Em ambas margens do Atlântico Norte, filisteus europeus e norte-americanos se engajam em um debate acirrado sobre o filme A paixão de Cristo, de Mel Gibson. Acusações de anti-semitismo surgem baseadas em uma suposta falta de rigor histórico da obra. Vozes exaltadas esbravejam que a narrativa escapa ao que é apresentado nas escrituras, que esta ou aquela cena não têm fundamento na realidade, que o australiano sintetizou vários evangelhos em um só, buscando ressaltar a culpa judaica, que de outra forma seria apenas insinuada em algumas passagens bíblicas.
É evidente que se aqueles que vêm despejar suas idéias espasmódicas nos meios de comunicação (jornalistas, atores, políticos) tivessem algum dia tomado uma simples classe introdutória de teoria literária, toda essa discussão inútil seria evitada. Quer se adote ou não a visão pós-estruturalista de que a história mesma não é mais que um texto, e que como tal é produto de uma cadeia de significantes instáveis que escapa à categorização de verdadeiro ou falso, criticar uma obra por falta de realismo já no século 21 denota um total desconhecimento do objeto abordado.
Algo similar ocorreu com os protestos mal-articulados da imprensa espanhola que no ano passado levou uma obra intitulada Todas putas a ser retirada de circulação. Segundo as jornalistas que apareciam indignadas nos meios de comunicação, o livro era insultante às mulheres. Como esse tipo de heresia sempre me interessou, minha reação ao ver suas caras ofendidas no telejornal matinal foi sair correndo para a livraria que ficava ao lado da minha casa e ver do que se tratava. Infelizmente, cheguei tarde. Encontrei apenas a vendedora pouco amável de sempre me olhando com desprezo, dizendo que os livros já haviam sido todos retirados das prateleiras. Provavelmente se encaminhavam para ser queimados numa orgia dionisíaco-feminista-maoísta. De forma que não posso falar da novela, porque não me permitiram lê-la. Só sei que narrava a história de um estuprador. O que ficou claro é que as jornalistas espanholas não haviam lido Nabokov. Ou se leram, esqueceram. (Imagino que o autor russo não se surpreenderia ao saber que depois de mais de meio século tudo continua igual.) Foi então que a necessidade de se introduzir uma aula de teoria literária nos cursos de jornalismo me pareceu flagrante. Sem o livro na mão, mas cheio de raiva e de uma curiosidade reprimida, voltei para casa pensando que talvez dessa forma esses profissionais parassem de fazer o ridículo e de estorvar minha vida decidindo o que eu posso ou não ler.
No que concerne a relação entre A paixão de Cristo e o baixo nível intelectual da imprensa, talvez nem fosse necessário um semestre de literatura para resolver o problema. Bastaria que eles e elas lessem Terra Nostra de Carlos Fuentes. Sem dúvida sua visão limitada acerca do diálogo entre narrativa e história mudaria. Nessa obra de erudição monumental, Fuentes subverte a história deliberadamente. Em um tom apocalíptico, as gerações da família real espanhola aparecem misturadas, confundidas entre estranhos atavismos e descendências impossíveis. Diversos personagens históricos são profanados: Maria, a mãe de Cristo, é uma prostituta; Felipe II é um príncipe promíscuo. Mas o interessante é que, mesmo com tanta heresia, nem católicos ultraconservadores, nem monarquistas espanhóis, e muito menos a imprensa, indignaram-se com a narrativa de Fuentes. Não se tratava de um filme de Hollywood.
Mais próxima ideologicamente às inquisidoras de Todas putas seria Instinto de Inez, obra do mesmo autor que aparece um quarto de século depois de Terra Nostra. Ali, ao contrário de exacerbar a mania de perseguição das feministas, Fuentes se alia a uma gama de escritores que costuma celebrar uma imagem da mulher que, imagino, seria consonante com a retratada no título banido. Assim como a Joana Carda de José Saramago e a Fermina Daza de García Márquez, a Inez Prada de Fuentes é uma heroína independente que subverte os valores conservadores associados à regulamentação masculina da sexualidade feminina. Enquanto a personagem de Saramago oferece seu sexo a um ancião como mostra de generosidade e poder, e a de García Márquez mostra toda sua honra e distinção ao se negar a responder se ela havia ou não traído seu marido, Inez Prada é uma espécie de rainha do leito que possui total domínio sobre os homens.
Para usufruir do corpo de Inez, o protagonista Gabriel Atlan-Ferrara “aceitaria qualquer trato, qualquer humilhação”. O herói de Fuentes possui todas as características associadas à feminilidade. Ele é passivo. No coito, sempre se coloca em “posição jacente, sujeita, submetida”, deixando que Inez fique por cima, “cavalgando sobre seus testículos”, para assim dominá-lo. Pouco lhe importa que ela durma com outro homem. No mundo em que se desenrola a novela, o mundo superior e refinado da ópera, o indivíduo do sexo masculino está muito acima desses detalhes. Apenas o anti-herói, o amante rude e patético de Inez, que é igualmente humilhado pela heroína, é capaz de atos baixos de dominação. O verdadeiro homem (Gabriel) não sente ciúmes, ao contrário, ele apanha do anti-herói, macho precariamente possessivo, e assim afirma sua humanidade.
Fuentes não disfarça a perspectiva feminista de Instinto de Inez. Os personagens masculinos são construídos ideologicamente de forma a ressaltar a debilidade do indivíduo dominado por uma visão de mundo patriarcal. Intercalada à narração do romance superliberal de Gabriel e Inez, surge uma história de amor primordial que busca imprimir uma dimensão antropológica à obra. Ali, Fuentes procede a uma mélange na qual patricídio, instauração do patriarcado e ablação são comprimidos numa espécie de poção mágica da verdade destinada ao consumo amargo do machista e deleite açucarado da feminista. O momento áureo em que a humanidade vivia o idílio da sociedade matriarcal é lacerado pelo golpe de estado de um príncipe assassino, cuja primeira medida política ao subir ao poder é cortar o clitóris de uma menina. De aí em diante surgirão as guerras, o autoritarismo, a violência, enfim, todas aquelas coisas que não existiriam em um mundo regido pelas mulheres. Dessa forma, a fonte de todo o mal é desmascarada.
Partindo do raciocínio de Fuentes, poderíamos encontrar o culpado do fracasso da humanidade segundo um processo dedutivo que iria do geral ao particular: primeiro o homem, isto é, o sexo masculino em sua totalidade, logo o homem branco, e por fim o homem branco norte-atlântico. A antropologia do autor mexicano lembra aquelas obras desvairadas de feministas radicais dos anos 70 como Evlyn Reed, que afirmava que todas as obras de engenharia humanas haviam sido produzidas pelas mulheres, ou Pat Grogan, que defendia o direito ao aborto como elemento fundamental no processo de emancipação feminina. A visão da sociedade matriarcal apresentada em Instinto de Inez é tão ingênua que faria Frazer e Freud sorrir de forma paternal e deixar o livro de lado sem dar-lhe um segundo pensamento. É óbvio que se em algum momento da evolução humana houve de fato uma sociedade matriarcal, ela ocorreu só porque todo mundo transava com todo mundo e ninguém sabia quem era o pai de ninguém. Ainda assim seguramente seria uma sociedade dominada pelo medo e por uma série de tabus como os descritos por Freud. Além do mais, já no princípio do século 20, antropólogos sérios como Wundt e Andrew Lang apontavam a presença do canibalismo no estágio evolutivo, equivalente ao que se considera possível a existência de uma sociedade matriarcal. Ou seja, tal sociedade seria tudo menos edênica.
Uma cena erótica em que Inez domina Gabriel com dois chicotes imaginários, um em cada mão, lembra o filme Mentiras (1999), do Coreano Sun-Woo Jang. Ali o protagonista, um homem de meia idade, chega às margens da loucura ao pedir que sua amante de 18 anos o açoite. De certa forma, parece haver algo semelhante a tal desejo de ser dominado, uma espécie de masoquismo latente, em vários autores da geração de Fuentes. Muitos deles parecem acanhados frente ao poder incomensurável do sexo feminino. Além dos personagens femininos “fortes” de Saramago e García Márquez, Julio Cortázar, por exemplo, chegou a tomar atitudes como se desculpar publicamente frente às feministas por ter usado o termo “leitor macho” em vez de “leitor ativo”, ao expor sua teoria da novela. Mario Vargas Llosa, em um livro sobre Madame Bovary, contradiz Flaubert, dizendo que o autor francês estava errado ao condenar sua protagonista, pois Emma era de fato uma grande mulher. É claro que tal afirmação se dá apesar de o fato de que qualquer pessoa capaz de realizar o mais básico juízo moral tenha claro que Emma Bovary era um ser execrável.
É fácil perceber como escritores de idade entre 60 e 70 anos hoje em dia guardam muito da mentalidade indolente e libertária da juventude dos anos 60. (Cortázar incluído, o cinqüentão que marchava nas ruas de Paris participando dos protestos estudantis.) O que faz pensar que a mente humana evolui muito pouco com o passar do tempo, que grande parte de nós somos para toda a vida aquilo que fomos aos 25 anos. Assim, tais autores se mantêm atrelados a uma política sexual que hoje soa ingênua, falida. Falar das maravilhas da sociedade matriarcal em pleno século 21 se mostra apenas como uma atitude paternalista frente às mulheres, como uma espécie de ação afirmativa sexual. E elas seguramente não precisam disso. O fato é que o sexo feminino já provou sua capacidade. Já há mais mulheres que homens na maioria das universidades, e cada vez mais elas ocupam cargos de liderança. Além do mais, os homens já percebem que o melhoramento feminino é uma vantagem para todos. Os gregos viviam aborrecidos com suas mulheres porque elas eram burras e analfabetas. Aí eles partiam para o homossexualismo. Pelos menos nós nos encaminhamos para o fim desse problema. Ou dessa desculpa.
Por isso, o feminismo de Fuentes é anacrônico, uma visão de mundo vinculada ao passado. Sem dúvida esse liberalismo contra-cultural extemporâneo e quarentão que reina entre autores famosos é em grande parte culpado pela perda de parâmetros de comportamento num tempo em que a conduta individual não conhece normas nem respeita o espaço público. O protagonista masculino de Fuentes, em toda sua submissão à amazona dominadora que o cavalga, ilustra com clareza o que Gilles Lipovetsky chama de “apatia pós-moderna”. Nela, o indivíduo perde a capacidade de julgar, para ele tudo é indiferente, tudo dá igual. Como Gabriel Atlan-Ferrara, ao homem pós-moderno pouco importa a virgindade de sua mulher. Ele encara tudo com naturalidade, nada provoca sua consciência moral, porque ela está adormecida. O herói de Fuentes lembra o típico homem europeu que vai com sua noiva à praia em Barcelona para ela fazer topless e todo mundo ao redor fingir que não está olhando para os seios desnudos (uma espécie de cinismo institucionalizado, algo como um acordo tácito de que a vulgaridade foi universalmente abolida). E Inez, por sua vez, é uma espécie de Maria Callas que provavelmente não se importaria de prostituir-se com oficiais alemães, se fosse o caso; algo como a Malena, de Giuseppe Tornatore, que de prostituta passa a vítima das circunstâncias em questão de duas ou três cenas.
Apatia ou anomia, há mais do que feminismo no livro de Fuentes. Há também um forte nacionalismo, este um pouco mais disfarçado, mas que pode facilmente ser lido nas entrelinhas. Como notou Raymond Leslie Williams, toda a carreira de Fuentes tem sido uma meditação dilatada sobre tema da identidade hispano-americana, um tema que vem se arrastando na literatura da região desde a definição maniqueísta de Sarmiento como dicotomia entre civilização e barbárie. Dessa forma, a questão da “Indoafroiberoamérica”, termo cunhado por Fuentes, teria obrigatoriamente de aparecer em Instinto de Inez. Só que aqui ela não se mostra com a mesma profundidade de outras obras do autor. Não encontramos a discussão detalhada sobre os tipos sociais mexicanos como em La región más transparente (1958), ou a visão da classe alta desprovida de um rumo histórico como em A morte de Artemio Cruz (1962). Instinto de Inez é demasiado breve para tal empresa, e o México que aparece na novela parece inserido de forma forçada, sem nenhuma necessidade estética evidente. Quando Gabriel e Inez têm seu segundo encontro na Cidade do México, o desejo do autor de inserir na obra uma discussão acerca de seu país se faz evidente. Em um curto parágrafo encontramos uma crítica do positivismo mexicano, logo alguns detalhes da arquitetura local, e a descrição estereotipada de um personagem daquele país. O livro remete, assim, à questão de se a novela seria ou não um locus apropriado para a discussão de temas sociais, culturais, políticos ou históricos. A resposta seria que tais temas só são válidos quando cumprem uma função estética específica.
Assim como em outros momentos de sua produção novelística, em Instinto de Inez, Fuentes se preocupa demais com a questão da nacionalidade. O mesmo ocorre com Cortázar, que em Los premios cria um retrato totalmente banal da sociedade de Buenos Aires, e com Sábato, que atrasou em mais de dez anos a publicação de Sobre héroes y tumbas nos Estados Unidos por não querer cortar algumas de suas cansativas páginas que viajam pela história da Argentina. Tais autores às vezes parecem esquecer que história, sociologia e novela não são exatamente a mesma coisa. Sua ânsia em abordar este ou aquele assunto acaba compartimentando a narrativa, reduzindo-a a um pronunciamento sobre temas locais que ocupam o lugar de questões estéticas mais urgentes e de uma temática sintonizada com questões mais fundamentais acerca da condição humana. Por isso, de uma forma geral, a totalidade de suas obras dificilmente alcança o caráter universal da de autores como Nabokov, Rushdie, Beckett e Conrad, escritores que são capazes de transcender sentimentos nacionalistas, que vão de fato além dos limites deste ou daquele âmbito cultural, a ponto de escrever em línguas estrangeiras.
Mas, obviamente, nem tudo é uma questão de universalismo. Certa vez um crítico alemão afirmou que, ainda que não houvesse escrito nada mais, Günter Grass mereceria o prêmio Nobel só por O tambor. O mesmo se poderia dizer de Fuentes. Terra Nostra é uma obra-prima que deve figurar entre os grandes feitos literários de todos os tempos. Mas isso não significa que o resto de sua produção também não seja notável. O tom intrigante e misterioso de Aura, as mudanças de personalidade de Cambio de Piel, a técnica narrativa refinada que leva o leitor ao núcleo do processo agônico do protagonista de La muerte de Artemio Cruz, são fatos que colocam Fuentes no grupo dos melhores escritores deste século. E como todas as obras do autor mexicano, Instinto de Inez merece ser lida, mas, como todas as obras, criticamente.