Um autor de minúcias

"Adeus, meu livro!" traz a preocupação de Kenzaburo Oe com os detalhes, para garantir efetiva proximidade com o real
Kenzaburo Oe, autor de “Adeus, meu livro!”
01/09/2024

Kenzaburo Oe é talvez um dos autores mais complexos da contemporaneidade. Falecido em março de 2023, aos 88 anos, deixou-nos uma extensa obra, de difícil classificação e, infelizmente, pouco conhecida do público brasileiro — pelo menos não na mesma proporção do Nobel de Literatura de 1994 que lhe conferiu notoriedade mundial.

Recentemente, um de seus últimos trabalhos foi publicado no país. Adeus, meu livro! veio à luz originalmente em 2005, como segundo volume de uma trilogia iniciada com A substituição ou As regras do tagame, de 2000.

Uma vez em contato com sua obra, notamos como Oe possui uma formação bastante densa, iniciada com estudos de literatura francesa já na década de 1950, período de efervescência do existencialismo, indissociável de uma militância política. No Japão, em processo de reconstrução e reinterpretação do que foi vivido durante a Segunda Guerra Mundial, questionamentos referentes às posturas beligerantes eram naturais, angariando posições, às vezes antagônicas, de parte de sua sociedade e intelectualidade.

É importante deixar isso demarcado tendo em vista o vigor do posicionamento político de Oe, refletido em suas obras. Em um polarizado clima de guerra fria, talvez o ícone internacional da literatura japonesa de então fosse Yukio Mishima e sua reivindicação de uma espécie de orgulho nipônico, traduzido, como não poderia deixar de ser, em um extremismo conservador na busca de valores outrora perdidos. Oe, durante um tempo interlocutor de Mishima, posiciona-se do lado oposto, juntamente com um pacifismo visto como única alternativa aos horrores vividos na guerra, cujo expoente são Hiroshima e Nagasaki.

Embora tenha vindo à tona sessenta anos após o fim do conflito, Adeus, meu livro! tangencia esses questionamentos. Naquele momento, ante à suposta certeza da vitória de modelos democráticos advindos do sistema político capitalista, o 11 de Setembro ecoa enquanto possibilidade de se justificar conflitos mundiais. Num cenário amplo, o clima é de cobrança por medidas pacifistas, como o desarmamento nuclear — ainda mais em uma sociedade com um gigantesco trauma nuclear, tal como a japonesa.

O livro
Em Adeus, meu livro!, Kogito Choko, tido como alter ego de Kenzaburo Oe, presente em obras anteriores, está de volta, recuperando-se de um grave acidente e estadia de meses em um hospital. O dilema da finitude, da morte, bem como das responsabilidades advindas de uma voz tão forte na literatura mundial, faz-se presente.

Agora, Choko reencontra seu pseudo-couple beckettiano, Shigeru, famoso arquiteto e estabelecido professor em uma universidade norte-americana, com quem possui uma longa história de amizade e rivalidade. Ambos viverão durante um tempo na afastada casa de campo de Kita Karu, pertencente ao nosso protagonista, respeitando a ideia inicial de recuperação de sua saúde.

Entretanto, em uma reviravolta da narrativa, pondo em evidência a rivalidade adornada pela profunda admiração nutrida pela figura de Choko, Shigeru o faz prisioneiro em sua própria casa. Integrando um grupo anarquista radical, o amigo é pivô de um plano de ataque terrorista para explodir um grande edifício em Tóquio.

O cativeiro de Choko se justificaria por diferentes razões: seja como escritor, relatando literariamente toda a empreitada; seja como personalidade, fazendo um vídeo de apelo internacional. A partir disso, a obra se desenrola em idas e vindas a vários autores clássicos da literatura internacional, fazendo sempre um paralelo com as vidas dos personagens a sustentarem a prisão de Choko. São essas obras literárias o ponto de partida para questionamentos das ações dos diversos sujeitos ali presentes, envolvidos com os planos de atentados.

Embora aparente estar repleto de pausas, Adeus, meu livro! mobiliza uma reflexão contínua. E são reflexões trabalhadas entre os próprios personagens, a partir de seus diálogos extensos e nada assertivos, como se estivessem em um mesmo tom. Oe parece, assim, deixar uma porta sempre aberta, sem a apresentação de sentenças, mesmo que seja para julgar ou não a iniciativa dos envolvidos nos atos terroristas, de modo que possamos utilizar a nossa leitura para chegarmos às transformações dos personagens. Afinal de contas, devemos lembrar o ativismo político do autor.

E os detalhes cumprem papel importante na construção da narrativa de Kenzaburo Oe. Aproximando-se de uma espécie de realismo, ele se vale das minúcias para garantir uma efetiva proximidade com o real. Logo, os ambientes são fundamentais para as ações. A própria casa do cativeiro, chamada de Casa Gerontion, em alusão ao poema de T. S. Eliot, é apresentada seguindo esse princípio, tornando-se um belo cenário.

Isso adquire contornos ainda mais interessantes quando retomamos o acidente de Kogito Choko, deixando em evidência a sua velhice — bem como a de seu criador. Ali, na casa de campo, mobiliza sua memória reavaliando aspectos da vida. Obviamente, certezas permanecem. Entre elas, a literatura, a ponto de ponderar a sua função para o indivíduo e a sociedade.

No livro de Kenzaburo Oe, essa permanente tensão entre indivíduo e sociedade não descamba para uma ambivalência mocinhos e bandidos. Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma natural complexidade da constituição do ser humano. E isso fica ainda mais evidente quando observamos como os personagens diretamente ligados ao projeto terrorista não são apresentados como figuras execráveis ou mesmo temíveis.

Se o ser humano, para Oe, não possui uma essência de maldade, tampouco poderia ser compreendido como naturalmente bom. Pelo contrário, ele é imprevisível, por exemplo, a ponto de Choko temer que acusem seu filho deficiente de assédio sexual. A sua experiência de quase morte o faz avaliar e revisar amiúde suas opiniões e atitudes — exigindo que os outros também o façam.

— Ao ver jovens assim como nós, o senhor não se sente irritado com a juventude de agora? — indagou Takeshi a Kogito.

— Nos últimos tempos, não me sinto assim. Mas, como você mesmo disse, por muito tempo considerei a atitude de alguns jovens inaceitável. Sempre reflito sobre isso quando venho para cá […]

O realismo e o simbolismo são bastante característicos na obra de Oe. No primeiro desses movimentos, notamos os aspectos biográficos, como, por exemplo, a já mencionada relação com o filho deficiente — aliás, inaugurada em outro livro, Uma questão pessoal, onde sobressai tanto a angústia quanto a responsabilidade paterna.

Seguindo o simbolismo, também é comum que Oe utilize metáforas e alegorias como forma de explorar temas mais amplos. A título de ilustração, Choko pode ser visto tanto como símbolo do próprio Kenzaburo Oe, quanto como uma representação mais geral de escritores a lutarem com o sentido e propósito de suas obras e o seu lugar na sociedade enquanto artistas e intelectuais.

Kogito caminhava à frente de Shigeru por uma estreita senda, tendo a leste um denso bosque de ciprestes e a oeste bambuzais transpondo o vale. Havia uma velha castanopsis de galhos espalhados de forma que bloqueavam a visão do fundo do vale. No espaço escuro entre suas raízes, havia apenas duas lápides de pé. Eram praticamente do mesmo formato, com pedras naturais e recobertas com musgo, mas apenas em uma delas a inscrição na pedra era recente. Era a sepultura da mãe de Kogito que, ao construir a sua própria, enfileirara as lápides para que o musgo se tornasse uniforme entre elas.

A citação acima demonstra a preocupação de Oe com os detalhes. Da maneira como são apresentados, permitem a ressignificação, de modo a não pensarmos se tratar simplesmente de uma sepultura qualquer. Falamos de sua mãe, mais de uma vez mencionada no livro, até mesmo como forma de situar a origem da amizade e rivalidade entre Choko e Shigeru. Logo, o musgo deve cobri-las por igual.

Enfim, estamos diante de um escritor de literatura minuciosa. Atento a lugares e coisas, faz um exercício permanente de memória, cobrando de seus personagens atenção na interação com o meio de maneira que reflita sobre o lugar de tudo. Pois tudo tem um lugar. Nos dias de hoje, é algo que nos cai muito bem.

Adeus, meu livro!
Kenzaburo Oe
Trad.: Jefferson Teixeira
Estação Liberdade
448 págs.
Kenzaburo Oe
Um dos principais escritores japoneses dos últimos anos, Kenzaburo Oe também publicou Uma questão pessoal, A substituição ou as regras do tagame, Jovens de um novo tempo, despertai!, Morte na água, entre outros. Foi vencedor dos prêmios Akutagawa, Tanizaki e o Nobel de Literatura em 1994. Faleceu em 2023, aos 88 anos.
Faustino Rodrigues

Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (MG).

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