De olho no mundo ao redor

Aos 82 anos, Nelly Novaes Coelho é uma crítica literária com um olho no clássico e o outro na novidade
Nelly Novaes: “Fidelidade é sem dúvida uma das grandes virtudes do homem. Infelizmente hoje muito rara”
01/04/2004

Quem a conhece se espanta. Não é ranzinza, nem presunçosa. Mas faz — sempre fez — crítica literária. Como isso é possível? No texto de apresentação do livro Linhas e entrelinhas: homenagem a Nelly Novaes Coelho, a organizadora do volume, Elisa Guimarães, fixa bem a “imagem de dínamo inexaurível, recarregado sempre de moto próprio”, dessa “professora e orientadora que nunca se resignou a ajustar a sua vista à limitação das pequenas distâncias”, “parecendo ter nascido para a confraternização, para os grandes espaços de convivência sadia”, sendo o seu “astral incrivelmente leve, sem afetação nem maneirismos exóticos”. É isso mesmo! Aos 82 anos, firme e forte, a professora, pesquisadora, ensaísta e crítica Nelly Novaes Coelho não pára. Viaja pra cima e pra baixo, proferindo palestras, participando de mesas redondas, concedendo entrevistas, dialogando com escritores e leitores daqui e de Portugal, indo a lançamentos de veteranos e novos… Mesmo quando não está viajando, mesmo quando está no conforto do seu apartamento da rua dos Franceses, em São Paulo, Nelly não pára: orienta dissertações e teses (até hoje foram quase cem!), escreve resenhas, ensaios, prefácios, posfácios, organiza coleções didáticas, revisa seus próprios livros a caminho da reedição… Hoje professora aposentada da USP, havia pouco tempo ela fazia tudo isso e ainda dava aulas, organizava novos cursos e colaborava regularmente com os cadernos literários. Além de escrever no Estado de S. Paulo, durante muito tempo manteve na revista Colóquio-Letras, de Portugal, a seção Cartas do Brasil. Dos livros que publicou, destacam-se Literatura e linguagem, Escritores portugueses, o Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil e o Dicionário crítico de escritoras brasileiras. Quem faz literatura sabe que nas universidades são poucos os críticos que se preocupam em acompanhar a produção dos jovens. Nelly sempre pertenceu a esse pequeno grupo. Ainda hoje ela se dedica aos clássicos, mas sem descuidar da literatura que está sendo feita no momento mesmo em que ela escreve. Esse, o seu maior talento.

• Você nasceu junto com a Semana de Arte Moderna. Ou seja, já são oito décadas de existência, seis delas dedicadas à literatura. De onde você tira forças para continuar escrevendo, aprendendo, ensinando e debatendo, aqui e no exterior, quando tudo no caos cotidiano nos convida à inércia, nos empurra para o sofá?
Realmente eu nunca tinha pensado nisso, como interrogação: por que continuo (apesar dos oitenta e dois anos de idade e de há muito ser considerada oficialmente inativa pela USP) com o mesmo empenho e ritmo nas atividades (cursos de especialização, orientação de teses, congressos, pesquisas, livros, artigos etc.) e o mesmo prazer nesse empenho? Só encontro uma resposta: essa é a minha maneira de ser e de viver com os outros. Creio que é isso: o prazer e o desafio de participar da aventura do Viver e do Saber, com aqueles que o destino fez, e faz, cruzar o meu caminho. Participação que obviamente envolve esforço, resistência interior, por vezes sofrimento e, é claro, saúde… Talvez seja por isso que, desde muito cedo, a literatura foi o grande prazer e o grande desafio de minha vida. Através dela eu me sentia (e sinto!) participante das alegrias ou tristezas, dos ideais ou das mil paixões de que a aventura humana é feita. Sem dúvida foi essa experiência vital, começada na infância, que fez de mim a leitora voraz e apaixonada pelo estudo que sou até hoje.

• Portugal sempre foi a sua segunda pátria. A língua portuguesa, quer queiramos ou não, é fonte de grande angústia para o escritor lusófono. Falo dessa angústia hereditária que contamina nossa literatura há séculos, atrapalhando a sua assimilação pelo resto do mundo, dada a falta de prestígio do nosso idioma. Estamos isolados. Então por quê, apesar de isolados, mal nos dispomos ao maior intercâmbio com os escritores portugueses, angolanos, moçambicanos, e vice-versa?
Bem, aí você coloca duas questões: Portugal como a minha segunda pátria e a pouca repercussão da língua portuguesa no mundo. Quanto à primeira, é verdade: Portugal é a segunda pátria em meu coração. Mas note que, como boa brasileira que sou, demorei um pouco para descobrir Portugal. Até o momento em que eu entrei no mundo pensante que é a Universidade (onde ingressei já adulta, mãe de família etc.) e comecei a descobrir a literatura e a cultura portuguesas, Portugal era para mim (como para a maioria dos brasileiros) apenas algo familiar e bom, mas meio distante e pouco lembrado, igual a um avozinho que morasse longe e de vez em quando fosse lembrado como algo importante para a família… Mas nunca visitado. Como você bem sabe — como brasileiro que também é —, em nosso mundo afetivo somos indiferentes à memória do passado, o que é ruim! Daí que em geral o nosso povo seja indiferente às nossas raízes… Principalmente às raízes lusas. Isso, sem dúvida, porque ainda somos um povo-criança. Porém ao que parece já começa a haver uma reação… Isso é ótimo! Mas, voltando à minha experiência pessoal: foi através do estudo e dos vários estágios feitos em Portugal (graças à Fundação Gulbenkian) que descobri realmente a natureza e a cultura do povo que nos plantou aqui. Descobri o Portugal que foi a ponte que, desde o início, nos ligou à cultura européia e nos fez participantes da civilização ocidental. E mais, foi o povo que, dentro da política dos grandes descobrimentos, vigente no século 16, conseguiu a façanha de manter íntegras as nossas fronteiras, apesar das constantes invasões de outros povos (franceses, holandeses etc.) que pretendiam apossar-se do nosso território. Façanha que fez do Brasil o país-continente que continua a ser cobiçado pelo resto do mundo. É preciso estar atento a essa ameaça, que hoje assume mil outras formas de dominação.

• Você não acha que é o fato de falarmos português, idioma tão pouco conhecido, que impede que a nossa literatura consiga competir de igual para igual com a de outros países, principalmente nas Américas e na Europa?
Falarmos uma só língua (a língua portuguesa, apesar das variações regionais que não a descaracterizam) é uma das nossas riquezas. Mas no geral o povo não tem consciência disso. Por outro lado, você tem razão quando se refere ao desprestígio do nosso idioma no mundo. O que redunda em grande prejuízo para o conhecimento de nossos escritores e de nossa cultura. E isso, apesar de a língua portuguesa ser falada em três continentes (Europa, América do Sul e África lusófonas) e em sete países (Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné-Bissau). Quantos milhões de falantes ela tem? As estatísticas falam de cerca de duzentos milhões de usuários, incluindo regiões longínquas como Goa (Índia) e Timor Leste (China), antigas colônias portuguesas. É preciso pensar nisso. Claro que o prestígio de uma língua depende do prestígio político, econômico e cultural do país onde ela é falada, e nesse ponto ainda temos muito a caminhar. Mas como não adianta chorar sobre o leite derramado, o que nos cabe, diante da realidade, é nos entregarmos pra valer ao fortalecimento cultural do bloco lusófono (luso-afro-brasileiro) para que, com o tempo, a língua portuguesa possa se tornar tão conhecida, dentro da globalização em marcha, quanto as demais.

• Você acha possível levar a cabo, a curto prazo, esse fortalecimento cultural?
Temos potencial literário e cultural para isso, mas existe o obstáculo do não-conhecimento, que nos separa uns dos outros. Para essa integração, Brasil, Portugal e África precisam conquistar o instrumento de dimensão político-cultural que se faz indispensável. E isso exige fundamentalmente a vontade coletiva. Haverá um caminho concreto para dar início a essa integração? Aponto para o da tradução. Caminho que poderá ser realmente fecundo, se for encarado a sério. Como é que Jorge Amado se tornou um ícone do Brasil? Claro que não foi por ter sido lido apenas em português, mas principalmente por ter sido traduzido em todas as línguas faladas no bloco da antiga URSS. É só fazermos uma visita à Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador, para nos darmos conta disso… Claro que nisso houve o grande dedo político… Mas a verdade é que a tradução revelou Jorge Amado ao mundo. E como Paulo Coelho se tornou fenômeno editorial no além-fronteiras? E Guimarães Rosa? Se não fossem as traduções (das quais ele cuidava com o maior empenho e paixão), como o mundo lá fora iria tomar conhecimento da grandeza de sua obra? De que forma ele seria hoje reconhecido como uma das grandes presenças da literatura brasileira contemporânea? E todos os do passado estariam hoje consagrados como clássicos universais (Dostoievski, Goethe, Shakespeare, Dante, outros e outros), não fossem as traduções? Parece óbvio que essa é a tarefa que aguarda os novos escritores lusófonos: criar a vontade coletiva, forçar a vontade político-cultural dos países envolvidos (o bloco luso-afro-brasileiro) a abrir espaço para a tradução de suas obras nos países irradiadores da cultura e da literatura no mundo globalizado. Iniciativas individuais são insuficientes…

• O Nobel demorou, mas finalmente saiu para o Saramago. Apesar de apreciar seus livros, eu preferia que tivesse sido para o Lobo Antunes. Quando é que os palitinhos da política internacional trarão essa láurea para o Brasil?
Claro que a demora de se atribuir um Nobel a um escritor de língua portuguesa (políticas à parte) se deveu ao óbice que acabamos de discutir: a falta de repercussão da própria língua portuguesa. Quanto à escolha de Saramago em lugar do Lobo Antunes (ambos grandes!), eu tenderia mesmo para o primeiro, pois ele vem realizando uma obra mais representativa da portucalidade, de sua natureza profunda e de sua evolução histórica. Quanto à atribuição do Nobel a um brasileiro, por enquanto acho que a grande chance foi perdida com a morte prematura de Guimarães Rosa. Aguardemos o passar do tempo. Quem sabe algum dos nossos grandes poetas ou ficcionistas de hoje não o alcançará?

• Boa parte da sua obra, e destaque seja dado ao Dicionário crítico de escritoras brasileiras, trata especificamente da literatura feita por mulheres. Nesse emaranhado que é a vida em sociedade, qual a importância de se oferecer ar aos sufocados, de bombardear as interdições e privilegiar apenas os anteriormente excluídos da política e da cultura: as mulheres, os negros, os gays, por exemplo?
Na verdade, nestes últimos anos tenho me voltado mais para a produção literária das mulheres do Brasil e de Portugal e para a que se destina às crianças e aos adolescentes. E isso devido às circunstâncias. Como disse Ortega y Gasset: “Yo soy yo y mis circunstancias.” A partir dos anos 60 e 70, os ventos começaram a soprar para o lado dos culturalmente minimizados pela sociedade tradicional: mulheres, crianças, negros e outros. Como sabemos, a literatura e as artes em geral são um verdadeiro sismógrafo das mudanças que vão acontecendo no mundo. E a partir da segunda metade do século 20, com as mudanças pós-Guerra Fria, houve um verdadeiro boom literário. Paralelamente à poesia do Novo Humanismo (ou Novo Épico), criada pela Geração 60/70 (incluindo homens e mulheres), surgem, principalmente no romance, grandes vozes femininas que testemunham o difícil processo de liberação da mulher e a conseqüente crise das relações homem-mulher. Crise que é das mais sérias do nosso tempo, uma vez que tais relações, em última análise, são a célula-mater de qualquer sociedade. Até neste limiar do século 21, esses testemunhos se sucedem, embora o tom em que são expressos venha mudando: do tom reivindicador, crítico, desafiante ou desalentado, dos primeiros tempos, aos poucos passam a um tom irônico ou cético, lúdico, displicente etc., de uma mulher que tem consciência de que “ganhou, mas não levou”. Na verdade, o Sistema ainda não pôde absorver essa nova mulher nem lhe abrir o novo espaço necessário. Mas não há volta. É daqui pra frente… O tempo resolverá. Foi no sentido de registrar essa evolução-revolução do lugar da mulher na sociedade e na História que, durante dez anos, analisei a literatura feminina brasileira (a partir do século 18) e escrevi o Dicionário crítico de escritoras brasileiras. Agora estamos escrevendo o das escritoras portuguesas, que venho estudando há mais de trinta anos. Como sabe, a minha área oficial de carreira na USP é a da Literatura Portuguesa, literatura cuja grandeza é praticamente desconhecida dos brasileiros.

• E a literatura infantil, onde entra? Antes desse dicionário das escritoras brasileiras você já havia preparado o Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil. Esse projeto foi um desvio na sua carreira oficial?
Sim, foi. Como sempre, as circunstâncias… Não sei explicar como me vi envolvida, nos anos 70, com um grupo de escritoras de literatura para crianças, liderado pela dinâmica Lenira Fracarolli, então diretora da Biblioteca Monteiro Lobato, de São Paulo. E acabei participando da fundação do Centro de Estudos de Literatura Infantil e Juvenil (CELIJU), que durante mais de quinze anos teve atuação notável nesse setor. Essa minha aproximação à àrea foi por ocasião da eclosão da nova literatura para as crianças, quando surgiram os grandes criadores (escritores e ilustradores de alta categoria), hoje nomes conhecidos internacionalmente, como Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Eva Furnari, Lygia Bojunga Nunes, Angela Lago, Mary & Eliardo França e dezenas de outros. Essa Nova Literatura Infantil acertava o passo com as idéias transformadoras que a literatura para os adultos já vinha propondo desde o início do século 20, visando com isso a formação de uma nova mentalidade ou de uma nova visão de mundo (que ainda hoje está em formação). Resumindo: diante dessa nova literatura e da crescente certeza de que, na Universidade, os que se preparavam para serem professores precisavam receber uma nova formação para lidar com as crianças que no futuro iriam atuar no mundo-em-transformação, resolvi propor ao Departamento de Letras da USP a criação da disciplina de Literatura Infantil e Juvenil. A proposta foi aprovada e desde 1980 a LIJ passou a existir no currículo de Letras. Desde então passei a atuar em ambas as áreas: na portuguesa e na infantil. Esta disciplina existe até hoje na USP, na graduação e pós-graduação, com crescente sucesso. E foi para essa linha de formação docente, e também para auxiliar a tarefa dos bibliotecários na orientação das leituras para esse difícil público, que escrevi o Dicionário crítico de literatura infantil e juvenil, além de outros livros ligados à àrea.

• A boa literatura infanto-juvenil — Pinóquio, Alice no país das maravilhas, Reinações de Narizinho e O pequeno príncipe, por exemplo — é a que estimula os sentidos e o intelecto de maneira tão particular que, cruzando fronteiras, com facilidade acaba agradando também os mais velhos. Ou seja, a produção de obras-primas infanto-juvenis requer tanto talento quanto a produção de obras-primas para o público adulto. Mas a imprensa cultural foge do corpo-a-corpo com a literatura infanto-juvenil, evitando analisá-la e criticá-la com seriedade. Na sua opinião a que se deve esse preconceito?
Pode haver várias respostas para essa minimização dos livros infantis por parte da crítica ou da imprensa cultural, como você diz. Fato que não acontece no âmbito universitário! Uma das prováveis respostas estaria no preconceito herdado da sociedade tradicional, romântico-cristã-liberal-burguesa, que via a literatura para crianças como um instrumento didático. Isto é, uma leitura destinada a ensinar as regras do bom comportamento ou legitimar os valores do sistema ético-social, considerado perfeito. Valores que, por isso, deveriam ser reproduzidos sem nenhuma alteração pelas novas gerações. Daí o método da memorização adotado no ensino tradicional: era só conhecer, decorar e repetir tal e qual. Lembremos de que se tratava de um sistema social cuja pedra base era a obediência absoluta e irrestrita às normas e aos superiores, conseqüentemente um sistema empenhado na repressão da imaginação e da liberdade de pensamento. Enfim, os livros infantis de ontem (excluindo-se as obras clássicas que você mencionou e tantas outras, como os contos de fadas) eram considerados produtos de segunda categoria, e com certa razão, porque a maioria deles não era literatura autêntica. Foi contra esse aspecto exemplar e medíocre da maior parte da literatura infantil publicada até o início do século 20 que o Lobato se insurgiu, acabando por criar o mágico mundo do Sítio do Picapau Amarelo, cuja tônica principal era o gesto libertário, encarnado na Emília, símbolo da imaginação criadora. Hoje, entretanto, diante da riqueza artística, lúdica e existencial da literatura para crianças e adolescentes, só os que a desconhecem podem minimizá-la ou considerá-la de segunda categoria, em relação à literatura para adultos.

• E o que você acha das adaptações de obras clássicas, que vêm sendo largamente publicadas, visando o público jovem, principalmente para o consumo escolar? São válidas?
Em princípio acho que as adaptações, desde que feitas por um bom escritor, são ótimas, porque, de maneira acessível, põem os jovens de hoje em contato com as grandes lições de vida, ou as grandes visões de mundo, proporcionadas pelos mestres de ontem. Os costumes mudam, mas a natureza humana continua sempre a mesma. Precisamos dos exemplos do passado. Para o leitor comum, que não tem a literatura como matéria de estudo ou de pesquisa, não é importante o mergulho na arte maior da linguagem original que eternizou a obra no tempo. Para esse leitor basta apenas se sentir envolvido pela aventura humana ali vivida pelas personagens. Isso certamente enriquecerá o seu mundo interior. Mas para isso é indispensável que ele sinta, no decorrer da leitura ou por meio de um comentário que sirva de introdução à obra, qual é a lição de vida ali patente ou metaforizada. Pois é ela o que importa conhecer. Sem que ele sinta essa lição, a leitura se torna mero entretenimento. O que, em se tratando dos grandes mestres do passado, é absolutamente insuficiente. A propósito, lembro um exemplo recente: a apresentação do Dom Quixote, na Folhinha, do jornal Folha de S. Paulo, de 13 de março de 2004, através de uma história em quadrinhos. A quadrinização, bastante sugestiva e lúdica, segue fielmente a atmosfera da trama aventuresca, aparentemente ridícula, tal como criada por Cervantes. Até aí, tudo bem. Mas os textos e as chamadas que informam sobre quem é Dom Quixote são deploráveis, pois se limitam a repetir a mesma leitura distraída dos que, através dos tempos, se limitaram às aparências da trama e rotularam Dom Quixote como um louco que, por ter lido demais as novelas de cavalaria, chegou a “ficar com os miolos secos”. Pode até ser que os pequenos leitores se divirtam com esses disparates quixotescos, mas para sempre verão nele só o Cavaleiro da Triste Figura, sem nunca descobrirem a tragicidade que há nessa figura. Nela, Cervantes criou um dos grandes símbolos do Homem, não só em sua obstinação ao lutar contra os obstáculos que o mundo opõe à plena realização de seus ideais de grandeza, heroísmo, solidariedade etc., mas principalmente por sua fidelidade ao Ideal. Fidelidade é sem dúvida uma das grandes virtudes do homem. Infelizmente hoje muito rara.

• Diferentemente do que aconteceu na época em que Drummond, Cabral, Murilo Mendes, Graciliano, Rosa, Clarice e inúmeros outros autores canonizados em vida escreviam e publicavam, a literatura brasileira contemporânea tem tido dificuldade em dar à luz obras de inquestionável valor. Em Portugal e nos demais países lusófonos a mesma síndrome se repete. Aliás, não é difícil perceber essa malemolência no mundo todo e em todas as artes. Na sua opinião a que se deve este período de profunda estagnação criativa? Os artistas, enquanto antenas da raça, hoje estão interessados só na tevê por assinatura?
Não. Eu não falaria em estagnação criativa, mas talvez em multiplicidade criativa. Por quê? É de se notar que nunca se publicou tanto como nos últimos anos, principalmente devido às conquistas e facilidades da tecnologia. Nessa avalanche tem surgido muito joio, mas, no meio dele, muito trigo também. Até onde posso ver, hoje não há circunstâncias favoráveis para novas descobertas. Posso estar sendo míope, mas acredito que tudo o que o século 20 propôs, como nova visão do mundo e do homem, ainda não é conhecido ou ainda não foi conscientizado pela maioria da humanidade. A evolução da mente é muito lenta… Daí a necessidade de multiplicação, que não se reduz à cópia ou ao mero plágio, mas à reinvenção. Cada escritor terá a sua maneira de ver e sentir os mil e um problemas postos ao homem, neste nosso mundo em pleno processo de mutação. Cada um privilegiará um aspecto, um estilo, uma linguagem, uma temática etc., tratando-os com a sua personalidade, as suas vivências e a sua imaginação. E com a sua reinvenção estará ampliando o panorama do Novo em gestação. Isso é absolutamente necessário: a multiplicação das descobertas ou das interrogações que vêm de ontem, pois as respostas definitivas ainda não surgiram. Acredito, sim, que os artistas e os escritores continuam a ser as antenas da raça. Os telespectadores é que precisam ser alimentados com valores que enriqueçam sua visão e seu conhecimento da vida humana, e não apenas com o que degrada o humano. Degradação que, disfarçada pelo espetáculo colorido, legitima a violência, como por exemplo a das pegadinhas, da sexualidade desenfreada e sem sentido, do estímulo de levar vantagem em tudo ou do vale tudo por dinheiro. Ou da performance como o grande ideal de vida, tal como propõe, entre outros, o milionário programa Big Brother, que leva o telespectador a se contentar em viver a medíocre e falsa privacidade da vida do outro e mergulhar na mais absoluta alienação, em lugar de procurar viver a própria vida. Fenômeno esse que interessa exclusivamente aos que controlam a grande Lei do Mercado, que é afinal a única lei absoluta em nosso tempo de “sound and fury”. Lei da qual paradoxalmente a sociedade depende para que o progresso continue… É esse um dos nós górdios que nos desafiam.

• Do modernismo ao pós-modernismo, você acompanhou de perto os momentos mais significativos da literatura do século 20. Que balanço você faz dos últimos sessenta anos e, na sua opinião, qual foi a grande contribuição dada pela nossa prosa e pela nossa poesia?
Ao fazer esse balanço esta entrevista se transformaria em um livro, pois do pós-Guerra Fria (1956) para este início do século 21 as transformações na literatura, obviamente devido às transformações do mundo, foram imensas. Uma visão panorâmica da literatura brasileira desse período mostra que estivemos sintonizados com todas as mudanças que se sucederam no além-fronteiras. Nosso panorama literário abarca uma multiforme e caótica produção literária ainda à espera, necessitando passar pela triagem definitiva da crítica, fato que só o distanciamento temporal irá permitir. Entretanto, as sínteses provisórias se fazem necessárias. É evidente que nesse período eclodiram vários booms literários de grande força: literatura feminina, literatura infantil, literatura da negritude, literatura da contra-cultura, outras e outras.

• O mundo letrado estilhaçou-se, deixando de apresentar uma única face. Agora cada faceta brilha e reverbera com a mesma intensidade que as demais…
Em qualquer de suas modulações temático-formais, a literatura desse período apresenta como núcleo geratriz a consciência crítica do escritor, diante deste nosso mundo fragmentado em seus valores de base: mundo sem paradigmas, sem ideologias, comandado pelas multimídias e pela filosofia do consumo-e-lucro que transformou tudo, inclusive os seres humanos, em objetos de compra e venda. Mundo paradoxal, belo e horrível, que se globaliza, ignorando as diferenças e ocultando, sob o brilho das aparências caleidoscópicas do oceano virtual, a deteriorização progressiva da vida real. Mas estes são o mundo e o momento que nos couberam para viver, o mundo e o momento da gestação caótica de uma Nova Ordem que há de vir. Feita de mil formas de linguagem e gêneros literários, a literatura pós-moderna (aquela assentada na Intuição e não mais na Razão organizadora do moderno) se propõe como um jogo, um puzzle formado com os fragmentos do mundo em metamorfose, exigindo a ativa participação do leitor para a sua decifração. Um jogo no qual via de regra predominam a violência, o absurdo, os desregramentos orgíacos do sexo, ou o realismo fantástico, ou o desregramento de um cotidiano vazio, ou, ou… Mas em meio a esse emaranhado de desconstruções podemos distinguir uma nova utopia: o Homem, intuindo-se como o novo centro do mundo, desde que este perdeu seu centro sagrado (o Deus criador e a sua Palavra). Ou, em outros termos, a crença do escritor no poder criador ou no poder nomeador de sua palavra. Como disse o poeta grego Kazantsakis: “Não é o homem que precisa de Deus, mas Deus que precisa do homem”. O que parece heresia apenas expressa a nova visão do homem-nomeador-das-coisas, aquele que deve redescobrir Deus, ou o Mistério, e renomeá-lo. Como dizem os fenomenólogos: “A palavra cria o real”. E segundo Lacan: “O que não é nomeado não existe”. A grosso modo, essas peculiaridades se revelam de imediato no panorama literário brasileiro atual. Nele distinguimos a presença de grandes poetas e ficcionistas de diferentes gerações literárias, que continuam produzindo, e também o surgimento de uma plêiade de novos escritores que, cada qual a seu modo, estão ampliando as trilhas questionadoras e inovadoras abertas, desde o início do século 20, pelos movimentos vanguardistas (os ismos todos, o nouveau roman, o existencialismo, a poesia concreta, o poema praxis, o poema-processo, a poesia visual etc), ou seguindo os rastros de mestres iluminadores como Joyce, Kafka, Borges, Cortázar, García Márquez, Virginia Woolf, Faulkner, Lautréamont, e tantos outros.

• Ou seja, apesar de muita gente afirmar que ultimamente nada de novo tem sido feito, você percebe algo de relevante na literatura brasileira contemporânea.
Sem dúvida, por baixo do ruído e do caos, uma revolução silenciosa está acontecendo. Parece evidente que, na esfera do mundo pensante (o das idéias), onde a Nova Ordem deve ser engendrada para depois se transformar em realidades concretas, já não há nada mais para se questionar. Todas as portas foram arrombadas, todas as estruturas foram abaladas, muito embora o edifício (o Sistema deteriorado, mas ainda vigente no mundo) permaneça de pé. E este edifício ainda resistirá por muito tempo à sua necessária substituição por outro. Parece-me que é contra esse panorama, contra esse horizonte em acelerada transformação, que a literatura contemporânea está sendo escrita, e por isso precisa ser lida, assimilada, conscientizada. Essa é a tarefa que cabe aos novos… E se quiser escolher uma palavra-chave para o nosso tempo, ela pode ser conscientização.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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