Ao gastar R$ 40 num romance, o que se espera é ler uma história interessante e bem escrita. Pelo menos isso, por favor. Não é uma exigência absurda. É o mínimo que um escritor precisa oferecer a seus leitores, a partir do momento em que decide tirar uma obra do arquivo do computador ou da gaveta em folhas datilografadas ou manuscritas e publicar em papel bacana, com letra serifada, capa bem feitinha e tudo a que tem direito. Caso contrário, gaveta nela! Deixa a coitada lá, quietinha. De histórias medíocres e sem personalidade, as livrarias já estão cheias — assim como a paciência dos leitores. Ninguém aqui está dizendo que todas as obras precisam ser geniais, que todos os escritores devam ser Machados ou Sheakespeares. Não é isso. Não é preciso inventar histórias mirabolantes, com enredos densos, tensos e filosóficos. Mas têm, pelo menos, de mostrar a que vieram. Histórias simples e bem contadas são deliciosas. Valem a pena, merecem estar em livrarias, bibliotecas, cabeceiras. Os livros despretensiosos podem conviver pacificamente com as obras-primas. Sem problemas.
Não é, de jeito nenhum, o caso de Os atalhos de Samanta, de Márcio Paschoal. O livrão de 350 páginas pode ser despretensioso, mas não tem nenhum atrativo. A linguagem é sem graça, sem novidades. Paschoal é ávido leitor de Nelson Rodrigues, que admira por suas frases sensacionais, e Sérgio Porto e Luis Fernando Veríssimo, por causa do humor. Infelizmente, apenas ler não nos torna escritores de talento. No livro de Paschoal não há nem frases de efeito, nem humor. Nada.
A história também não é muito interessante. Samanta é uma pobre coitada que sempre quis ser cantora famosa. Não tem talento, mas, como se sabe, isso não é impedimento. Afinal, filhos de cantores consagrados ou então aparentados de donos de grandes casas de show sempre conseguem lançar seus cedezinhos com uma ou duas músicas de sucesso efêmero. Mas Samanta não é filha de famosos nem parente de magnata do showbiss. O que fazer, então? Entrar em um concurso de calouros? Não, o resultado pode não ser lá grande coisa. Ter de enfrentar jurados no sábado à tarde não é uma saída muito prática e pode comprometer a imagem de uma mulher que quer se transformar num ídolo da MPB. Melhor mesmo é ter um caso com um bam-bam-bam de uma gravadora de renome. Samanta tem a oportunidade nas mãos (bem, não é exatamente nessa parte da anatomia, mas…) e aproveita, é claro.
Num show arranjado por um namoradinho pé-rapado e envolvido com drogas até o último fio de cabelo, a moça tem uma crise de pânico e não quer mais entrar no palco para mostrar seus parcos recursos musicais a uma platéia desinteressante. O namorado dá um jeito: pede para uma amiga dar uma ajudinha química. Feliz da vida, Samanta cheira uma carreira caprichada, toma um coquetel de uísque com açaí e Red Bull. A guria fica a mil. Canta fazendo caras e bocas e acaba fazendo xixi no palco. “— Gente, essa foi tão boa que eu me mijei toda! […] Rosário justificava para Paulão: talvez o pó estivesse ‘malhado’ para melhor, ou seja, puro demais, o uísque era um Black Label, o concentrado de açaí era de fonte confiável e o Red Bull podia dar asas, mas nem tanto.[…]” (p. 24 e 27). Propaganda de energético e tudo.
No show, Nestor, um peso médio de gravadora, fica encantado com a performance da moçoila. Enlouquece com a história do xixi no palco. Convida Samanta para sair. Negócios, ele garante. Mas sem o namorado-empresário. No que isso vai dar, todos já estão carecas de saber. Nestor leva a moça para um motel, para ficarem mais à vontade. E lá, pede para que ela repita a performance do show. Em cima dele. Para que ela ceda a seus desejos escatológicos, o homem promete gravar um CD para a cantorinha. Pronto. Começou a percorrer o atalho para a fama. Depois de algumas noites regadas a Prosecco e uretras incontidas, Nestor quis apimentar um pouco a relação. O lance seria masoquismo. Com direito a roupas de couro, chicotes e agulhadas.
Demorou um pouco, mas a cantora — agora sob a alcunha de Samanta Montenegro — conseguiu começar a gravar o disco. Não tinha um bom repertório, nem talento, nem beleza sensacional, mas isso não queria dizer nada. Nestor contrata alguns experts e várias idéias vão surgindo: gravar uma música meio desconhecida do público, com o nome adulterado para não pagar direito autoral à família do falecido compositor; fazer versões de músicas de bandas internacionais; regravar um ou outro sucesso de cantores nacionais; homenagear Elisete Cardoso; e até gravar uma música da turma do Casseta & Planeta.
Nessa parte do livro, antes ainda da metade, o autor quer mostrar como funciona a já manjada indústria fonográfica brasileira. Como se ninguém soubesse dos truques dessas cantoras de um sucesso só, pré-fabricadas, com uma áurea “lesbian-chic”, para usar palavra da moda.
“— Se você quer ser cantora, Samanta, vai ter de mudar de cabeça. Artista não pode ficar preso a preconceitos. Não aceitar homossexualismo feminino, ainda mais querendo ser cantora de MPB, vai ser complicado.
— Não quero forçar nada. Só quero ser cantora, gravar meus discos, fazer sucesso, viver de música. Sexo é outro departamento.
— Pode fingir.
— Fingir?
— Isso mesmo. Provocar suspense. As pessoas podem e devem imaginar o que bem quiserem. Ou mal quiserem, tanto faz…[…]” (p. 68/69)
Samanta leva a sério o conselho. E acaba tendo, além do caso com o moço da gravadora, um affair com Rosário, a mulher que lhe deu a “bomba” no dia do show e que, por coincidência, também é compositora. Quando a banda está montada para gravar o CD, tem ainda um relacionamento — só sexual — com Válter, o homem do trombone de vara. Aí o leitor tem de agüentar o infame e mais do que clichê trocadilho: “Já Valter […] era conhecido por ser um dos mais completos trombonistas de vara. […] A especialidade dele era a vara longa, que também gerava infames insinuações e duplos sentidos. Ninguém ao certo saberia dizer se ele era mesmo um bem-dotado.[…]” (p. 139)
Fraquinho, o CD precisa de uma publicidade. Aí entra em cena o advogado Maximiliano Junior (conhecido como Mad Max e com quem Samanta também acaba tendo um caso). Ele dá a idéia genial: fazer uma música usando uma frase de um cantor famoso e dizer que a composição era uma parceria. Escolheram “Nem toda loucura é genial, como nem toda lucidez é velha”, de Chico Buarque. Fizeram a música Loucura genial, colocaram na capa do CD, em letras garrafais “em parceria com Chico Buarque”, e esperaram o sucesso. Que vem, é claro.
Por dentro da indústria — Márcio Paschoal é formado em Economia. É, também, jornalista, crítico musical, letrista (tem uma parceria com Ruy Maurity em duas canções desconhecidas), professor de literatura na Estação das Letras e consultor de técnica de redação para a Fundação Getúlio Vargas. Publicou o romance Sofá branco (menção honrosa do Prêmio Graciliano Ramos), o ensaio de humor Cada louco com sua mania; o guia astrológico Horóscopo sexual para praticantes; e a biografia autorizada Pisa na fulô mas não maltrata o carcará, sobre João do Vale.
Escreveu Os atalhos de Samanta porque, diz, conhece bem os bastidores do mundo fonográfico nacional. Infelizmente, não acrescenta nada e, especialmente, não discute o tal “atalho” — fato ressaltado por algumas matérias em jornais e sites dedicados à literatura e/ou música. Paschoal poderia ter trabalhado melhor no romance, ter cuidado mais da história. Não devia ter tirado Samanta da gaveta ainda.
Quanto mais você disser
(Márcio Paschoal e Ruy Maurity)
Quanto mais você disser
Que eu não devo insistir
Mais ainda te levarei
Pelas estradas que eu não vi
Quanto mais você fugir
Das promessas que eu não sei
Mais perto ainda estarei
Dos caminhos que levam a ti
Meu amor só é capaz
De acender o teu prazer
Quanto mais perco na vida
Mais me acho com você
Meu amor só é capaz
De acender o teu prazer
Quanto mais olho no espelho
Mais pareço com você