Era novembro quando o Povo acampou na Praça dos Cristais, em Brasília, ao lado do Quartel-General do Exército, em protesto contra a fraude nas eleições presidenciais de outubro de 2022.
O Povo fazia adorações e orações, de braços erguidos, para que o Senhor Jesus Cristo derramasse sobre as Forças Armadas todas as bênçãos, e a coragem de libertar o Brasil dos esquerdistas, dos discursos de gênero, dos insultos à Pátria e à Família.
O Povo acompanhava os louvores amplificados pelo carro de som, improvisado na boleia de um caminhão estacionado no acampamento.
O Povo cantava: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
O Povo agia conforme os pedidos do Presidente Bolsonaro.
O Povo pedia que o Presidente Bolsonaro também agisse.
Povo clamava: Se for preciso, a gente acampa / Mas o Ladrão não sobe a rampa.
O Povo dormia em barracas em forma de cabana, ou de iglu, ou em tendas grandes que acolhiam muita gente.
O Povo prendia faixas para identificar as tendas: “Exército de Gideão”, ou “S.O.S. FFAA: Praças e Oficiais”, ou “Rancho Front de Guerra: Família Militar”.
O Povo se orgulhava de acolher membros da Família Militar.
O Povo festejou a presença da esposa do General Villas Bôas.
O Povo se honrou com a visita do General Lourena Cid, direto dos Estados Unidos.
O Povo se emocionou com a mensagem do General Braga Netto, para que continuassem todos firmes na luta, sem perder a fé.
O Povo não fugiu à luta no dia 12 de dezembro, quando o Ladrão foi diplomado.
O Povo fabricou bombas caseiras.
O Povo saiu com pedras, paus, fogos de artifício.
O Povo quebrou e incendiou carros.
O Povo tentou empurrar um ônibus de cima de um viaduto, mas não conseguiu.
O Povo tentou invadir a sede da Polícia Federal, para libertar um líder bolsonarista que tinha sido preso, mas não conseguiu.
O Povo voltou ao acampamento e ornamentou as barracas com mensagens de esperança: Generais, confiamos nos senhores — Novas eleições já!
O Povo gostava de pontos de exclamação: FFAA, queremos a restauração da lei e da ordem com Bolsonaro no poder!!!!
O Povo não lia jornal, preferia se informar pelas redes sociais.
O Povo recebia comida dos benfeitores, preparada em panelões, na barraca da cozinha.
O Povo usava os banheiros do Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército.
O Povo organizava jogos cívicos, para entreter adultos e crianças.
O Povo portava armas brancas, batia continência, cultivava saudações: Selva!
O Povo compartilhou a ceia de Natal, dedicada à Família Patriota.
O Povo celebrou o nascimento de Jesus Cristo e implorou ao Senhor que zelasse por sua nação: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.
O Povo orou pelos guerreiros que foram detidos na missão de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília.
O Povo repudiou a repressão comunista ao exército dos cidadãos de Bem.
O Povo se multiplicou, uma semana depois do Ano-Novo.
O Povo contabilizou mais de cem ônibus, com milhares de soldados, vindos de todo o país.
O Povo entoava hinos: Brava gente brasileira/ Longe vá, temor servil/ Ou ficar à Pátria livre/ Ou morrer pelo Brasil!
O Povo vestiu trajes militares, camisetas da seleção brasileira, bandanas e bonés verdes e amarelos.
O Povo amarrou bandeiras nas costas, como capas de super-heróis.
O Povo se inspirou em Donald Trump, na invasão ao Capitólio, que fazia aniversário de dois anos e dois dias, naquele 8 de janeiro de 2023.
O Povo marchou rumo ao Eixo Monumental, escoltado pela Polícia Militar do Distrito Federal.
O Povo tirava selfies com os policiais, que sorriam e tiravam selfies com o Povo, para postar no Facebook.
O Povo atravessou a barreira das viaturas do Choque, que abriu passagem para a Esplanada dos Ministérios.
O Povo avançou até a Praça dos Três Poderes.
O Povo se dividiu entre o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.
O Povo gravava vídeos da ocupação, para postar no TikTok.
O Povo gritava: Liberdade!
O Povo berrava: Intervenção!
O Povo urrava: Agora é guerra!
O Povo queria tacar fogo nos edifícios da República.
O Povo pedia: Sem fogo! Sem fogo!
O Povo atirava os extintores de incêndio nas vidraças.
O Povo rezava um Pai-Nosso.
O Povo levava facas e canivetes.
O Povo quebrava e furtava objetos de valor.
O Povo rasgou uma tela de Di Cavalcanti.
O Povo estragou uma tapeçaria de Burle Marx.
O Povo escalou a escultura A Justiça, em frente ao STF, e pichou no peito da estátua: Perdeu, mané.
O Povo se sentou na cadeira dos ministros e postou uma live no Instagram: E agora? Quem manda aqui nessa porra?
O Povo bradava: O governo é o Povo!
O Povo chorava em júbilo.
O Povo cometia erros de português nos cartazes e pichações.
O Povo não sabia o que estava fazendo.
O Povo sabia muito bem o que estava fazendo.
O Povo sabia onde estavam as câmeras de segurança e os quadros de luz.
O Povo mijou nos carpetes.
O Povo cagou numa mesa.
O Povo derrubou computadores no chão.
O Povo não tinha um plano, saía aos galopes, dissolvido na massa.
O Povo tinha uma clara intenção: ocupar os Palácios, atrair as Forças Armadas, exigir que tomassem o poder.
O Povo não contava com a reviravolta no comando da polícia do Distrito Federal.
O Povo levou bala de borracha.
O Povo correu das bombas de gás.
O Povo arremessou as bombas de volta.
O Povo foi expulso da Praça dos Três Poderes.
O Povo retornou à Praça dos Cristais.
O Povo se sentiu seguro, no seu Quartel-General.
O Povo cuidou dos feridos.
O Povo comeu e descansou.
O Povo foi protegido pela Polícia do Exército.
O Povo foi surpreendido, na manhã seguinte, pela ordem de desmontar o acampamento.
O Povo foi preso.
O Povo voltou para casa.
O Povo começou a planejar o contra-ataque.
O Povo jurou fazer guerrilha no WhatsApp.
O Povo prometeu conspirar no Telegram.
O Povo perdeu a batalha, mas não perdeu a guerra.
Todo o poder emana do Povo.
NOTA
O conto 8 de janeiro de 2023 pertence ao livro Estilhaços de junho, a ser lançado em breve pela EditoRia.