O verdadeiro palco de Mishima

A obra de Yukio Mishima sempre caminhou no limite entre a ficção e os relatos autobiográficos
Yukio Mishima soube como nenhum outro autor japonês reconhecer e aproveitar o que há de melhor na literatura e na dramaturgia universal
01/06/2004

Yukio Mishima tentou de todas as formas ser uma pessoa diferente de seus conterrâneos e contemporâneos (viveu no Japão de 1925 até seu suicídio, em 1970) e, principalmente, de si mesmo. Como cidadão japonês, ele realmente conseguiu ser diferente, mudando até o próprio nome (chamava-se Hiraoka Kimitake). Não cabe aqui relatar as peripécias que o diferenciaram, até porque é assunto já amplamente discutido e inconclusivo. O mais interessante é procurar em Mishima aquilo que o iguala aos demais, japoneses ou não. E isto está em seus livros, não em sua turbulenta vida pessoal. Apesar do pseudônimo, a literatura de Yukio Mishima o transforma em Hiraoka Kimitake, um ser humano como qualquer outro, com seus problemas e inquietações, mas com um inegável talento para a escrita.

Mishima construiu, em pouco tempo, uma obra extensa, muitas vezes obscurecida pelas suas extravagantes atitudes pessoais, mas não tão complexa como muitos tentam fazer parecer em tratados analíticos que confundem o personagem Yukio Mishima com o escritor Hiraoka Kimitake. Também é exagerada a acusação de que Mishima escreve sobre si mesmo. Ele pode, sem dúvida, escrever a partir de si, como disse certa vez o escritor e crítico literário Miguel Sanches Neto, articulista deste Rascunho, ao receber o mesmo tipo de acusação. E também essa discussão é irrelevante. Pouco importa se o escritor escreve sobre si ou a partir de si, desde que escreva bem e com criatividade, como Mishima e Sanches Neto.

Aliás, nem era a intenção inicial fazer comparações, mas, pensando bem, há paralelos entre o romance autobiográfico Chove sobre minha infância (Record, 2000), que Sanches Neto escreveu a partir de si mesmo, e Confissões de uma máscara, de Mishima, agora relançado no Brasil pela Companhia das Letras e objeto desta resenha. A comparação, sempre perigosa, não é entre os autores, mas sobre os dois livros apenas, que partilham uma espécie de descobrimento de uma realidade estritamente pessoal, mas que pode ser comum a milhões de pessoas de Peabiru a Tóquio.

Sanches Neto, um interiorano de família humilde e analfabeta, descobre-se o oposto do que o futuro no campo lhe oferece. Prefere os livros à enxada, e passa até a ser visto como vagabundo por optar pelo estudo em detrimento da agricultura. É um romance de formação, mas que explora com fidelidade as agruras e recompensas da descoberta da personalidade e do desejo de um mundo diferente daquele em que vive. Em Confissões…, Mishima disfarça-se no protagonista Kochan para relatar a descoberta da homossexualidade de um garoto japonês, que não deixa de ser descoberta da personalidade e do desejo de um mundo diferente daquele que lhe é oferecido.

Já em Confissões…, escrito em 1949, quando Mishima tinha apenas 24 anos, o autor trouxe algumas de suas idéias mais marcantes, e que ajudariam a formatar a sua carreira fora dos livros. “Todos dizem que a vida é um palco. Não acho, porém, que haja muitas pessoas como eu, que, desde o final da infância, tenham tido a consciência de que a vida é, de fato, um palco”, filosofa Kochan, baseado sem sua experiência de viver entre a representação, quando tenta enveredar para a vida considerada “normal” do amor pelo sexo feminino, em oposição à realidade pessoal da atração por rapazes como ele.

Confissões… foi o livro que praticamente apresentou Mishima ao mundo, não pelo que foi contado, mas da forma como o foi. A começar pelo texto, impecável, de frases bem construídas, poético quando necessário, e com clara influência de autores ocidentais. Mesmo sendo um nacionalista, Mishima soube como nenhum outro autor japonês reconhecer e aproveitar o que há de melhor na literatura e na dramaturgia universal para compor um ritmo e estilo próprios. É saliente em seu texto e em suas idéias as influências de Thomas Mann, Nietzsche, Racine, Wilde, mas sem sobreposição a sua condição oriental. Mishima conseguiu libertar-se do formalismo de Yasunari Kawabata, um de seus mestres na literatura japonesa, mas sem arriscar-se no liberalismo inconseqüente de Junichiro Tanizaki, o mais ocidental dos escritores nipônicos. O resultado foi um estilo único, contestado por uns e invejado por outros, mas com uma linguagem forte e sem timidez. (“Fazia mais de um ano que eu sofria o tormento de ser uma criança provida de um curioso brinquedo. O brinquedo aumentava de volume à menor oportunidade, sugerindo que, dependendo de como eu o utilizasse, poderia ser algo muito prazeroso.” )

Claro que, na frase acima, o jovem Kochan está falando do próprio pênis, que ele só usa solitariamente pensando em homens e até numa estátua de São Sebastião. Uma das grandes habilidades de Mishima é a naturalidade com que trata seus temas, afinal, não é pouca coisa descrever a descoberta da homossexualidade num país conservador como o Japão, há mais de meio século, em pleno pós-guerra.

Confissões… é um livro singelo e corajoso, mas sem ser chocante ou lascivo, diferentemente, por exemplo, de Cores proibidas, publicado no Japão em 1951, e relançado no Brasil pela Companhia das Letras no ano passado. Muitos apontam esta obra como uma continuação adulta de Confissões…, o que não é totalmente incorreto. O garoto Kochan seria agora o jovem Yuichi, um jovem e belo rapaz que vira marionete nas mãos de um escritor veterano ao confessar-lhe a homossexualidade e aceitar sua ajuda financeira para um casamento de aparência com uma mulher.

Se Yuichi se transforma em armadilha do escritor em decadência para vingar-se das mulheres que o desprezaram, parece que Mishima usa Cores proibidas para vingar-se daqueles que não aceitaram suas credenciais pela liberdade sexual apresentadas em Confissões de uma máscara. Publicado originalmente em folhetim num jornal japonês, Cores proibidas tem uma trama interessante, é também muito bem escrito, mas um pouco prolixo ao exagerar nas aventuras amorosas de Yuichi. Não que o livro seja pornográfico, mas apenas abusivo na quantidade de encontros sexuais do protagonista, o que acaba tirando o ritmo e disputando espaço com o enredo da obra. Até parece que Mishima quis dizer: “a bunda é minha, dou para quem quiser, quantas vezes eu quiser, e ninguém tem nada a ver com isso”. Realmente ninguém tem nada a ver com isso, e nem é o caso de negar a Mishima o direito de dar seus recados, mas fazer um livro chegar a 568 páginas por causa disso é exagero.

De qualquer forma, tanto Confissões de uma máscara como Cores proibidas são livros bons e fundamentais para se conhecer a obra e a personalidade de Yukio Mishima, um escritor genial e de grande importância no cenário da literatura mundial, apesar da morte precoce. Aliás, uma morte que sempre fez parte de seus livros. Em Confissões…, a dúvida maior do jovem Kochan era qual a forma ideal de partir. (“Pela primeira vez na vida, pensei com seriedade no suicídio. Enquanto refletia, porém, um grande fastio foi tomando conta de mim, e mudei de idéia, concluindo que seria burlesco suicidar-me. Esperava que algo fizesse o favor de me matar.”)

Felizmente para os leitores esse desejo não é atendido e pode-se acompanhar a trajetória de Kochan da adolescência conflitante até a chegada ao mundo adulto, quando ele tem um puro interesse em mulheres. O problema é que Kochan não conhece esse interesse a fundo, pois não descobriu a si mesmo ainda.

Depois de conhecer Sonoko, irmã de um grande amigo, ele se questiona se pode amar a uma mulher sem ter desejo sexual por ela. Mas a resposta custa a clarear na mente de Kochan. Os dois se aproximam tanto que só resta a ele afastar-se, para um surpreendente reencontro posterior, quando ela já está casada.

Homossexualidade à parte, até porque literatura não tem este tipo de gênero, a densidade emocional da narrativa apresentada por Mishima em Confissões…é empolgante, transformando Kochan em um heróico viajante solitário em busca da própria identidade, mas com receio de com isso ter que abandonar a juventude. E qualquer semelhança com o autor não parece ser mera coincidência. Em Cores proibidas, Mishima também deixava claro, por meio de Yuichi, seu receio pelo fim da juventude e a aversão pelo passar dos anos: (“O inferno para os homossexuais é o mesmo que para as mulheres: a velhice”).

Nos livros, Mishima sempre deu pistas sobre seu futuro trágico, mas não foram essas pistas, ou as suas atitudes mirabolantes, as principais responsáveis por sua fama. Mishima só foi Mishima porque, acima de tudo, era um grande escritor. Foi o talento literário que o apresentou ao mundo e abriu-lhe as portas para que se tornasse um Mister Fantástico.

Paradoxalmente, é esse mesmo talento literário que o traz mais próximo da realidade, que o deixa mais humano e mais frágil, apesar de todo o poder que Mishima tentou mostrar com seu corpo forte talhado pela musculação e pelas artes marciais, seu exército particular e seu suicídio ritualístico.

Mishima desafiou a morte, mas foi vencido pela literatura, pelo próprio talento. Os ossos já viraram pó, mas a obra continua e ganha mais força à medida que o mito vai sendo esquecido e o autor, lembrado.

Confissões de uma máscara
Yukio Mishima
Companhia das Letras
199 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho