Algumas ilusões são perdidas quando há a falsa credulidade de que determinada obra preenche os quesitos exigidos para a perfeição. O autor estufa o peito crente de que está instalado no paraíso, tendo à direita a fileira dos pequenos mestres. O leitor não perde só uns 25 ou 32 paus. Perde tempo e enche o peito de melancolia, pois é sempre desalentador ser empurrado para uma arapuca. O verdadeiro leitor está sempre numa constante torcida para que o autor se apresente pleno de façanhas, e, se não as encontra, fica a frustração e dela ninguém consegue reembolsá-lo.
É enganosa a literatura de João Gilberto Noll, e enganosa a crítica que insiste em colocá-la no pódio dos mestres. Mas sempre foi assim — são muitos os santos que não fizeram um milagre sequer.
Retardei por muitos anos a leitura dos livros de João Gilberto Noll, pois sempre suspeitei das fontes de águas turvas que o endeusam. Mas, no momento em que ele é empurrado para o nosso curral, tivemos de nos aproximar para apurar a legitimidade das marcas que transitam nas entranhas de sua pele.
Antes mesmo de iniciar a leitura de Lorde, eu me fiz uma pequena proposta — dar-me-ia por satisfeito se nele encontrasse uma frase, um aforismo encorajador. Tinha em mente a frase de abertura de um livro de Hilda Hilst — “Calma, calma, também tudo não é assim escuridão e morte”.
No entanto, encontrei apenas a sucessão de frases descosidas, muitas delas sequer conseguindo explicitar significação. E também descosidos os vários episódios, que não se completam num leimotiv. Há um arrastar-se melancólico por lugares melancólicos e obviedades melancólicas. A paisagem londrina inexiste, pois a narrativa detém-se em objetos e paisagens que podem ser reconhecidos em qualquer país. Trata-se de narrativa enumeradora, que não consegue gerar tensão, criar paisagens, inseminar novidade, expectativa, identidade.
A seguir, em destaque alguns semas da grande desconexão que é o romance de João Gilberto Noll.
“Acordei de primeiro achando tudo branco demais.” (p. 107).
“Tudo é motivo de consideração, quando no fundo se almeja adiar a conclusão espinhosa de tomar.” (p. 91/92).
“Embora hoje eu fosse mais perto desse homem do que jamais, se bem que com uma precária garantia de que não cairia na sarjeta enquanto o inglês me financiasse aquele mínimo, ao mesmo tempo vinha ressurgindo um cavalheiro em mim, certamente o dândi que eu nunca conseguira cultivar a contento no Brasil. Em que pese de fato estar…” (p. 33.)
E mais não transcrevo para não agredir a paciência de algum possível leitor destas notas. Ah, mas tem uma fala em que até o narrador — ou o personagem — desconfia da transparência, que insiste em ser transcrita ipsis: “E que quando se volta de uma coisa assim o geralmente pouco ou quase nada que a vida pode dar começa a querer extrapolar para cima, entende?…” (p. 71). Vá entender!
Poder-se-ia dizer que a empolação é cacoete do personagem. Mas podemos recorrer aos contos publicados por Noll, quinzenalmente nos jornais, para apurar que os jargões, a obviedade e a empolação estão incorporados ao estilo do autor. No âmbito, minha pessoa, eu já tinha, a ponto de, por via das dúvidas... Meu Deus! ganhar uma bolsa em Londres para enfileirar cacoetes, deixar escapar cacófatos, errar no uso do pronome reflexivo. A leitura de um discurso de Neruda ou estudo de um pequeno texto de Alessandro Baricco poderiam ser de muito maior proveito que uma bolsa em Londres, pois a sutileza lingüística mora em qualquer detalhe que um autor possa abordar. Num estilo tem salitre, se é Neruda; tem seda, se é Baricco; mas o sêmen de João Gilberto Noll é masturbado e melancólico.
Na página 17, há uma frase em que a metalinguagem demonstra ser mais sábia do que o autor: “Sim, eu vivia numa entressafra literária perigosa”. Noll errou o tempo verbal, pois essa entressafra ainda não se esgotou. Continua nos Mir-isolas, nos Mil-Hatouns, dá nó nos Nolls… Uma entressafra que nubla até a obra de Chico Buarque.
Ao ler Budapeste, de Chico Buarque, e isto se confirmou em Lorde, assustou-me a falta de identidade dos escritores com a sua nacionalidade. Em Chico Buarque, ainda é admissível, já que ele pode estar descrente com os rumos políticos do País em seu exílio voluntário em Paris. Soma-se, em Chico Buarque, a perda da identidade afetiva ao afastar-se da família e da quentura dos brasileiros. Nuances estas muito transparentes na biografia do personagem de Budapeste. Mas, em Lorde, não há só a perda da identidade com o País, mas a perda de identidade com a língua, e segue no rumo da simples busca da identidade sexual. E essa busca não é mais busca, pois a sociedade já a compreende e aceita com muita clareza (mas essa faceta eu deixo para o esmiuçamento dos especialistas em minorias, pois me interessa aqui apenas a estilística).
Chega uma hora em que não podemos deixar de atender os chamamentos da aventura. Nem que seja para confirmar que ali reside a mediocridade. A melancolia. E elas estão em Lorde, de João Gilberto Noll. É melhor nem conferir.