Não há nada mais angustiante para uma pessoa que precisa escrever um artigo, uma reportagem, uma história ou uma resenha do que ficar olhando para a tela branca do computador com aquele risco preto do cursor piscando do lado esquerdo. Sabe como é?
Aflição total. Ainda mais porque o traço fica lá, piscando para você. Desafiando seu cérebro a encontrar uma frase de efeito para começar os tais escritos. A solução é colocar uma musiquinha para tentar clarear as idéias. Para mim, às vezes funciona. Porque o silêncio na hora de escrever me é ainda mais angustiante do que o maldito traço piscador.
Desta vez não adiantou. Escutei três CDs (uma coletânea de sucessos do Stevie Wonder; Tigermilk, do Belle and Sebastian; e Cidade de Deus, muito bacana). E nada. Dancei um pouco com os sambas e funks da trilha sonora do filme. Mas o tracinho continuou lá. Minha missão para este Rascunho é escrever um texto sobre dois livros de contos. Compará-los, talvez. Mas não há como. São completamente diferentes. Vinho tinto e água morna. Decidi começar escrevendo meu nome no alto da página. Depois, coloquei o nome dos livros que eu li, em ordem de leitura (A fama e a cama; Exilados), os autores (José Augusto Carvalho; Suzana Montoro), editoras (Bom Texto; WS Editor) e número de páginas (164; 95). Serviço completo.
Como nada adiantava, resolvi dizer de uma vez, para ninguém me perguntar no fim desse texto: “Mas, afinal, você gostou ou não dos livros?” Gostei do livro do mineiro José Augusto. O da moça paulista, Suzana, não me agradou muito, não. Agora fico mais aliviada e posso dizer os porquês.
No início, achei um pouco irritante o fato de A fama e a cama ser escrito com um monte de provérbios. Carvalho pegou uma porção de ditados populares, provérbios e frases feitas e mandou ver nos textos. Alguns, ele inventou. Conforme a leitura avançava, acostumei. E gostei do resultado. São textos leves e bem escritos. A primeira frase de quase todos os 18 contos são muito boas.
“De início eu pensei que minha mulher tivesse ficado burra” (Eutanásia, p. 11).
“Quem muito vive tem um mundão de lembrança, e o que a gente mais consegue da vida é só acumular saudades” (Melisa, p. 41).
“A gente nasce é para pagar pecado” (Órfã de filha, p. 91).
“Não vivo de mulheres, mas já vivi de Eva Ida quando ela estava perto de desaparecer” (Eva Ida, p. 143).
Mas o que acaba conquistando o leitor é a linguagem que Carvalho usa nos contos. Há de tudo um pouco: de mineirices cadenciadas à linguagem formal. De narrativas com o tempero sertanejo às invencionices dignas de um Odorico Paraguaçu. Brincadeiras com a sisuda língua portuguesa. Coisa para quem pode. Carvalho é doutor em língua portuguesa e, com destreza, faz as brincadeiras sem machucar os ouvidos do leitor.
Com exceção de um (Confissão), todos os contos são narrados em primeira pessoa. Por isso, a impressão que se tem ao ler é que são histórias contadas por pessoas simples, que querem fazer bonito. Como quando estão falando na tevê, com cara seriíssima. “Lá chego-me, boquescancarado diante da belezência da mansão. Não há palavras para tanta principescância! Me anuncio-me como o homem do rádio ao mancebo de luvas brancas e farda de muitos botões dourados. Deseducadamente, como sói nos doer entre os que se encarapitam no alto da riqueza besta, fui deixado de fora à espera de que o dono permitisse a minha entrada. Muito lá quedei-me, talvez meia hora ou hora inteira. Eu nem não tinha pressa, só queria fazer menor o meu prejuízo e devolver honestamente o que era alheio. Mas a demora me deixou-me de espírito aceso na desconfiança de que os fidalgos haviam chamado a polícia para me prenderem como ladrão […]” (Lé com lé, p. 131).
As histórias são tão variadas como a forma como são contadas. Vão dos delírios do homem que acha que a mulher emburreceu porque não acredita que a imagem dele se esconde dentro do espelho (Eutanásia) a assassinatos dos mais variados: por não tolerar ter um filho homossexual (Nem pelo ovo nem pelo foro) ou um genro que troca a filha por um “arremedo de mulher”, um “hermafrobicha” (Rés-vés, Campo de Ourique); ou mesmo por pena do sofrimento dos pais, um condenado em ficar em cadeira de rodas para todo o sempre e a outra por só sobreviver, humilhada (O marginal).
Normalmente são histórias tensas. Mas há alguma diversão. Em Confissão, um policial prende a mulher que chamou a polícia ao encontrar uma senhora morta na porta de sua casa. Com um jogo de palavras e perguntas absurdas, o policial acaba confundindo a mulher até quase a beira da confissão de um crime que não cometeu. Há ainda Eva Ida, em que uma mulher vai desaparecendo. Literalmente. É uma Eva às avessas, morrendo, em vez de nascer do nada (ou da costela de Adão, como dizem aí). Ou então Depoimento, passado no século 19, em que um fiel de padre Jorge, desmancha-se em reverências pelo clérigo que, por compaixão, proibiu que ele desse chibatadas na negra que pisou na pata de seu cão de estimação. Em troca, sugeriu que a negrinha ficasse deitada no chão, as mãos abertas, para que todos os outros escravos, calçados com botinas, pisassem em seus dedos. Com a mão quebrada, a escrava já não tinha mais serventia. Por isso, magnânimo e sempre com o coração cheio de bênçãos divinas, o padre manda matar a pobre.
Todo o domínio da língua portuguesa e suas possibilidades escritas e orais são os trunfos de José Augusto Carvalho, mineiro de Governador Valadares. Ele é doutor em Língua Portuguesa, bacharel em Línguas Neolatinas e mestre em Lingüística. Foi professor e hoje tem uma coluna semanal no jornal A Gazeta, do Espírito Santo. Totalmente diferente da colega paulista, Suzana Montoro. Ela é psicóloga e trabalha em psicologia clínica com abordagem corporal. Já publicou textos infanto-juvenis, e Exilados é seu primeiro livro “adulto”.
Suzana tem um estilo mais light, digamos. Com textos um pouco enigmáticos demais, no entanto. Aquela coisa de finais sem fim. Que estimulam o pensamento e/ou raciocínio lógico. Ou evocam lembranças, sei lá. Não são como os textos que aprendemos na escola, com começos, meios e fins bem definidos. Isso não é ruim, no entanto. Só não acrescentam muito.
Os personagens, como o título do livro sugere, são isolados do mundo. Em auto-exílio ou deixados de lado por alguém ou alguma circunstância. Ensimesmados. Perdidos nas próprias lembranças, nos problemas e possíveis soluções. Nostálgicos, na maioria das vezes. E tão solitários que até dóem. “Por mais que tentasse se inserir em algum grupo ou fazer parte de qualquer irmandade, Alzira tinha sempre um sentimento de solidão. Não mera solidão, a sensação rasa de estar desacompanhada, mas muito mais uma vivência interna. Estar junto de alguém parecia de pouca importância. […] até o dia em que encontrou um igual[…]” (Ao redor do abismo, p. 83 e 84).
Pode ser por isso que o livro não tenha me agradado. Para ler as 95 páginas sobre a solidão de tantas pessoas — de todos os personagens em 15 contos — é preciso ter paciência. É preciso estar com a mente vazia de todas as coisas. E estar disposto a preencher lacunas. Provavelmente pessoas que gostam da solidão ou que têm grandes epifanias em momentos assim apreciem de uma forma muito diferente esse livro. Ou então os críticos que, debruçados sobre as milhares de anotações teóricas sobre a construção emocional do personagem (ou da personagem, diriam os mais minuciosos, já que personagens vêm de persona, feminino), vêem, ali, grandes poemas em prosa. Mas eu, como leitora comum, sem teorias, vejo em Exilados textos sem muita paixão. Sem emoção, sem sustos ou risadas. Sem vida.