Acabou a monarquia, meu povo, agora podemos disputar espaço a tapa.
Há muito tempo vem fermentando no ventre da comunidade literária uma briga, mas uma briga meio velada, como um rancor mudo e surdo, uma coisa meio monarquista de forma um tanto vaga, e acho que é preciso botar o bloco na rua. Sei que vem gente aí com porrada, mas é isso mesmo que é bom. Briga sem porrada é briga de puxão de cabelo. Sem trocadilho, não faz minha cabeça.
Creio estar havendo um equívoco muito grande, sobretudo por parte de uma imprensa que se pretende dona da verdade em assuntos culturais. Que, aliás, não sei se ela tem consciência disso, mas o fato é que defende, tangencialmente algumas das teses de uma corrente crítica surgida há certo tempo, conhecida como Estudos Culturais. Bom, mas isso já é outro papo.
Uma parte do equívoco: o escritor é testemunha de seu tempo. Incorreto. O escritor não parte de um compromisso deliberado de registrar seu tempo. Isso é papel do repórter, não do escritor e repórter não é escritor. Pelo menos quando se fala de literatura. Calma, já percebi gente querendo objetar. O escritor, mesmo sem a obrigação de registrar seu tempo, acaba expressando seu tempo. Ele usa uma língua que é a de seu tempo. Ninguém mais escreveria como Gil Vicente. Ele tem uma visão do que ocorre em seu tempo. Seu livro não é feito de pergaminho, e quando ele o pensa obra pronta, seu livro está impresso com o que existe de tecnologia de sua época. Os valores que o escritor expressa são os valores de seu tempo. Seus leitores não estão em Marte nem no século 22. Assim, as posições teocêntricas da Idade Média não voltaram a reproduzir-se porque ninguém mais tem aquela visão. Mesmo em estéticas que tentaram reaproximar-se do passado, como é o caso do Barroco, a tentativa de retorno redundou num emaranhado, num desequilíbrio, no homem enovelado. Sei que são conceitos batidos, mas necessários ao desenvolvimento da exposição.
Resumindo: o escritor não tem a obrigação de testemunhar seu tempo, mas não consegue deixar de ser testemunha de seu tempo. Ocorre que a expressão desse testemunho, isso é que pode assumir faces imprevistas. O Fantástico é uma das expressões do moderno, mas parece não ser propriamente uma cópia da modernidade. Claro, porque isso faz parte de um segundo equívoco. Existe uma certa idéia sub-reptícia, já apontada por Mário de Andrade, de que escrever moderno é botar no papel o nome de artefatos modernos.
De uns tempos para cá, essa tal imprensa acima aludida, criou uma falsa verdade, considerando como moderno apenas um tipo de Neonaturalismo. Ora, nada contra a existência de um Neonaturalismo, mas daí a supor que seja este a única verdade estética da atualidade faz parte do mesmo pensamento estreito que fala de sociedade pensando que seja uma coisa única. A sociedade é multifacetada, é diversa. Na sociedade contemporânea encontra-se o rico e o pobre, o gordo e o magro, o ignorante e o culto, o urbano e o rural, o corrupto e o impoluto e a lista das oposições, mesmo sem suas mediações, seria muito extensa.
Ora, a monarquia acabou. E quem acabou com ela, entre nós, foi a Semana de 22. Já antes conviveram o Simbolismo e o Parnasianismo. Na Geração Heróica, não viviam em briga, mas convivendo, a Anta e a Klaxon e tantas outras correntes? Algumas delas não eram contra nem a favor, apenas defendiam o direito de existir.
Costuma-se estudar a Geração de 30 como um movimento nordestino, de denúncia social etc. etc. Puro reducionismo. A Segunda Geração não foi um monólito. Preocupação social, denúncia social, claro que houve. Mas e autores intimistas como Cyro dos Anjos e tantos outros? E na poesia? Vinicius não tem grande parentesco com Drummond, que não se liga muito com Murilo Mendes e Jorge de Lima. E onde fica Cecília Meireles? Ora, não precisamos de nenhuma genialidade para perceber que todos estavam, querendo ou não, expressando seu tempo. E cada um a seu modo. A diversidade que os distingue é a mesma diversidade que se encontra na vida social. Místicos, católicos, ateus, céticos, expressando ideais capitalistas, socialistas e todos os istas, que de tudo há.
45 teve muitos representantes, mas, só para encurtar o assunto, vamos ficar com apenas dois. O épico-barroco Guimarães Rosa (regionalista universalizante) e a intimista-existencialista Clarice Lispector (urbaníssima). À sua maneira, os dois expressaram seu tempo. Mas sem compromisso com um Realismo que nos vem assolando porque se quer única expressão da realidade. A realidade, meu deus, é muito mais rica do que eles possam imaginar.
Então viva a república! No tempo da monarquia, principalmente se absoluta, todos tinham de cantar afinadamente no mesmo coro. Daí aquelas idéias de academia. Pois a democracia política para ser expressa pela literatura tem que ser expressa por todos os segmentos sociais, pois todos têm esse direito. Ontem vi uma lista de mais vendidos, e a Lya Luft estava na frente do Chico. Respirei muito feliz. Sinto-me no direito de sentir maior prazer com a leitura de um Vergílio Ferreira, de uma Lya Luft do que um livro que banalize a violência urbana, a sacanagem gratuita, o palavrão grosseiro sem causa. O penumbrismo da Lya me acrescenta muito mais. Outro dia li um trecho do Cláudio Willer, em que ele dizia mais ou menos que para saber da violência urbana basta sair à rua, assistir a alguns programas de televisão do fim da tarde. O que ele quer da literatura é a transcendência. Não quero saber dos fatos da violência urbana. Já os conheço. Quero agora é saber por que a violência existe, e isso muito pouco Neonaturalista se preocupa em explicar. O fato não me basta, prefiro uma reflexão inteligente sobre ele.
E se alguém me acusar de virar o rosto para os problemas sociais mais gritantes, antecipo que gastei mais de metade de minha vida tentando ajudar a resolver os problemas sociais mais gritantes. Posso ter lutado de modo equivocado, mas tentei. Além disso, devo acrescentar que não confundo atividade sociopolítica com produção literária. Já redigi muito panfleto em minha vida, nunca pretendi, então, estar fazendo literatura.