Lotação esgotada para clichês

Em "De cada amor tu herdará só o cinismo", o jornalista Arthur Dapieve não acrescenta quase nada à literatura
Arthur Dapieve, autor de “De cada amor tu herdarás só o cinismo”
01/12/2004

Certas obras de arte nascem sob as influências do signo/clichê “parece, mas não é”. De uma primeira espiada parece uma coisa boba; se examinada com mais atenção, parece uma coisa ainda mais boba, revestida com o perverso celofane das segundas intenções. Esse é e também não é o caso de De cada amor tu herdarás só o cinismo, do jornalista Arthur Dapieve. Parece uma história de amor onde o casal protagonista faz uso de todos os clichês que costumam acompanhar as histórias de amor. As fictícias e as nem tanto.

O autor apresenta Bernardino, o Dino — publicitário, 46 anos —, um cachorro correndo atrás do próprio rabo ou o fracassado perfeito. Entenda-se como fracassado perfeito aquele que não consegue êxito inclusive na tentativa de suicídio. Dino é a mais perfeita tradução do looser e, se não habita as ruas também, queda-se a distância gigantesca do vitorioso, quer profissional, quer afetivo.

Publicitário decadente — suas poucas glórias são provenientes de uma única campanha de margarina — tenta incrementar sua vida sentimental utilizando os mesmos limites estreitos de sua criatividade profissional. Embora nesses casos nunca se aconselhe o caminho do óbvio, é justamente por ele que nosso trágico publicitário se arrastará. A agência experimenta seus dias de agonia e, no entanto, ao sair de casa, Dino passa a viver num apart-hotel no Leblon. Para quem não sabe, apart-hotel no Leblon não é para publicitário decadente. Apaixonado por Adelaide, a estagiária da agência, acredita piamente na reciprocidade de tal arrebatamento, uma pedra a mais em seu calvário.

Dino é uma espécie de Quixote, que sai de casa em busca de aventuras, imita o patético e deposita sua petulância em armas pra lá de obsoletas. “O mundo mudou na janela, só Carolina não viu.” Derrotado, tenta retornar à sua aldeia, esquecendo-se da regra básica de convivência: o objetivo nunca pode ser individual. Adelaide bem que tentou abrir seus olhos. O publicitário da triste figura acrescenta mais um fracasso em sua folha corrida. Seus alvos parecem móveis, inatingíveis em todas suas frentes de atuação: a relação idealizada com Adelaide não vinga, não realiza a campanha publicitária de uma companhia aérea, a tentativa de voltar para sua mulher é malsucedida, e tamanha intimidade com o malogro chega ao auge quando, mesmo armado, não consegue se suicidar.

Dapieve construiu um romance em que não acontece absolutamente nada. Caso tenha sido esta a intenção do autor, parabéns. Olhando assim, De cada amor tu herdarás só o cinismo é um fiel retrato de vidas como a da maioria dos seres humanos nas quais a rotina é o cintilante objeto do desejo, bem diferente das vidas movimentadas das novelas de TV.

O leitor se verá diante do romance da solidão, ou melhor, o romance das duas vezes solidão. A oficial e a clandestina. Como subtítulo, romance das tentativas, excetuando-se a performance do protagonista, restam as tentativas do autor, quem sabe ele quis fazer um romance juvenil e divertido? Hã hã. Então uma análise profunda a respeito do inevitável esgarçar dos sentimentos? Faça-me o favor! Ao combinar fatos reais com ficção, o show do Rock in Rio, o tiro que atingiu Marcelo Yuka, por exemplo, Dapieve foi muito mais jornalista que romancista, o que oportuniza uma outra abordagem, o romance do quase. Prefiro deixar de lado o “quase” e trazer à cena a afirmação: este De cada amor tu herdarás só o cinismo é a diluição de vários romances, entre eles Alta fidelidade, de Nick Hornby, a relação de Rob Flemming com as músicas, tentativa vã de ocultar as frustrações amorosas, o comprometimento com a cultura pop, no que ela tem de mais frágil com Hornby e nem tanto com Dapieve, as pitadas de remorso, insossas em Dapieve e bem temperadas em Hornby. Resumo da ópera: um livro que não sendo você, leitor de primeira viagem, lhe trará a sensação de estar lendo o já lido.

Não faltou pouco para o romance garantir sua participação no show das grandes obras, no entanto falta muito para engrossar a fila das tristes obras que não merecem leitura. Recomendo aos jovens, no máximo 15 anos, como um alerta contra a vulgaridade e o deslumbramento que os perseguem e também como vacina a garantir imunidade ante o ridículo que costuma arruinar reputações dos senhores maduros.

Não são poucos os pontos vulneráveis do romance e alguns chegam a ser constrangedores, um desses momentos: Adelaide presenteia Dino com um exemplar de O amor, de Dino Buzzati. Gracinhas à parte — não esqueçam que a estagiária é recém-saída da adolescência — a homenagem aqui deixa suspeitas de muleta barata. Não é nada, não é nada. Não é nada. Não é nada, mas pode ser aquela coisa ainda mais boba revestida com o perverso celofane das segundas intenções.

O argumento utilizado por Dapieve é por demais batido e se não desrespeita as regras da verossimilhança esquece que um desfecho capaz de surpreender o leitor pode salvar uma obra. O romance começa e termina num show e deixa à mostra as mais simplórias intenções do autor: em casa, a pacata realidade doméstica, filhos criados, mulher independente; fora dali, shows de rock, a movimentação, “as gatinhas, a bebida, o sexo sem envolvimento”. É justamente no último aspecto que a falta de traquejo com a realidade transforma o adulto inquieto num tolo adolescente. Desconhecendo a mais utilizada conjugação dos verbos “ficar, transar e esquecer”, pretérito perfeito, o sonho do publicitário logo se transforma num anúncio assombroso.

É público e notório que muitos homens se identificarão com o publicitário, pude confirmar isso, embora pelo mesmo motivo, o Dino de Dapieve seja incapaz de fascinar o leitor mais ingênuo. A ênfase na origem do Dino serve apenas para evitar confusões com o Buzzati, escritor italiano que por vezes rouba a cena tornando a personagem uma sombra desmaiada.

A obra capital de Cervantes, durante muitos anos foi encarada como literatura infantil, pelo menos na Espanha — ó benditas crianças espanholas!. Tal interpretação não desmerece em nada o Dom Quixote, muito pelo contrário. Apenas as grandes obras são capazes de estimular incontáveis estágios de interpretação. Sei que pareço cruel e prevalecido trazendo a essas linhas logo Cervantes para apontar Dapieve e só o faço por ser o autor um profissional elegante, seguro de seu ofício e caso venha a se sentir ofendido, tenho minhas dúvidas, simplesmente saberá ignorar este modesto aprendiz.

De cada amor tu herdarás só o cinismo
Arthur Dapieve
Objetiva
224 págs.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho