Só diversão?

Claudia Tajes faz uma literatura leve e amena, similar aos episódios de uma comédia da vida privada
Claudia Tajes: longe das tramas intrincadas
01/03/2004

Nos últimos anos, vimos surgir — para ficarmos apenas na prosa e em alguns poucos exemplos —, autores díspares e de diferentes regiões do país, como Bruno Zeni (O fluxo silencioso das máquinas), Adelice Souza (Caramujos zumbis), Rinaldo de Fernandes (O caçador) e Cíntia Moscovich (Anotações durante o incêndio), dentre tantos outros, que têm como fio a temática urbana, doída, descrita e vivenciada na maioria das vezes a partir do microcosmo dos grandes centros brasileiros. Nesse caldo da chamada literatura brasileira contemporânea costuma-se enaltecer sobremaneira a influência (embora nem sempre reconhecida) do escritor Rubem Fonseca, cujos livros, como já se sabe e se repete à exaustão, destaca a violência e o travo amargo das nossas cidades. Boa parte desses autores surgiu propondo um trabalho apurado de linguagem, foram publicados por editoras de pequeno e médio portes e, a despeito de seus talentos, continuam lutando bravamente para conquistar mais e mais leitores.

Mas as exceções existem, como é o caso da romancista gaúcha Claudia Tajes, que estreou há poucos anos e segue na contramão desses autores citados e de tantos outros, alcançando relativo sucesso de vendas país afora (uma raridade para uma estreante), quase na mesma proporção da relativa indiferença da mídia e dos críticos em relação ao seu trabalho.

O fato é que não há nada de travo amargo, de denso, nada de grandiloqüente e tampouco de violência nos quatro livros de Claudia Tajes lançados até aqui. Muito pelo contrário. Despretensiosa, leve, altamente legível, pura diversão… São, em geral, os termos usados para definir a sua literatura. As críticas torcem o nariz por ver seus livros sempre sob o ângulo da autora que se propõe a realizar um texto que não passa de entretenimento. Nós não vamos fazer diferente (esse ângulo de avaliação, creio, é realmente o mais adequado para se analisá-la), mas é bom ter o cuidado de não diminuir a autora por isso. Apesar da tentação de rotular seus livros de superficiais, é interessante evitar o preconceito. Além do mais, de tão “digeríveis” eles tanto podem ser execrados quanto igualmente devorados, o que também deve ser levado em conta.

Aqui, lembro da lição do crítico Antonio Candido (Literatura e sociedade), ao ressaltar que um dos elementos constituintes da literatura contemporânea seria o seu público-leitor, uma novidade recente para o escritor brasileiro, se pensarmos em termos históricos. Lembro ainda do poeta e ensaísta José Paulo Paes provocando desconforto ao ressaltar certa vez a importância da literatura de entretenimento: “Acho inclusive que uma das provas da fraqueza da nossa literatura, enquanto sistema, está na falta, entre nós, desse tipo de literatura despretensiosa, de mero entretenimento. Nossos autores só aspiram à imortalidade, só escrevem com olhos voltados para a Academia ou a posteridade. Uma de nossas falhas é não dispormos, em larga escala, desse tipo de produção literária”.

Claudia Tajes estreou em 2000 com Dez quase amores (L&PM), romance de 120 páginas, e, desde então, tem lançado um romance por ano. Em 2001, com As pernas de Úrsula e outras possibilidades (L&PM), a autora recorre aos mesmos temas — infidelidade conjugal, questões de relacionamento, problemas cotidianos etc —, assim como, em 2002, com Dores, amores e assemelhados, vai abordar a história do casal Júlia e Jonas, que começa um relacionamento após uma pequena tragicomédia de erros. E o seu “terreno” é sempre esse: uma literatura leve e amena (diria a crítica), similar aos episódios de uma comédia da vida privada. Mas, em seu mais recente romance, que tem o sugestivo título de Vida dura e marca sua estréia na Editora Planeta, a autora melhora bastante ao propor uma mudança sutil, a mais instigante e melhor trabalhada em todos os seus livros, que só não é para valer porque ela muda o tema, mas não muda o tom.

Vida dura narra as andanças de um pobre-diabo desempregado de 24 anos que dorme num sofá alugado por uma família num quarto e sala de Porto Alegre. Como se não bastasse toda a desgraça da sua vida, ele ainda amarga o próprio nome, Leonel Moura Brizola Coelho, homônimo do político gaúcho que o persegue nas brincadeiras e gozações dos colegas e amigos. Certo dia, Leonel descobre uma maneira aparentemente fácil de se ganhar dinheiro: comercializar esperma para bancos de sêmen que lhes pagam 30 reais por frasco entregue.

O enredo é interessante e em nenhum momento pode-se dizer que o livro é mal escrito. Mas o que chama atenção é que, apesar de todos os personagens beirarem a linha da miséria e de viverem à base de bicos e subempregos (caixas de supermercado, despachantes de trânsito, entregadores de folhetos em sinais de trânsito), eles são destituídos de qualquer consciência ideológica. Não há revolta neles porque não há consistência lingüística que lhes dê sustentação e estofo suficientemente capaz de descrevê-los como pessoas sofridas, exploradas ou desiludidas que são. Esse é o maior problema do livro (dos seus livros?): a simplificação e o esvaziamento de situações que poderiam ser desenvolvidas de forma mais complexa. A despeito de suas vidas miseráveis, o que ganha destaque é o burlesco e o risível, explorados, por exemplo, nas crises de impotência e nas relações de Leonel com as mulheres. Em vez de profundidade, opta-se pelo tom pitoresco e por um humor que não dispensa o escatológico, o kitsch e o mau-gosto. Às vezes escrachado e forçado, o humor é um dos principais elementos norteadores, o tom mais perseguido do livro. De positivo, a autora acerta e impressiona pela linguagem adequadamente chula na boca de alguns personagens, na profusão de termos cotidianos e no tratamento do sexo sem floreios: “No começo foi difícil comer a Black Barbie com a mãe dela arrastando os chinelos do quarto para o banheiro. Mas só no começo. Logo Leonel se acostumou com a situação e, nas vezes em que a velha passava, ele fazia com muito mais força, mais fundo ainda, para ver a Black Barbie mordendo a mão para não gemer alto demais” (p. 12).

Desempregado, mal-amado, solitário, Leonel percorre o centro de Porto Alegre apenas por estar preocupado com o resultado de ser ou não doador. Que ninguém espere assim encontrar um desempregado tipo Estorvo, de Chico Buarque, ou Angústia, de Graciliano Ramos. Mas, se vermos de outra forma, vamos afirmar que a autora não está interessada em explorar os meandros e desvãos que movem o personagem. Com isso, fica difícil cobrar densidade ou analisá-lo pelo que o livro não se propõe ser.

É preciso, por fim, falarmos sobre o fato de o livro ter sido escrito por uma mulher. No Brasil, tornou-se um chavão afirmar que escritoras sofrem invariavelmente influência de divas literárias importantes como Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles ou Hilda Hilst. Claudia (para o bem ou para o mal) passa ao largo delas. Se pudéssemos rastrear influências neste seu romance, poderíamos ir de um Luis Fernando Verissimo (especialmente em relação às suas crônicas de costumes bem-humoradas) à escritora norte-americana Dorothy Parker, famosa pelos palavrões e xingamentos que salpicou em Big Loira e outras histórias de Nova York. O seu livro, na sua simplicidade, serve para desmistificar essa bobagem que associa mulher à docilidade e ao recato. Lendo-o com a capa à mostra num local público, pode-se acabar provocando divertidos mal-entendidos. Trata-se de um homem em pé com o zíper da calça aberto. Porém, o que mais importa, claro, é o seu conteúdo: ele pode enrubescer o mais pudico dos leitores, pode decepcionar o crítico que espera uma literatura de reflexão, ou, quem sabe, em alguns momentos, pode apenas divertir o leitor, o que não é pouco e nem sempre fácil.

Vida dura
Claudia Tajes
Planeta
199 págs.
Suênio Campos de Lucena

É jornalista e escritor, autor de 21 escritores brasileiros e Depois de abril.

Rascunho