais belas até hoje escritas num romance, exemplarmente exata e justa, nenhuma palavra se destacando mais do que as outras, como queria Flaubert:
Mas depois que as expulsei dali, fechei a porta e apaguei a luz. Era como se eu estivesse me despedindo de uma estátua. Saí. Fui para a rua — e regressei ao hotel a pé, lentamente sem dar atenção à chuva.