Em julho deste ano ganhou a imprensa internacional uma “desconcertante revelação” de Andrea Robin Skinner, filha da canadense Alice Munro (Prêmio Nobel de Literatura 2013), que, segundo matéria da BBC News, faria “o mundo literário reavaliar o legado de Munro”. Em que consistia a revelação? Num caso de abuso sexual do padrasto de Andrea, com quem a escritora foi — e permaneceu — casada mesmo tomando conhecimento do fato. Esse episódio ilustra muito bem a anulação de pensamento que a literatura tem sofrido, a reboque de leituras reducionistas e confusões entre vida e obra de um escritor, como se a moral desse escritor ou dessa escritora, nos aspectos de sua vida privada, pudesse servir como critério de juízo do seu trabalho literário. Ou o inverso: que personagens moralmente horripilantes denunciem moralmente seu autor, e sejam, obra e autor, cancelados por péssimas leituras e interpretações a serviço de discursos sobre abuso, racismo, misoginia etc.
A esse tipo de leitura e de discurso, que se espalha por debates que se pretendem literários e mais não fazem que rebaixar a literatura a causas e interesses extraliterários, a argentina Ariana Harwicz responde sem pruridos morais ou de outra ordem:
Na escrita, não há pacto possível com nada, não há barganha, não há atalho. O escritor é responsável apenas por sua obra.
Esse vigor incendiário, bem-vindo em tempos de espetaculares atalhos, pactos e barganhas, dá o tom das reflexões reunidas em O ruído de uma época, livro (e vigor) que todo escritor contemporâneo deveria provar, se não para abrir os olhos, ao menos para ser chacoalhado em suas ideias e assim poder ouvir os próprios grilhões tilintarem.
A missão da literatura não é separar o carrasco de sua vítima ou julgar quem deve ser condenado à morte, mas sim transgredir.
E transgredir é também escrever contra si ou na “contraescrita” (no silêncio). O artista que transgride arrisca a própria imagem (e sua boa fama) e não compactua, por exemplo, com os limites da vida civil. “A arte não é o Ministério da Justiça, nem o Social, nem o das Mulheres, nem o da Igualdade, nem o da Família”, nos lembra Ariana.
O leitor que já passou pelos romances da autora (entre eles, Morra, amor, A débil mental, Precoce e Degenerado, também publicados no Brasil pela Instante) reconhecerá nas provocações de O ruído de uma época a mente insubmissa que gerou personagens e narrativas inesquecivelmente perturbadores. Essa mente insubmissa é a de alguém que escreve “sem guarda-chuva”, sem rabo preso e sem legendas, e porque escreve, fundamentalmente livre, não se submete a nenhuma ideologia, nenhuma cláusula moral, nem ao politicamente correto, tudo isso que, para a liberdade da criação, é “a gangrena da arte neste século”. O narrador-personagem de Degenerado já incorpora muito desse pensamento inflamável que o leitor encontrará nos aforismos e breves ensaios de Ariana. Párias da sociedade, esse degenerado que abusa e mata (sem por isso “se reduzir a um criminoso”) e sua autora (em prol da “dupla moral” do artista) podem concordar em que “Escrever não prova nada sobre quem escreve. O que alguém escreve não o descreve”. Pensamento, vale dizer, compartilhado por Mariana Enríquez, outra escritora argentina insubmissa já conhecida dos leitores brasileiros.
Liberdade incondicional
Mas o artista da nossa época, longe de ser um pária, trabalha sua imagem para agradar hordas de seguidores que aplaudem (essas mesmas hordas que, em circunstâncias um pouco diferentes, se armariam de pretextos para linchar), é o escritor politicamente inserido, identificável, porta-voz das boas causas, o que se fotografa firmando contratos, fazendo o jogo do mercado. O escritor profissional e sua pessoa admirável. Então esse escritor arriscaria a própria imagem, com todo o suporte extraliterário que a mantém, assumindo suas contradições e ambiguidades? E quem não percebe que abolir a contradição e a ambiguidade num artista é destruí-lo? Ariana pensa na liberdade incondicional da escrita, na dimensão da língua em que se dá a verdadeira luta política, na singularidade do mundo ficcional e no mistério de suas ambivalências, e em como tudo isso acaba sendo alienado pelas pautas ideológicas e pela instrumentalização das minorias. Em sua visão, hoje há “dois estilos irreconciliáveis: aqueles que assumem a independência da literatura e os que escrevem apontando a arma da ideologia”. E, “acima de tudo, há duas maneiras de ler, também irreconciliáveis”.
Para Ariana, “supor que se lê a partir da identificação primária é um erro”. Desse erro decorrem tacanhas interpretações e, contra a violência da linguagem, arma-se a violência dos cancelamentos. “É proibido odiar”: eis o slogan que a autora depreende desta época, e, escrever sob esse imperativo, se adequando a essa mentalidade, seria tornar a literatura um tribunal correcional, o que Ariana rejeita com todas as letras, sem o menor constrangimento. O que lhe importa é escrever, escrever radicalmente, sem demagogia, “sem quarta capa” e “sem piscadelas para os assuntos do momento”, e uma imagem síntese dessa radicalidade, para a autora, é a de Grigory Sokolov diante do piano sem sequer olhar para o público. Ariana volta com frequência a essa relação da escrita com a música, da criação que se dá nesse “silêncio das mãos suspensas sobre as teclas”, que é também estar “em posição de tiro, o dedo indicador no gatilho”.
No trabalho de reanimar as palavras (que “fora da escrita são lobotomizadas”), a língua não mente sobre quem escreve, a coragem de quem assume sua parte de liberdade se mostra na língua. Pela língua adotada ou fabricada, sabe-se quem é dissidente e quem é concessivo. Suprimir a violência, o ódio, a ofensa, a controvérsia na literatura, como abolir as contradições de um escritor (e seus personagens), seria eliminar bibliotecas inteiras, ou, como diz Ariana, gangrenar a arte. A guerra entre o artista e o poder, ela também nos lembra, é recíproca.
O que está errado é que os artistas de hoje querem ser apreciados pelo mercado, pela sociedade.
Isso aviva a ironia do que pensou o escritor Salman Rushdie ao ser esfaqueado publicamente antes de uma palestra, em Nova York, em 2022 (no livro Faca: reflexões sobre um atentado): que a morte finalmente vinha ao seu encontro, mas que não lhe parecia “admirável”, parecia-lhe apenas “anacrônica”.
Ariana pensa o uso da língua e o estado da literatura também em diálogo ou colaboração com outros escritores, material reunido nas seções AK-AH (correspondência entre Ariana e o escritor e tradutor Adan Kovacsics) e “O escritor aparenta ser um moribundo” (com alguns textos em colaboração com a escritora Sol Pérez e a editora e jornalista Ariana Sáenz Espinoza). Além dessas, há uma primeira seção, A escrita doutrinada, com reflexões, citações, aforismos, em que aparecem outros autores assíduos a Ariana em suas leituras, como Sándor Márai, Thomas Bernhard (que sabia odiar tão bem) e Imre Kertész (que via na arte um confronto da linguagem com a ideologia), esse último bastante presente também nas conversas de Ariana com seu amigo Adan (tradutor de Kertész, entre outros autores húngaros). Entram ainda nessas reflexões obras de pintores e compositores que Ariana seleciona, como a Sonata, Op. 5, de Richard Strauss, interpretada por Glenn Gould, e os quadros de Séraphine Louis.
De fato, vale pensar no exercício dessa escrita insubmissa tendo em mente as árvores chamejantes, as borboletas-cauda-de-andorinha e os peixes-mandarins da pintura de Séraphine Louis, aquela empregada que pintava à noite, salmodiando cânticos, num quarto feito ateliê na rua Puits-Thiphaine da pequena vila de Senlis, a mulher sem instrução, de quem debochavam porque pintava, que um dia foi descoberta por um aristocrata alemão e dali em diante viu seus quadros ganharem os jornais (depois os museus) de Paris e colecionadores de arte pelo mundo. Aproveitando que muito da matéria dos textos de O ruído de uma época vem da experiência da autora em debates e festivais literários, fica valendo, para os curadores dos festivais destas bandas, a dica de insuflarem novo hálito e novo fogo (menos discurso, mais pensamento) aos nossos debates sobre literatura e escrita com a presença de Ariana Harwicz.