Minha terra tem palmeiras

Resposta à carta de um leitor indignado com a ausência de brasileiros numa lista de grandes escritores
Machado de Assis
01/06/2004

Onde cantam os sabiás — mas, infelizmente, onde não podemos cantar de galo, no terreiro da grande literatura, meu caro José do Nascimento.

Neste mês, resolvi responder ao Nascimento — que é “leitor e assinante do Rascunhoe que protestou, na edição 48 (de abril passado), pela ausência de obras tupiniquins “nas listas dos ‘dez mais’, oferecidas pelo sr. Fernando Monteiro (e Milton Ribeiro), na edição 46 — A mania brasileira das listas”.

Na verdade, Nascimento ficou revoltado. Na carta enviada de Americana (SP) para este jornal, ele indaga: “Como não mencionar Os sertões, de Euclides da Cunha, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, ou Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou mesmo Fogo morto, de José Lins do Rego, enfim, pelo uma ou outra das obras primas de nossa literatura? Será complexo de Édipo?”

Bem, não entendi o “Édipo”. A minha mãe não tem nada a ver com as minhas listas, Nascimento (você há de convir, também nascido de uma boa mãe, quero crer, para ser leitor e admirador de Castro Alves, “o gênio morto com pouco mais de duas dezenas anos”, de acordo com a sua missiva de protestos misturados com elogios, no final, à “Academia Brasileira de Letras, por tudo que ela é e representa”, etc.).

Para lhe responder, Zé (permita-me a intimidade), vou ter que voltar pelo menos às listas dos “maiores romancistas” e “mais altos poetas” da literatura mundial, segundo a opinião e o gosto deste humilde escriba que só elegeu “estranjas”, no artigo cuja falta de verde-amarelo motivou a carta nacionalista, vinda de Americana — nome que Zé talvez gostasse até de mudar, eu suponho. Então, vamos às duas listas, again (havia uma outra, de obras-primas do cinema, sem nenhum filme brasileiro idem), e ao contexto delas:

“Listas? Eu havia pensado só nessa, de filmes, porém me flagrei a pensar em quais seriam, para mim, os dez maiores romances universais? E não deu outra: peguei, de novo, papel e caneta para riscar e apagar títulos, rever posições, brigar comigo e sofrer até chegar a dureza de diamante desta lista estranhamente restrita ao romance ocidental (uma falha, sem dúvida):

 

Dom Quixote, de Cervantes

As ilusões perdidas, de Balzac

Madame Bovary, de Gustave Flaubert

Moby Dick, de Herman Melville

O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë

Judas, o obscuro, de Thomas Hardy

Os irmãos Karamozov, de Fiodor Dostoievski

A montanha mágica, de Thomas Mann

O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald

A consciência de Zeno, de Italo Svevo

 

Novamente, o pasmo. Como pude deixar de fora o maior roman-fleuve de todos os tempos (Em busca do tempo perdido), e não achar lugar para Kafka, para Machado ou mesmo para a maravilhosa ficção do poeta Cesare Pavese… Poetas? Aqui, no final da crise, eu me vi atraído para uma galeria de bustos dos mais altos vates da literatura: quem seriam eles, numa relação premida pela implacável dezena?

Tomei coragem, e fui em frente, já meio obsessivo com escolhas auto-impingidas como forma de afirmar o gosto, a preferência e até a idiossincrasia:

 

Dante Alighieri

Li Tai Po

John Donne

Friedrich Hölderlin

John Keats

Paul Valéry

Federico Garcia Lorca

William Butler Yeats

Eugenio Montale

Marianne Moore

 

E Shakespeare? Onde encaixar o Poeta dos Poetas? Entre os dez maiores dramaturgos?”

Aí estão as listas “antipatrióticas” denunciadas pela carta do Policarpo de Brasiliana (faço a mudança, pelo menos aqui neste espaço, do nome da cidade de Nascimento). São vinte nomes de romancistas e poetas do meu gosto, da minha eleição e da minha preferência como os maiores, etc. Segundo se lê bem claramente, lamentei, na mesma ocasião, não encontrar lugar — em duas mãos (que não sejam do presidente Lula) —, para talentos geniais como Marcel Proust, Franz Kafka, Machado de Assis e outros prosadores e poetas que igualmente admiro. Na lista destes, basta dizer que Homero — nosso ancestral agora em evidência, graças a Brad Pitt et caterva —, William Shakespeare, Bashô, Baudelaire, Rimbaud, T. S. Eliot, Jorge de Lima e outros não entraram (havia as mesmas duas mãos não-metalúrgicas, mais uma vez, como limite implacável de dez menções apenas, para afinar a disciplina) e, pasmo eu próprio, divulguei as minhas escolhas, em português claro, neste país tão incomodado, no fundo, com a livre expressão do gosto e da opinião (o jornalista americano que ousou escrever o que todo mundo sabe — Lula entorna — que o diga).

José Nascimento: nossa terra tem palmeiras, sabiás, presidentes que bebem e presidentes abstêmios, anões do orçamento e vampiros do ministério da saúde, e tem também Vera Fischer — o que compensa muita coisa — e até as três cobranças de pênalti, recentes, do gordo Ronaldinho, todas perfeitas, contra a Argentina de Jorge Luis Borges (que também não achei possível encaixar em nenhuma das listas). Porém, nossa bela terra não tem — na minha opinião modesta — uma literatura grandiosa o bastante para incluir quaisquer dos seus romancistas entre Cervantes e Italo Svevo (lista dos romancistas, posições um e dez, respectivamente), nem poeta para tomar um dos lugares entre Dante e Marianne Moore (lista dos poetas, posições primeira e décima). O primeiro, você sabe, é o autor da Divina Comédia, e a segunda é a poeta americana que ensinou modernidade a João Cabral de Melo Neto, por muitos considerado “o maior poeta da língua, desde Camões” (o que eu não acho que João seja). Apesar disso, Cabral também não entrou na lista aqui do conterrâneo. Drummond ficou de fora, assim como Fernando Pessoa — e você acha que deveria ter lugar para o condoreiro baiano Castro Alves, meu rei?! Tenha paciência…

Quanto à ABL, que entrou como Pilatos no Credo da sua carta, cruz credo!: não sei o que o xará Fernando Morais queria fazer lá, quando foi candidato e perdeu para o senador Marco Maciel, também nosso conterrâneo (não vá você, Nascimento, querer encaixar o ex-vice-presidente numa das listas acima).

E, por fim, junto com a carta de Zé, o Rascunho de abril divulgou a seguinte correspondência de Neigmar de Souza (de Curitiba): “Há algumas edições me deparei com uma lista de escritores, acho que do Fernando Monteiro, e peguei um marca-texto para ver quais eu tinha lido. Emocionei-me quando ele citou a poeta Marianne Moore. Ela é uma das minhas favoritas também, vocês bem que poderiam fazer uma matéria sobre ela”.

Leitoras e leitores de Marianne se contam nos dedos, neste país de Lulas. Mando um abraço para Neigmar, e lhe prometo escrever, brevemente, sobre a genial Moore, uma das duas mulheres presentes entre as minhas escolhas estrangeiras e alienígenas para o leitor nacionalista José Nascimento, xará de José de Alencar (escritor que, para o paraibano Ariano Suassuna, “é mais importante do que Joyce”)…

O Brasil é assim: cheio de Policarpos Quaresma, Quadernas e Macunaímas nascendo para gritar: “O petróleo é nosso — e a literatura também!”

Em tempo: espero que as feministas não se enfureçam por apenas duas escritoras (Emily Brontë e Marianne Moore) constarem das listas que totalizam vinte nomes. Há um único “amarelo” (Li Tai Po), mas nenhum negro, o que, nestes tempos politicamente corretos, é quase afrontar um possível direito de “cota” também entre os grandes nomes da literatura.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho