Apropriação devida de memórias

Fábio Campana percorre a prosa poética e o conto em excelentes movimentos entre a ficção e a memória
Fábio Campana: o livro é novo, mas deve ser lido como obra antiga
01/04/2004

A construção da memória é fato ainda não bem explicado pela ciência. Sua lembrança mais remota é de qual idade de sua vida? (Recordando que está provado que mesmo a fase pré-natal fica impregnada em nosso cérebro.) E a partir de que idade começamos a criar a nossa memória, transformando em reais fatos e cenas que não aconteceram? E, se isso é possível, o que é realidade e o que é ficção? Mais uma pergunta, para encerrar essa introdução: e isso importa? Se a história é boa, ela vale a pena. E ponto.

E assim, temos que um livro é sempre um memorial. As histórias que ali estão podem ser suas, desde que você as queira, desde que você se identifique com elas. E se o autor souber deixar espaços em branco, dizer tudo sem dizer exatamente tudo, você vai e coloca a sua vida junto com o texto. E logo um livro é também o seu livro. É assim que Todo o sangue, último trabalho do escritor e jornalista Fábio Campana, pode deixar você. Se você deixar. Pois para isso, é necessário entrar no jogo do autor.

O livro é divido em três partes, cada qual com propostas diferentes e estilos também. Na primeira, os três relatos Insônia, Revelações e Peregrinações trazem um texto poético, escrito em forma de prosa, contando a formação do homem. O que é responsável por deixar você do jeito que você é? Campana não se preocupa em dizer exatamente o que é, mas sim dar dicas do que pode ter sido. Visualizar o que realmente foi é trabalho seu (mas, voltando ao parágrafo inicial, importa saber se foi real ou não?). E as dedicatórias a jornalistas conhecidos (no Paraná, pelo menos) ajudam o trabalho de visualização.

Até um certo ponto, cada relato é uma biografia. Sem datas, sem locais específicos, apenas o grande teatro que o mundo oferece para seus atores, mas com os pontos comuns: amor, ódio, medo, angústia e dúvidas, muitas dúvidas. Melhor assim, sem respostas. Responde quem lê.

A segunda parte muda o tom, deixando de lado a poesia para investir no conto. Seis relatos — Todo o sangue, Restos mortais, As lições de Cesarius, Ossos do ofício, A última profecia e A flor de Girokastra — nos transportam a outros tempos, próximos e remotos, e colocam como protagonista a crueldade, venha de onde vier (ainda que ela tenha uma origem muito mais humana que outra coisa).

Todo o sangue, conto que dá título ao livro, já havia aparecido em outra obra de Campana, O guardador de fantasmas, romance de tom muito mais biográfico (autobiográfico, talvez?). Não importa. Aqui ele faz mais sentido. Relembrar a ditadura militar não pelo geral, mas pelo detalhe, faz perceber que, no fim das contas, vale mais a história de cada um. A brutalidade do período contrasta com a esperança que cada um tinha, esperanças que eram sumariamente espancadas pelos bastões e cacetetes dos gorilas de plantão. A ditadura também dá o tom em Restos mortais.

Os outros contos trazem outras brutalidades. Como a do jogador de futebol ressentido de sua (falta de) sorte, que prefere eliminar os possíveis talentos a viver com a inveja. Ou de Cesarius, cujo texto permanece censurado. Ou ainda da vidente paraguaia Rosa Santander que previu o fim dos tempos, ou pelo menos o fim dos tempos na região de Foz do Iguaçu, cidade natal de Campana.

Por fim, o terceiro bloco de contos (ou seria mais adequado falar crônicas?) — A eterna juventude de nossos pecados capitais, O nosso caminho das Índias, Viagem pelas fronteiras da memória e O último tango em Curitiba — é dedicado à história do Paraná. Cabeza de Vaca encabeça o time dos primeiros dois relatos, o segundo relembra Kid Chocolate e retoma trechos de O guardador de fantasmas e por fim temos as prostitutas argentinas que se estabeleceram em Curitiba, trazendo as últimas novidades no campo do “amor” para a provinciana capital dos idos dos anos de ouro do café no estado. Vale a pena repetir: vale mais a história de cada um.

Nesse terceiro bloco temos a seleção dos temas históricos que são caros ao escritor. Cabeza de Vaca, explorador espanhol, o primeiro europeu a fazer todo o Caminho do Peabiru, que ligava o Litoral do Paraná ao Oceano Pacífico, é um dos personagens que povoaram a infância do piá (Campana?) de O guardador de fantasmas, volta em Todo o sangue. Voltam as prostitutas dos três países da fronteira, que se revezam a cada quatro meses para garantir a novidade ao cliente, exemplo de diplomacia e acordo internacional que funciona e agrada ao povo.

Assim, temos uma coletânea de memórias em mãos. O tratamento gráfico de Paulo Sandrini e as ilustrações de Maria Ângela Biscaia engrandecem ainda mais Todo o sangue. Se é possível dar uma dica, faça assim: esqueça tudo o que leu aqui, esqueça divisões entre prosa e poesia, entre verdade e ficção, entre memória e invenção, tome o livro em mãos, e faça uma boa viagem.

Até a volta!

Todo o sangue
Fábio Campana
Travessa dos Editores
150 págs.
Adriano Koehler

É jornalista. Vive em Curitiba (PR).

Rascunho