Mário partido ao meio

Fazemos aplicações metódicas de argumentos e de ilusões; como um bom dentista, obturamos aquilo que está rachado em nós
Ilustração: Marco Jacobsen
01/06/2004

Foi o filósofo Antonio Nervo, especialista em línguas perdidas como o gótico e o hitita, quem, em seu quartinho de fundos na rua dos Mutiladores, entre gatos fedorentos e livros cobertos de mofo, me sugeriu que, em nenhuma hipótese, me fie na eficácia das polarizações. Tampouco nas idéias bipartidas, nas simetrias, nas correspondências, ele acrescentou. Em resumo, que desconfie sempre do número dois, que fuja das dualidades. A propósito, me vem à mente um comentário de Nelson Rodrigues, segundo o qual, de tão trágico, é quase impossível acreditar na existência do Fla-Flu. O mundo real, Nelson argumentava, não comporta realidades tão simétricas. Antonio Nervo me fez sua sugestão com o desejo sincero de me tranqüilizar, numa tarde em que, à beira de um colapso nervoso — e o adjetivo, nervoso, é só uma coincidência com o sobrenome do filósofo — eu chegara, zonzo, de uma consulta rotineira com meu psiquiatra, o Dr. Ozanam.

Sempre firme em seus diagnósticos, Antoine Ozanam, eminente psiquiatra behaviorista do Cotolengo, descendente de uma condessa do Gabão, acabava de diagnosticar em mim, infeliz de mim, uma grave “doença bipolar”. Seja isso o que for, e não parece ser boa coisa, é um mal crônico, que se agrava com a idade e de conseqüências, ele me assegurou, imprevisíveis. “Tanto você pode cair na mais completa insensibilidade, na indolência mais disforme, como se transformar em um artista”, ele sintetizou. “Até em um escritor!” E é claro que, imediatamente, preferi a segunda hipótese, ainda que não tenha muita paciência, nem vocação, para as artes, especialmente as modernas, e despreze a literatura como um ofício, senão menor, pelo menos decadente.

A alternância entre momentos de euforia com longas tristezas, atordoante como uma montanha-russa, caracteriza esse mal de que os psiquiatras, como caçadores desprovidos de flechas, fazem um uso urgente, e desastrado, na esperança de enquadrar o desalento contemporâneo. Tanto quanto meu querido Antonio Nervo, não aprecio dicotomias, que a meu ver só arremedam a versão bíblica do embate entre o bem e o mal. Tampouco me agradam os raciocínios nítidos e razoáveis, pois pouca coisa existe de límpido e sensato sobre a Terra. De modo que tais idéias — ou, para ser mais exato, tais ideais — não podem combinar com a verdade. Mas o fato é que meu psiquiatra não deixava de estar certo: alguma coisa muito íngreme, e logo depois muito decrescente, se movia dentro de mim, de modo que o termo bipolar, mesmo repugnante, e abjeto, não deixava de fazer algum sentido em meu caso.

Ainda assim, para me proteger, e porque julgo a filosofia mais hábil que o saber psiquiátrico, apeguei-me à tese de Antonio Nervo; mas nem essa estratégia, sinto-me obrigado a confessar, abrandou minha aflição. Só consegui desviar a atenção de meu próprio caso (horror dos hipocondríacos, a idéia fixa, assentada como um selo, sobre o Eu) quando soube que Mário, o Homem dos Lobos — mas ele nada tem a ver com o sujeito que se analisou com Sigmund Freud no início do século! —, quando soube que meu caro Mário, meu doce e fantasioso amigo, sofreu um derrame. E que hoje, estirado num colchão d’água, embora sendo ainda apenas um, o mesmo bom e divertido homem de sempre, está dividido em dois. Parte-se entre o que continua a sonhar e a variar, e o que retornou à terrível normalidade do igual e da inércia. Aquele se revolta e se agita; mas este, com uma calma irreconhecível, se deixa torcer e manipular.

Ninguém o conhece como o Homem dos Lobos, esta é só um apelido para uso íntimo que criei, inspirado na história do célebre analisando de Freud, um sujeito que tinha fobia de lobos e que, mesmo depois de décadas de tratamento, jamais se curou. Aos quatro anos de idade, o analisando de Freud passou a sentir um medo agudo de animais carnívoros. Seu primeiro horror se materializou quando, num livro de contos de fadas, deparou com a figura de um lobo. A doença se agravou ainda mais depois que, aos 18 anos, ele contraiu uma estúpida gonorréia, e o mal físico, com suas evocações perversas, veio reforçar a idéia de mal psíquico.

Já Mário, meu bom Mário, tem sua aventura perdida no tempo e na obscuridade. E ela faz parte, hoje, mais da literatura que da história das doenças psíquicas. Sim, é verdade, enquanto podia andar livremente, Mário temia lobisomens, e não lobos. O que não deixa de ser a mesma coisa, já que os lobisomens — homens que, segundo a crendice, se transformam em lobos nas noites de sextas-feiras — não deixam de ser lobos também. Então, mesmo correndo o risco de errar, e errando, e só para facilitar as coisas, ainda que as deturpando, posso continuar a chamá-lo de meu Homem dos Lobos. E que reclamem de mim, isso não me importa.

Conheci Mário, como a maior parte das pessoas, vagando pelas ruas de Curitiba. Embora tenha casa e endereço fixo, meu amigo gostava de andar e andar, sem destino, só pelo prazer de estar em movimento. Como faço caminhadas diárias com meu cachorro, que atende por Gaudí, sempre nos cruzávamos pelas calçadas do bairro. E tínhamos então a mesma, e interminável, conversa. “Morde, não morde?”, ele me perguntava, sempre a mesma questão inicial. E, sem esperar que eu esboçasse uma resposta, ele mesmo respondia: “Não, não morde. Só morde se mexer, não é?” Assim era meu convívio com Mário, quando ele ainda estava são — mas são é uma palavra inútil, ignorante, fraca demais para falar de um homem tão forte.

As dentadas, as mordeduras, as dentaduras sempre atraíram Mário. Se não falava de meu cachorro, falava de seres secretos que se escondem em árvores (e, não custa lembrar, o analisando de Freud também via lobos à espreita em galhos de árvores). Falava de lobos, lobisomens e vampiros. “Lobisomem não existe, não é?”, ele me perguntava. Nesse caso a resposta, ainda que negativa, não era consoladora. “Lobisomem não existe”, ele mesmo explicava. “Mas vampiro existe, existe. Eu sei que existe, existe, porque existe, e existe nas novelas”. E como poderia eu, de que argumentos poderia dispor, como contradizer o poder devastador das imagens oferecidas pela TV?

Então, eu, o inútil, esforçava-me para explicar a Mário a distância que separa o mundo das telenovelas da insossa realidade. Mas as novelas, como são mais doces, mesmo quando repletas de personagens pérfidos, pareciam a Mário sempre mais reais que o real. Para ele, o real, sim, era frouxo e nevoento. “Vampiro existe. Eu vi na novela. E vi na árvore”, me dizia. Eu tentava argumentar que havia ali um engano, que ele provavelmente viu uma sombra, ou folhas balançando ao vento, ou uma coruja quem sabe, e não vampiros. Mas ele, cheio de fé, me corrigia: “Existe porque eu vi. Existe nas novelas, mas existe porque eu vi”. E, se ele viu, bem, nada mais me restava a dizer, só me cabia acatar.

Assim era Mário, o fantasista, enquanto circulava pelas ruas e podia, no seu jogo de lobos, manipular a existência, adequando-a a sua vontade. Talvez pelo medo que não o abandonava, talvez porque a presença de tantos vampiros e seres dentados o massacrasse, Mário sofreu um colapso. E agora, em vez do mundo estar partido ao meio, como os viscondes de Ítalo Calvino e as arquibancadas do Fla-Flu, é Mário quem está bipartido. Quem tem não uma alma bipolar, como o Dr. Antoine Ozanam viu em mim, infeliz de mim; mas um corpo bipartido, no qual encarna, como numa ascese, a nossa divisão mais íntima, aquela que nos funda enquanto homens. Sim, porque todos estamos partidos, sempre, mas para escapar disso usamos as palavras como cola, fazemos aplicações metódicas de argumentos e de ilusões, obturamos, como um bom dentista, aquilo que se divide, que está rachado em nós. E lá seguimos nós, homens partidos, mas colados com bandaid.

Sou um homem covarde, a tristeza me dominou e não tive coragem de visitá-lo. Sei perfeitamente o que se passou comigo: não quis ver o que, sem ver, posso atribuir a uma perturbação mental, como faz, cheio de si, o Dr. Ozanam. Não quero citar Antonio Nervo, o maior filósofo vivo do Cotolengo, porque dirão que escrevo a seu soldo; mas preciso citá-lo, não por desejo, e sim por obrigação. “Divisões são ervas daninhas. Servem apenas para encobrir a beleza”, ele escreveu. Não recordo o nome do livro, mas o leitor poderá achá-lo nas melhores livrarias. Basta pedir “Antonio Nervo”, e qualquer vendedor razoavelmente informado saberá o que lhe dar.

E está certo o filósofo: se olho para Mário, vejo a idéia de Nervo materializada em um homem. Mas, como não tenho coragem de olhar para Mário, de visitá-lo, vejo (ou acho que vejo) a idéia de Nervo encarnada noutra idéia, que é a idéia que tenho de Mário hoje. E assim, abrigando-me nesse abismo de idéias, fujo de Mário, como Mário fugia dos lobos. Não há novidade nisso, já que de alguma coisa todos sempre fugimos. Mas existe algo, sim, completamente novo: ao pensar em Mário, enfim, e depois de tanto tempo, deixei de pensar em mim. E, desse modo, posso dizer que me curei.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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