Paulina Chiziane foi a primeira mulher moçambicana a publicar um romance, em 1990 (A balada de amor ao vento, inédito no Brasil). Até aí, este fato, apesar da grande relevância sociológica, tinha importância praticamente nula no aspecto literário, onde o que vale é o conteúdo, e não o sexo do autor. Com Niketche — uma história de poligamia, seu primeiro lançamento por estas bandas, Paulina traz para a literatura uma inestimável contribuição sobre a condição da mulher africana, oprimida na maioria dos países do continente.
Mais do que uma história de poligamia, Niketche é uma história sobre mulheres. A partir de um enredo em que há muito sofrimento e desigualdade social, mas pitadas de bom humor, Paulina constrói uma fábula otimista. Apesar de a moral da história ser o já surrado “a união faz a força”, e de alguns chavões feministas, não há como não terminar o livro sem torcer pelo sucesso de suas personagens femininas.
A protagonista e narradora é Rami, esposa dedicada do policial Tony. Depois de vinte anos de casamento e cinco filhos, Rami descobre que o marido é polígamo, prática comum na sociedade em que vivem, tanto que, como informa o glossário no final do livro, existe um termo oficial no Moçambique para a primeira esposa (nkosikazi). Mas o poli de Tony não é somente um prefixo, ele tem não apenas uma amante, mas quatro, e filhos com todas elas, num total de cinco mulheres e dezessete rebentos.
Com receio de perder o marido, Rami é perspicaz e dá um jeito de reunir o hexágono amoroso, estendendo seus direitos de mulher oficial a todas as outras. Assim, torna-se a líder do clã, que passa a ter todos os filhos reconhecidos e com uma escala para que o homem dedique seus carinhos num rodízio de uma semana para cada mulher.
A princípio, Tony é contra a tramóia armada por Rami, mas acaba sucumbindo aos desejos das mulheres, respaldadas pelo aval da sogra: “Louvado seja Deus. Não sabia que tinha uma família tão grande. Isso é bom. Destes dezassete netos, alguns me darão alegrias e outros, tristezas. Uns me darão o último copo de água, a última mortalha. Ter uma grande família é bom, Rami”.
A partir deste momento, entra em cena a habilidade da escritora para conduzir o relacionamento de cinco esposas e um mesmo marido. O polígamo fica num papel secundário, pois enquanto ele cumpre sua função com uma das mulheres, a narrativa recai sobre as outras quatro e seus conflitos. Apesar de algumas desavenças, a união entre as esposas prevalece e aos poucos elas vão reconstruindo suas vidas.
A autora esbanja imaginação na caracterização de cada uma das mulheres, com idades e costumes diferentes, até mesmo por suas origens distintas, umas são do sul e outras, do norte de Moçambique, e há troca de preconceito entre as regiões. Mas como o objetivo de todas é a felicidade social e conjugal, as diferenças acabam contornadas. Dessa forma, até mesmo um hexágono amoroso correria o risco de cair na rotina, mas Paulina quebra a escala e arruma mais duas namoradas para Tony, realimentando as intrigas com as escapadas do polígamo, agora de sete mulheres.
Do ponto de vista literário, Niketche é um belo romance. Todos os personagens são bem construídos, o enredo é rico de idéias e de emoções, o final não chega a ser imprevisível, mas agrada. O texto de Paulina é leve, bem escrito e interessante por ser apresentado no português original de Moçambique. Sempre é bom conhecer algumas variações de nossa língua e, melhor ainda, poder ler um autor estrangeiro sem tradução, ainda que o pequeno glossário seja necessário. O título, aliás, refere-se a uma dança de amor, que Rami se esforça em aprender para preservar o marido. Além de excelente contadora de histórias, a autora tem bons momentos poéticos:
“A minha vida é um rio morto. No meu rio as águas pararam no tempo e aguardam que o destino traga a força do vento. No meu rio, os antepassados não dançam batuques nas noite de lua. Sou um rio sem alma, não sei se a perdi e nem sei se alguma vez tive uma. Sou um ser perdido, encerrado na solidão mortal.”
Niketche tem ainda uma carga sociológica muito grande. É um livro sobre mulheres africanas e não se farta de expor algumas das várias dificuldades a que elas são submetidas. Neste ponto, a obra alternas bons e maus períodos. Para quem há pouco tempo conquistou a liberdade para publicar seus livros, Paulina traz declarações contundentes e corajosas, muitas delas refletindo a condição feminina na África:
“Há dias conheci uma mulher do interior da Zambézia. Tem cinco filhos, já crescidos. O primeiro é dos portugueses que a violaram durante a guerra colonial. O segundo é fruto de uma violação dos guerrilheiros de libertação. O terceiro é dos comandos rodesianos brancos. O quarto é dos rebeldes que fizeram a guerra civil. O quinto é de um homem com quem se deitou por amor pela primeira vez. Essa mulher carregou a história de todas as guerras do país num só ventre. A minha felicidade foi ter gerado só homens, diz ela, nenhum deles conhecerá a dor da violação sexual.”
Mas em alguns momentos a autora se excede e acaba resvalando para lugares-comuns, com algumas frases de filosofia caseira (“um lar de harmonia se constrói sem violência”; “quem bate na mulher destrói o seu próprio amor”; “o amor é o pavio aceso, cabe a ti manter a chama”; “o amor é independente, não se compra, não se vende”).
De qualquer forma, as derrapadas não comprometem a avaliação final do livro, sem dúvida um dos mais interessantes já lançados em Moçambique. Para um país que só admitiu uma publicação de autora feminina às vésperas do terceiro milênio, Niketche resgata bastante do tempo perdido.
Se em Niketche as estrelas são as mulheres africanas, no romance Tempo de migrar para o norte o sudanês Tayeb Salih conta a história de dois homens de outro país do mesmo continente. O Sudão tem várias diferenças em relação a Moçambique, a começar pela colonização e pela língua árabe, mas coincidem na opressão à mulher e nas regalias concedidas aos homens.
Não é o intuito de Salih mostrar essas desigualdades, pelo contrário, os dois protagonistas de Tempo… são heróicos, inteligentes e bem-sucedidos num país pobre e assolado pela guerra civil. O autor não comenta neste livro, mas falando-se em Sudão não há como deixar de destacar que o país vive uma de suas maiores crises internas e que os assassinatos, os estupros e a destruição forçaram 1,5 milhão de pessoas a deixar sua terra.
A alienação política, entretanto, não tira a força deste romance intrigante e bem construído. A história contada é a de Mustafa Said, economista respeitado que faz sucesso profissional no Egito e na Inglaterra, mas acaba voltando para uma vida pacata em seu país, abandonando a alta sociedade e a coleção de amantes no estrangeiro.
Mas por trás da trilha de Said há uma sucessão de mortes e/ou suicídios de suas mulheres e dele próprio. Antes de morrer, Said aparece repentinamente na vida do narrador, que também volta ao Sudão após temporada na Europa. Apesar do pouco tempo de relacionamento entre eles, o narrador recebe a tutela da esposa e dos filhos de Said, cuja vida misteriosa passa a tentar compreender.
Ao investigar a trajetória de Mustafa Said, o narrador reflete sobre o próprio passado. Viaja pelos vilarejos de seu país à beira do rio Nilo, passa pelas conversas com amigos e parentes mais velhos sobre as tradições da aldeia, e deságua nas comparações com o estrangeiro onde também viveu. Narrador e Mustafa Said então se confundem numa única pessoa com duas histórias que vislumbram o mesmo fim.
O narrador só volta à realidade quando descobre que um amigo quer arrebatar a viúva de Said como sua segunda esposa. Só que o amigo é um velho decrépito, quarenta anos mais velho que a mulher sob a tutela do narrador, e os costumes locais impedem que a moça recuse a proposta.
Em Tempo de migrar para o norte não há nenhuma mensagem social explícita como no romance de Paulina Chiziane, mas há uma passagem muito forte pelos sistemas vigentes em alguns lugares da África. E se em Niketche a trama é sempre carregada pelas mulheres, nesta história de dois homens de Tayeb Salih a surpresa fica por conta da tragédia desencadeada por uma mulher, a viúva de Mustafa Said, que reage violentamente ao ser obrigada a desposar um homem que não lhe interessa.
Mas o melhor do livro de Tayeb Salih está no texto seguro, que conduz Tempo de migrar para o norte por vários ambientes sem perder a estrutura narrativa, transformando o leitor num joguete, mas sem deixá-lo à deriva. (“Pensei que se morresse naquele momento teria morrido da mesma forma que nasci: sem minha vontade. Durante toda a minha vida, nunca escolhi, nem decidi. Estou decidindo agora. Eu escolho a vida.”)