Poema de João Manuel Simões

Leia o poema "Os três afluentes do rio do silêncio"
01/03/2004

Os três afluentes do rio do silêncio

Um
No cristal sem clivagem
do silêncio,
o estilhaço assimétrico
do canto
dói.
Dói como um cilício
pungente na epiderme
da alma. Dói.

(Por que é que dói?)

Dois
Qual a essência da vida?
Perpétua caminhada
num beco sem saída.
Ao fim de tudo,
o nada.

Mas quem dirá ao certo
se Deus nos aguarda,
como o pai que, desperto,
dentro da noite anseia
o filho que já tarda?

Três
Nas molduras
dos quadros da parede,
a presença dos olhos
dos ausentes.

No vidro da janela,
incauta mosca brinca.

Bolor ou musgo inominável,
o silêncio alastra-se,
melancolicamente,
sobre os móveis de imbuia
e solidão e olvido.

O pó de outrora,
pátina febril
na textura translúcida
do tempo.

(Uma dor. Oculta, subterrânea.
Ah, talvez a alma
também sinta cãibras.)

João Manuel Simões

Nasceu em Portugal. É poeta, contista e ensaísta. É autor, entre outros, de Crítica e interpretaçãoEnsaio sobre a culturaLadainha do serOs criadores e suas obras. Ocupa a cadeira 11 da Academia Paranaense de Letras.

Rascunho