Pelos grotões da história

O épico "Terra vermelha" mostra toda a força da ficção de Domingos Pellegrini
Pellegrini: domínio perfeito sobre a linguagem e olhar voltado para o detalhe
01/03/2004

Há histórias e histórias. Ou, querendo ser preciosista, há histórias e estórias. E para contar a história de um povo ou um lugar, podemos escolher qualquer uma delas. Há a maneira oficial de contar o que aconteceu, focando nos grandes personagens e nas datas, estilo “Dom Pedro I, às margens do Ipiranga, gritou ‘Independência ou Morte’. Nascia o Império do Brasil, em 7 de setembro de 1822”. A outra maneira poderia dizer “o caboclo Inácio pescava como sempre à beira do riacho que ele não sabia como se chamava, quando ouviu o barulho de cavalos que se aproximavam. Maldisse: “Hoje não dá peixe!”. Qual você prefere? Eu prefiro a segunda.

A ler qualquer livro oficial sobre a história do Rio Grande do Sul, prefiro pegar O tempo e o vento, de Erico Verissimo. Nordeste? Os sertões. Norte? Crônicas do Grão-Pará e Rio Negro. Bahia? Vá para Jorge Amado. (A lista é mais extensa, é claro.) Por isso, não há como não se deliciar com Terra vermelha, do escritor paranaense Domingos Pellegrini, que ganha agora uma segunda edição. Reler Terra vermelha é mergulhar em uma das últimas fronteiras que foi conquistada no Brasil, e de uma maneira peculiar, dificilmente passível de ser repetida em outro lugar.

Terra vermelha tem dois protagonistas principais. O masculino é o descendente de italianos José Pellerini, o Beppe de Rafard, o Zé do Facão, o Zé da Tiana, Zé Capivara, Zé da Farmácia, Zé do Açougue, o Doutor José, o Zé do Chapéu, o Zé Dasarves, o Zé do Ecossistema, o Nono, o Tio Zé ou ainda o tal Seo José. Todos os nomes marcando a passagem da personagem de acordo com o momento. Mas, acima de tudo, ele é um ser humano, uma pessoa real, que apesar de tantos nomes nada tem de épico ou pícaro. É um homem como qualquer outro, e por isso digno de nota.

Com ele temos Tiana, vez ou outra também chamada de Sebastiana. Tiana é o contraponto a Zé. Tiana sempre foi Tiana, uma mulher firme, decidida, absolutamente apaixonada desde o início, e que sabe muito bem o que quer. Tiana é a empreendedora que faz doces quando a vendinha do Zé não vai bem, quando o seu bar não vai bem, e tantos outros serviços para segurar a família. Tiana é também poeta, e vai colorindo o livro e sua vida com seus poemetos sobre coisas simples, que, no entanto, trazem muita sabedoria.

Cronologicamente, a história começa em Capivari (SP) e no distrito de Rafard. Duas localidades distintas e adversárias históricas: a primeira, berço da brasileiríssima Tiana — filha de mulatos, com partes de índio no sangue —; a segunda, cidade de nascimento de Zé, filho mais novo de uma família de italianos, e o único que nasceu no Brasil. O início da uma impressão de Romeu e Julieta, o branco e a mulata que têm que superar o preconceito familiar e das cidades para poder viverem juntos.

A vida comum começa em Capivari, depois volta a Rafard, para só depois ir para Londrina, para a terra vermelha do título, onde na década de 30 acontecia uma experiência colonizadora revolucionária no Brasil. E Zé e Tiana, juntos, serão protagonistas da epopéia de uma cidade que, em um arco de 70 anos, passou do estado-mata ao estado-metrópole. E quem chegou lá novo pode muito bem estar vivo hoje para contar tudo.

E o livro aproveita esse gancho para contar a história de Zé e Tiana, que é a história de Londrina. Zé está quase vivo. Ele tem 80 anos, já está viúvo, e depois que Tiana morreu, ele foi definhando. Ele está no hospital. E a vida começa a passar diante de seus olhos, contada pelos seus filhos e netos que fazem a vigília, com certa esperança de que ele melhore. Certa porque alguns filhos querem mais é o espólio, dividir a herança do homem que ajudou a construir Londrina, que fez o primeiro hotel, que foi o maior corretor de terras da história da cidade. A história é narrada em um vai e vem entre passado e presente.

E à medida que Zé e os filhos e netos vão lembrando o passado dos avós, vamos encontrando os personagens que fizeram a história de Londrina. Está lá o espanhol Gracia, na verdade Garcia, dono da Viação Garcia, pioneira empresa de ônibus que levou os primeiros imigrantes para a cidade. Tem Jeofrey, ou melhor, George Craig Smith, o inglês que comandou a Companhia de Melhoramentos do Norte do Paraná que primeiro colonizou aquela terra. Tem o antropólogo francês Claude Lê Vitrô, ou melhor, Claude Levi-Strauss, que passou por lá e deixou a sua marca bem no início da vida da cidade. Tem Lázaro Góis, ou melhor, o irmão mais velho da Família Godoy, que conseguiu impedir que o seu pedaço de terra fosse desmatado, e hoje constitui uma das poucas reservas florestais da cidade. Quer dizer, todos eles estão no livro, mas não estão. É a memória romanceada de Zé/Pellegrini, que vai dando vida à história da cidade. E, claro, é muito melhor assim.

Todos eles estavam no caldeirão étnico que foi o Norte do Paraná, colonizado por gentes de mais de 30 nações, e que mesmo tendo ingleses, franceses, italianos, japoneses e alemães, passou sem conflitos pela Segunda Guerra Mundial. Zé e Tiana formam o elo de ligação entre todas essas gentes e a história da cidade. Terra vermelha é o romance épico da formação de Londrina, par a par com O tempo e o vento e seus semelhantes. É história de altíssimo nível, contada com o olho particular, voltado para o detalhe, que Pellegrini possui.

E o estilo peculiar de Pellegrini contribui ainda mais para tornar a história melhor, seja a história do livro seja aquela que realmente aconteceu. Usando e abusando (no bom sentido) do falar no escrever, Pellegrini subverte a pontuação, e longe de deixar o texto difícil de ler, ficamos com vontade é de lê-lo em voz alta. Sentimo-nos ainda mais próximos a Zé em seus momentos finais. Chegamos mesmo a torcer contra seus filhos avaros que partilham a herança antes mesmo da morte do pai. E vamos vendo a história ser escrita pelo neto (será ele Domingos? Será Zé o seu avô? E isso importa, se o livro é bom?).

Zé e Tiana também aparecem em outra obra de Pellegrini, Pensão Alto Paraná (Imprensa Oficial do Paraná, 2000). Essa coletânea de oito contos visita uma outra vez a história do Norte do Paraná. Por exemplo, em o Encalhe dos trezentos, vemos um Fenemê com três toras de peroba encalhar na estrada mais lamaçal que rodovia, que a todos parava, e provocar um congestionamento de uma semana. Os trezentos veículos que ali param, em meio à floresta que ainda era farta naquela época, organizam uma nova cidade. Há de tudo: o restaurante, os dormitórios, os bares, os puteiros, enfim, uma grande cidade atolada e de convivência harmônica que espera o sol voltar.

Em Pensão Alto Paraná, Pellegrini olha atentamente as margens da história oficial, deixa de lado os nomes que hoje batizam praças e ruas, e vai buscar suas histórias na gente comum, com a qual esbarramos todo dia, e pela banalidade do fato que não conseguimos transformar em mágico, achamos que não são importantes.

O último livro lançado de Pellegrini é Conversas de amor, o 36º de sua carreira. Conversas de amor foi escrito, segundo o autor, ao longo dos últimos 30 anos. O seis contos que fazem parte dessa coletânea são todos retirados da vida de Pellegrini, à exceção de No fundo. A história mais antiga é Minha estação de mar, escrita quando o autor tinha 24 anos. Quando ele chegou ao terceiro conto, percebeu que todos tinham em comum o tom coloquial, de quem fala contando, e montou a série. O último conto, De pai para filho”, foi escrito há dois anos. Como temas, há a história do atropelamento de seu filho Leônidas e sua permanência na UTI, a ida da família ao Mar quando menino, a liberação sexual de 68 e seus embates com os pais provincianos e os avós camponeses, e narrada por um presidiário que conta a história do menino acompanhando o pai em viagem para comprar fazenda, no auge da cafeicultura. Mesmo que Pellegrini não tenha sido presidiário, o resto é verdadeiro.

Todas as histórias são ricas de detalhes, cheiros, cores e sons. Pellegrini afirma que ficção é invenção que apesar disso deve ter aparência de real. E para que a mentira soe verdadeira, são necessários os detalhes. Como bom contador de histórias que é, Pellegrini recheia seus contos com detalhes saborosos, que acrescentam verdade à mentira, fazendo com que essa seja preferida àquela.

E Pellegrini ainda tem trunfos na manga, ou trabalhos na gaveta, prontos para publicar. Há um livro de contos, O destino de Elvis Presley, concluído há quase uma década, cujo destino ainda não foi decidido pelo autor. Há dois títulos que serão publicados como livro de bolso pela L&PM. E outras antologias de contos também estão para sair do forno.

Parece que, depois que ele desistiu de candidatar-se à Academia Brasileira de Letras, o fogo do trabalho reviveu com intensidade mais do que dobrada. Em entrevista ao Caderno G, suplemento cultural do jornal Gazeta do Povo de Curitiba, Pellegrini afirmou que desistiu de ser candidato, pois não queria se desqualificar, pedindo votos de forma provinciana, a pessoas que compromissam votos antecipadamente com os candidatos. Para ele, é um processo eleitoral marcado por clientelismo e compadrismo. Ele não quis se submeter.

E nós, que ficamos lendo aqui a sua obra, agradecemos.

Terra vermelha
Domingos Pellegrini
Geração Editorial
471 págs.
Conversas de amor
Domingos Pellegrini
Record
176 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho