O máximo da lucidez

Aos 72 anos, Adolfo Boos Jr. é um dos principais escritores de Santa Catarina
Adolfo Boos Jr: Não concebo literatura sem engajamento
01/09/2004

Adolfo Boos Jr. é um dos escritores mais premiados de Santa Catarina. Sua obra integra sete volumes publicados, dos quais três foram premiados em concursos. Em 1980, com o livro de contos As famílias, recebeu o primeiro lugar no Concurso de Contos Virgílio Várzea e, em 1986, ganhou dois prêmios nacionais num só concurso (3ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira) com os contos A companheira noturna e o romance Quadrilátero, ambos publicados no mesmo ano pela Melhoramentos. Seu primeiro livro publicado, Teodora & Cia., foi editado em 1956 pela editora Sul, do Grupo Sul, ao qual Boos se integrou. Após isto, seguem-se O último e outros dias (1988), Um largo, sete memórias (1998) e Presenças de Pedro Cirilo (2001). Boos nasceu em Florianópolis em 1931 e, aos 72 anos, diz que a leitura só tem sentido se for por prazer e que nunca leu por obrigação. Nesta conversa ela fala de seus anseios, seus temores e de sua literatura.

• Em que momento você percebeu que seria um escritor?
Não saberia dizer com exatidão o momento, o que posso dizer é que, quando criança, eu lia os gibis de um primo. Como naquela época os gibis eram mensais, uma vez decorada a história do mês, eu passava a criar novas histórias com aqueles personagens, talvez aí esteja o germe do escritor. A partir de um determinado momento, um escritor começa a escrever mesmo quando há uma tomada de consciência sobre o que quer e deseja fazer com o seu trabalho, isto é, quando você se pergunta o motivo de se estar escrevendo. Eu olho muito o lado social e procuro colocar este lado na minha literatura porque, sem pedantismo algum, nós, os escritores, pertencemos a uma casta privilegiada neste país. Nós sabemos ler e escrever. Escrevo porque não posso deixar de fazê-lo.

• E isso nos força a sermos engajados?
Não concebo literatura sem engajamento. Não estou falando de sigla partidária e nem de bandeiras. Falo de um engajamento em favor do homem, em favor da vida em sua plenitude, independentemente de credo. A literatura que não provoca, que não instiga e que não busca explorar o que há de melhor e de mais perverso no homem não deve ser chamada de literatura. Um escritor tem que colocar o dedo nas mazelas de seu tempo e de outros tempos também.

• Quadrilátero demonstra este engajamento com tempos idos, pois reflete de forma crítica a colonização do Vale do Itajaí no século 19.
Penso ser um dever do escritor esse debruçar-se sobre a história do homem e suas nuanças. Vivemos em um país enxertado de favelas, aqui mesmo atrás de minha casa há uma. Seria muito bom se pudéssemos fazer uma literatura cor-de-rosa, mas isso não é possível. Não no mundo caduco em que vivemos. Os problemas sociais sempre me causaram uma extremada perplexidade. Quadrilátero tem muito da trajetória da minha família, mas não apenas isso, tem muito da trajetória de muitas famílias. Em princípio, era um projeto de quatro livros: o de Mateus, Marcos, Lucas e de João, os quatro evangelistas.

• Embora não haja uma pesquisa histórica evidente em seu primeiro livro, Teodora e Cia., como nas obras posteriores, você já aborda questões de ordem histórica. O preconceito racial, por exemplo, no início do século 20. Ali já está o germe de sua pesquisa ou é um livro intuitivo?
Não. Não há nenhum projeto sistemático nesse primeiro livro. O que há é a minha ótica de uma época — hoje, penso que até um pouco idealista. Os contos desse livro foram nascendo de forma intuitiva e representam o que o jovem Boos almejava e aspirava: um mundo melhor, um mundo infinitamente melhor, anseio que o velho Boos ainda alimenta. Ali estão as minhas primeiras inquietações e, como todo livro de estréia de um escritor que não é gênio, ele tem seus problemas. Só mais tarde tracei uma arquitetura para minhas obras. Teodora e Cia. é uma influência do Graciliano Ramos, e eu posso até ficar de joelhos perante esse fato, mas de cabeça erguida, pois é uma senhora influência. O chato é ser influenciado por um cara menor.

• Esse primeiro livro foi editado pelo Grupo Sul. Fale um pouco sobre este movimento?
Entrei na metade da trajetória do Grupo Sul. Foi um momento muito rico em manifestações culturais e políticas. Quem conheceu Florianópolis naquela época, e somente quem conheceu, pode ter uma dimensão do que foi o Grupo Sul. Devo minha formação literária ao Salim Miguel e lembro que, na época, ele tinha uma pequena livraria que era o nosso ponto de encontro. Foi ali que comecei a ler e descobrir autores, foi com a ajuda do Salim e da Eglê, meus padrinhos literários, que me tornei um leitor. O Grupo Sul precisa ser revisto, mas sempre com o olhar naquele tempo, sempre. Esse movimento aglutinou muita gente, uns permaneceram, outros, como todo movimento artístico, simplesmente desapareceram. Acredito que o movimento foi decisivo para o surgimento de muitos escritores e para a formação de muita gente, inclusive a minha. Nós discutíamos literatura. Odir Fraga, Aníbal Nunes Pires, Salim, Eglê, Walmor Cardoso da Silva, todo esse pessoal se reunia para discutir literatura. Então o que posso dizer é que aprendi muito com esse grupo, pois no Colégio Catarinense, onde estudei, o máximo que se via era Virgílio, Dante e Camões, mais para fazer análise lógica (sintática). O grande mérito do Grupo Sul foi sem dúvida alguma trazer uma quebra, uma ruptura nas artes catarinenses.

• Depois de Teodora e Cia. você ficou dez anos sem escrever. Por quê?
Porque me senti como um músico debruçado sobre o teclado de um piano procurando uma determinada nota, desesperado por uma nota sua e original e nada de ela chegar. Parece figura literária, porém foi isso mesmo que aconteceu. Eu queria fazer e esbarrava na limitação de ordem técnica, então estava como este músico procurando minha própria voz, minha própria nota.

• E acredita ter encontrado?
Um escritor sério sempre desconfia de seu trabalho. Quando um escritor pensa e afirma ter encontrado um caminho definitivo, ele pode estar próximo de sua morte artística, pois cada trabalho exige descobertas distintas, cada livro requer um aprimoramento de sensibilidade, cada livro consome uma parte intocada de seu criador, uma parte, muitas vezes, desconhecida por ele mesmo. É claro que encontrei um caminho, uma senda, mas nunca defino como linear, pelo contrário, a cada novo trabalho nos defrontamos com abismos, escarpas. A criação artística, mesmo a mais cerebral, sempre nos revela algo que não sabíamos estar oculto.

• As famílias tem como foco temático a velhice. Recentemente, ganhamos em nosso país o Estatuto do Idoso. Como você avalia a condição do idoso no Brasil?
Sempre tive uma preocupação muito grande com a velhice, em especial a velhice que se instalou em nosso país, que é uma velhice sem perspectiva. A terceira idade, na época em que escrevi As famílias, era depositada como mercadoria inútil nos asilos. Não se tratava a velhice, como hoje, em bases científicas. Um velho era um incômodo indesejável não só no seio da família, mas também no da sociedade. Sua capacidade produtora e de servilidade, uma vez extinta, o colocava em estado de nadeza. Embora já tenhamos melhorado muito, ainda estamos aquém do desejável no que diz respeito ao tratamento àqueles que geraram o presente. Particularmente eu não me sinto bem, e digo que sou um velho revoltado.

• A crítica tem dito que sua obra é de difícil leitura. Isso não se choca com a sua declarada opção pelo engajamento literário, uma vez que seus livros não atingem o leitor comum?
Não quero prestar um desserviço nem à literatura e nem ao leitor. O escritor não tem que descer ao patamar do leitor, ele tem que trazer o leitor mais para perto de sua linguagem. A literatura não é um simples exercício de descrever a realidade como ela se apresenta, porque se assim fosse ela seria sem utilidade e não exigiria esforço nem do artista e nem de quem se propõe a apreciar a arte dele. O que diferencia o bom escritor do péssimo escritor é justamente o uso que ele faz da linguagem e de sua sensibilidade. Não fosse desta maneira qualquer bilhete seria literatura. Nunca podemos começar um texto pensando em agradar o leitor, não devemos fazer concessões, porque o rigor estético e social será jogado em um segundo plano. Fique claro que penso no leitor, mas não unicamente nele. O hermetismo excessivo pode ser alcançado pela poesia, agora na prosa há uma exigência de uma comunicação maior com o leitor.

• Você está escrevendo um romance sobre a Guerra do Contestado. Em Santa Catarina temos três romances sobre o conflito: Geração do deserto, do Guido Wilmar Sassi, O bruxo do Contestado, do Godofredo de Oliveira Neto e O império caboclo do Donaldo Schüler. Esse fato não o intimida?
Num primeiro momento fiquei intimidado, sim, mas uma história pode ser contada de muitas maneiras. A abordagem de um mesmo tema por vários escritores é algo saudável, e a história da literatura comprova isso. Não vou falar muito sobre esse romance, que já está em fase de finalização, por uma razão muito simples: não sei quando será publicado.

• O que é um bom romance para você?
Um bom romance para mim é aquele que permanece na minha memória. É aquele que preenche os requisitos que eu uso para fazer o meu trabalho, isto é, que tenha uma mensagem, uma “utilidade” e que aborde a condição humana com propriedade. É aquele que espelhe o homem, ainda que multifacetado, na sua mais completa nudez diante da perplexidade e do espanto que é a vida.

• Quem é Adolfo Boos Jr.?
Um homem que nunca estudou sistematicamente a literatura. Pode até constar em meu jazigo a seguinte epígrafe: aqui jaz um cara que detestava ler teoria. Um homem que sempre colocou, mesmo que metaforicamente, o dedo na ferida das mazelas humanas. Se me explicar muito, talvez acabe perdendo minha espontaneidade.

• E quais seus anseios aos 72 anos?
Aos 72 anos anseio prolongar ao máximo a minha lucidez literária. O que mais me atormenta é a possibilidade de perder a minha capacidade criativa. Não gostaria de entrar num processo degenerativo e não perceber, por isso já me preveni: pedi para dois amigos me avisarem se algo de estranho estiver acontecendo comigo. Mas se parar hoje confesso que penso não ter deixado um recado de todo ruim. Anseio também a realização de sonhos antigos, pois já sonhei com um mundo melhor para mim, depois sonhei com um mundo melhor para meus filhos e, agora, anseio por um mundo melhor para meus netos. Anseio também ver os meus livros serem vendidos barato, bem barato.

• E a crítica?
Se é verdade o que dizem sobre minha literatura, penso ser minha obrigação tentar passar a ponte. O Salim e eu temos um expressão recorrente, quando alguém publica um livro nós falamos: “Mais um que não vai passar a ponte, mais um livro que não vai passar a ponte”. Mas não falamos isso por maldade. A questão é que não temos consumo interno, e nós precisamos criar um consumo interno para nossos autores à maneira do Rio Grande do Sul.

• Em 1986, você abocanhou dois prêmios nacionais num só concurso (3ª Bienal Nestlé de Literatura Brasileira) com o romance Quadrilátero e o livro de contos A companheira noturna. O que significou para você essas premiações?
Um incentivo. Num primeiro momento pensei que tinha aberto as portas da metrópole para minha literatura, porém logo percebi que estava enganado. Porque a editora Melhoramentos fez com os livros o que toda editora faz com livros pagos: elas não investem na circulação. Nós, em Santa Catarina, com raríssimas exceções, temos que bancar financeiramente os nossos livros. Ora, se pagamos uma edição do nosso livro, qual o interesse do editor de fazer um livro pago circular? Nenhum. Agora me responda: se você é um editor e eu quero lançar o meu livro, você faz um orçamento e me diz: o meu preço é tanto. No orçamento que você me deu já está incluída uma margem de lucro, então qual vai ser o seu interesse em comercializar um livro que já está pago? Sem contar que nenhuma editora em nosso estado, quando se interessa por um livro, paga direitos autorais. O que se faz é dar uma cota em livro para o autor, que acabamos doando aos amigos, porque o papel do escritor não é vender livros; o editor deve assumir esta tarefa.

• Você tem acompanhado os novos escritores?
Gosto do que estou vendo na literatura catarinense. Em Joinville tem um núcleo de novos escritores talentosos: a Patrícia Hoffmann é uma boa poeta, o Rubens da Cunha e a Ramone Abreu Amado também. O Dennis Radünz que é muito culto e está levando seu exercício às últimas conseqüências, o Brüggemann é um bom prosador e tenho acompanhado alguma coisa do Maicon Tenfen, de quem gosto de alguns contos. Tenho inveja de vocês porque vocês têm muito mais cultura que a nossa geração e são jovens com vontade. Tenho inveja.

• O que você diria a um escritor que estivesse iniciando?
A frase não é minha, ela é do Salim: escrever é saber cortar.

• Já pensou em desistir da literatura?
Não. Se me for dado escolher uma reencarnação, certamente escolheria voltar como escritor. Não sei fazer outra coisa, embora já tenha sido pescador, bancário, cinófilo.

Marco Vasques
Rascunho