Silêncio do lago amarelo

António Lobo Antunes constrói um vertiginoso romance sobre a impossibilidade e a incerteza
Lobo Antunes despeja dúvidas e mais dúvidas sobre os leitores
01/04/2004

Saskia e Rex estão em viagem de carro pela França. O carro pára por falta de gasolina no meio de um túnel escuro. Ele sai à procura de um posto ignorando os pedidos da moça para que ficasse e a ajudasse a procurar uma lanterna. Quando ele volta, não a encontra no carro, prenúncio do desencontro que está prestes a acontecer: ela havia sonhado que estava presa em um ovo de ouro na noite anterior. Ele pede perdão a ela por tê-la deixado sozinha, ela o perdoa. Continuam a viagem. Em uma parada, ela o faz jurar que jamais a abandonaria. Um homem observa o casal nessa parada. Rex e Saskia seguem a viagem, mas param novamente. Ela decide comprar bebidas e desaparece sem deixar qualquer vestígio. Ele a espera por todo o dia, a polícia só pode agir no dia seguinte e passam-se três anos sem que ele tenha conseguido descobrir o que sucedera. Rex se torna uma figura conhecida pelas buscas por qualquer informação sobre o paradeiro da namorada. Depois de quinze encontros marcados por um suspeito, este se apresenta a Rex disposto a informar-lhe o que havia acontecido com Saskia, desde que o rapaz estivesse pronto para experimentar o que ela vivera. Dias antes, Rex havia tido o mesmo sonho da namorada com o ovo de ouro. Depois de relutar um pouco, Rex toma um café com sonífero e acorda em um caixão, enterrado vivo. O assassino Raymond Lemorne havia planejado detalhadamente o seu plano e havia conseguido atrair somente a ingênua Saskia. No final do filme, a esposa do assassino rega inocentemente dois arbustos no jardim da casa de campo da família, sítio em que o casal Rex e Saskia terminara seus dias.

É esse o enredo do ótimo Silêncio do lago (George Sluizer, 1988). Há um momento do filme em que Raymond precisa explicar a sua mulher os motivos pelos quais vai tanto à casa de campo. Ele afirma: “Sem mais nem menos, virou uma paixão. Temos algo na cabeça, damos um passo, depois outro, e nos damos conta de que caímos em algo insensato. Mas pouco importa. Perseveramos pelo prazer de perseverar. Pela satisfação da coisa”. É essa a explicação de toda a aventura que conduz à morte de Saskia e Rex. Raymond salta da vida bem comportada e se satisfaz em matar e ficar impune. Os personagens do vertiginoso Boa tarde às coisas aqui em baixo, do escritor português António Lobo Antunes (1942), são a princípio como Saskia, evoluem para Rex e se descobrem como Raymond, sobretudo pelo fato de que não só atuam no romance como são responsáveis por apresentar a sua versão para um fato: uma missão na África de onde não voltam e são substituídos por outros que, como os primeiros, são enterrados, tanto metafórica quanto textualmente, em uma fazenda de algodão e girassóis. Para experimentar o destino de Saskia, Rex bebe um café com sonífero. Na construção colonial em que se acha transformado em novo alvo para um próximo enviado, o primeiro narrador, Seabra, engole a sorte em uma garrafa, cada vez mais consciente de caíra em algo insensato.

Boa tarde às coisas aqui em baixo tem um prólogo, três livros e um epílogo. Nos dois primeiros livros é mais fácil reconhecer os narradores, mas isso não quer dizer que haja qualquer coisa fácil neste romance. É mais fácil identificar os narradores nos primeiros, entretanto esse texto precisa encontrar um leitor disposto a beber o café de Raymond… e se aventurar pelos fragmentos que perdem a sua continuidade imediata. O leitor não deve se angustiar com os parágrafos ceifados pela voz narrativa, com um verbo suspenso, sem que haja um ponto para nos consolar. O objeto pode ou não ser encontrado, assim como a verdade do que aconteceu com Seabra, Miguéis, Gonçalves, Morais, Sampaio e quantos mais?

No primeiro livro, os capítulos sugerem um diálogo entre dois narradores — Seabra e Marina. O primeiro está distante cinco anos dos principais eventos que narra e é talvez a consciência mais acordada do destino de todos aqueles que, como ele, foram atraídos para uma missão aparentemente tranqüila, de resolver uma situação causada pela imperícia de alguém. Rapidamente, cumprida ou não a missão que garantiria, conforme promessa dos contratantes, vida tranqüila ao contratado, em alguns momentos é difícil perceber até que ponto cumpre-se a tarefa encomendada, os enviados transformam-se em alvos para o trabalho de alguém que tem de lidar com uma nova imperícia. Preso aos efeitos do café de Raymond, os personagens são tragados por um círculo vicioso que envolve tráfico de diamantes, assassinatos, racismo, licenciosidade e política. Nesse primeiro livro, há a insistência na metáfora da praça de touros e a missão é definida por Seabra como a morte na arena para servir ao espetáculo — “cada toiro possuía uma fitinha na garupa, ao confortar-me o ombro o director colocou a fitinha em mim” (p. 29). Seabra tem inclusive a consciência de que, depois dele, novos touros seriam atraídos para o espetáculo e já anuncia no “seu” livro a presença de Miguéis no segundo. É generosa a voz narrativa do primeiro livro, informa mais, ainda que não diminua a nossa vertigem.

Marina é uma filha da África e da Europa, de um luso-africano humilhado e de uma prostituta branca. Personagem entre dois mundos, a sua casa destruída representa o cenário em ruínas de um continente entregue à cobiça de portugueses, americanos, russos e outros citados no romance. Marina é uma africana envolvida com o tráfico de diamantes, teria escondido as pedras? O livro sugere que seu pai ou tio eram alvos, mas, com a morte deles, é Marina quem se transforma no alvo para Seabra que, embora atraído por ela, precisa cumprir o que fora acertado em Lisboa, em um escritório no oitavo andar de um prédio.

Enterrado em uma fazenda de girassóis, o que ressuma a ironia, já que esta flor identifica-se com a amplitude do sol que a tudo ilumina, menos a verdade, e com a imortalidade (na China, o girassol é o alimento da imortalidade), Seabra aguarda o seu fim a ser dado pelo próximo Seabra, ou seja, por Miguéis. Só que, mesmo na África, ou apesar da África, as memórias da vida do narrador em Lisboa o assaltam e ele repete gestos, dialoga e sente como se estivesse com os seus em Portugal, a ter talvez saudades do futuro impossível… O texto não delimita a separação entre esses acontecimentos, as experiências do “ontem” (em Lisboa) e do “hoje” (na África) se misturam na constatação do engano, de ter sido mais um numa praça de touros, a espera de ser abatido e substituído. No romance de Lobo Antunes, os homens são bichos, touros, aparentados com o Minotauro de Jorge de Sena — “É metade boi e metade homem, como todos os homens”. O Minotauro poderia ter conservado o raciocínio do homem e a força do animal, mas amarga o oposto, ter subtraída a razão e ver-se com a força engrandecida em si, ainda que débil, dos homens. Seabra é um Minotauro a espera de Teseu, “como todos os gregos heróicos, um filho da puta” (Em Creta, com o Minotauro, de Jorge de Sena), aliás, no poema de Sena, o eu lírico espera envelhecer “tomando café em Creta” com o rei do labirinto, outra vez o café…

No segundo livro, Miguéis entra em cena para “limpar” a imperícia de um funcionário: “a necessidade de chegar a Angola para um trabalhinho simples Miguéis/ amigo Miguéis/ uma questão de rotina, três ou quatro dias no máximo a fim de limpar os restos que um colega seu/ um rapaz sem experiência, bom rapaz mas sem experiência/ foi deixado por África e o primeiro resto a limpar é ele mesmo numa fazenda de girassol e algodão (…) uns documentozinhos que poderiam maçar-nos e os diamantes é claro que não recebemos ainda” (p. 215). No trecho transcrito é evidente o discurso persuasivo do contratante — “Amigo Miguéis” — no mesmo escritório do oitavo andar. A missão parece fácil, o diminutivo para o trabalho é irresistível…, o “rapaz sem experiência” é o Seabra e um novo diminutivo para o documentos ensombram a importância do resgate para aquele que vai se arriscar. A própria razão da viagem está no fim, os diamantes, mas a atenção já se perdeu no meio de tantos prolegômenos.

Na narração de Miguéis, há também o entrelaçamento de tempos: da vivência na África e do passado em família. O peso da memória em Boa tarde às coisas aqui em baixo por vezes oblitera a narrativa do sucesso da missão dos personagens, como se essa experiência derradeira, a que leva os personagens para a morte, oferecesse a oportunidade de eles tentarem a reconciliação com a própria consciência. Falei em tentativa, pois, para Miguéis, essa reconciliação passaria pela reabilitação de seu papel como marido e pai, o que não seria mais possível.

O principal narrador do segundo livro arquitetou a solidão no lar e a miséria afetiva com as suas reservas em relação às mulheres — “detesto carícias, desde que me conheço nunca aceitei carícias, conforme digo sempre com mulheres e cães nada de confiança” (p. 204). Em diversos momentos da sua narração, ele repete a necessidade de os homens educarem as mulheres para essa solidão a dois — “se não as educamos desde o princípio, estamos mal” e no seu discurso lemos atualizados os mandamentos dos Palma Bravo: “Recompensa com prudência, governo com vigilância e castigo com firmeza. Vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa” (O Delfim, de José Cardoso Pires).

Se há uma tão insistente afirmação de autoridade, ela não consegue escamotear, entretanto, uma ternura que ameaça arrebentar no discurso — em relação à mãe: “(se eu não me lembrasse dos carvalhos e dos pés noutros pés a minha vida mais fácil)” (p. 220), os “pés noutros pés” referem-se a um tempo de brincadeiras, em que o abraço era permitido; em relação à esposa: “(há quanto tempo a minha pele não te sente?) (p. 308), sozinhos e um muro de impossibilidades; em relação à filha: “comovido (…) se a minha filha deixasse lhe construía uma tábua com rodas, colocava um disco na extremidade de um pau a que se chamava volante” (p. 225), a filha não deixava porque o pai não deixara antes, o tempo de construir brinquedos era passado e o bolor que crescia nos doces deixados na porta da filha já crescida revelam a impossibilidade de recuperar a doçura para sempre perdida. Miguéis é a personificação de um verso do Orfeu rebelde (Miguel Torga): “Violências famintas de ternura”, ou prova de uma intertextualidade interna, ou seja a ser descoberta na própria obra de Lobo Antunes. Esta impossibilidade de comunicar ao outro o amor que teima em permanecer no peito a despeito de tudo pode ser lida na narração do médico do primeiro romance de Lobo Antunes, Memória de elefante (1979).

No terceiro livro, há uma diversidade de narradores — Gonçalves, Morais, Sampaio, Mendonça, Tavares e algumas mulheres que, como a filha e a esposa do Miguéis, assumem a narração por vezes. Todos esses personagens convivem, parecem que estão na África há mais tempo que os dois primeiros narradores estiveram e estão mais integrados à missão. Gonçalves, por exemplo, fora contratado para controlar os diamantes no âmbito de atuação do escritório de Lisboa no continente africano e gostaria de fugir com as pedras. Na boca do Morais, também a impossibilidade de comunicar o amor se insurge: “apetecia-me escrever isto e não posso escrever/ a gostar de ti, a sentir-me/ não sou capaz de dizer isso” (p. 463). E na do Mendonça, a recusa de amar o mesmo sangue é vivida de forma veemente, mas a morte da irmã mestiça abala as defesas: “As acácias maninha/ eu/ Necessito de ti encostada ao muro maninha” (p. 447). Sampaio revela a diferença entre os personagens do terceiro livro e os dois narradores dos primeiros. Embora brancos, somente aqueles que viveram uma longa parte das suas vidas sobre a terra vermelha da África tornam-se amarelos — “o senhor de Lisboa com roupa de Lisboa e ainda não amarelo como nós em Angola” (p. 486). Esse “senhor de Lisboa” tanto pode ser o Seabra quanto o Miguéis ainda pálidos de Europa.

Na encenação das (i)moralidades nossas de cada dia, Boa tarde às coisas aqui em baixo também repisa elementos já conhecidos da prosa de Lobo Antunes. Marina pode ter engravidado do tio, que por sinal podia ser seu pai, saudades de O auto dos danados… O pudico Miguéis a sentir o perfume da professora autoritária Dona São nas prostitutas da juventude. Gonçalves morava com uma menina africana que podia ter entre 10 e 14 anos, embora a sua idade propalada na venda fosse 20 anos. Tavares descobre em Aldina, sua amante silenciosa e também sem idade, o mistério feminino perdido em um casamento sem amor — “por favor mantenha a porta fechada (…) com vontade de abri-la, entrem gatunes aleijados violadores testemunhas de Jeová assassinos” (p. 530). Há também a inocência picante da menina do epílogo: “e a próxima vez que o filho do caro almirante desapertar as calças juro que lhe toco para ter a certeza que aquilo que me mostrou é verdade” (p. 565).

No primeiro livro, há um aspecto interessantíssimo da narrativa que merece ser referido por fim. Extasiado pela sensualidade ambígua de Marina, uma voz rebelde se insere na narrativa e se identifica como o autor, ou seja, como se não bastasse a profusão de narradores, o texto abriga a ficcionalização da própria voz autoral: “(quem conta esta história, quem narra isto por mim?/ uma traineira não, nem pássaros, nem muletas que te melhorem o capítulo António, acordas com o romance, adormeces com o romance e a Marina que pensavas haver criado e se criou a si mesma a insistir dentro de ti/ — Sou mestiça/ esta narrativa que mais do que as outras se tornou uma doença que te gasta e de que não sabes curar-te” (p. 116/117). Por que uma diversidade razoável é convocada a apresentar a sua versão dos fatos? Por quê, junto a eles, o autor ficcionaliza a própria voz? Não que seja esta uma técnica inventada por ele. Para ficarmos na literatura portuguesa e sem procurar muito, não se pode esquecer do narrador das Viagens na minha terra, romance do século 19.

Na verdade, ao contrário do que poderíamos supor, não é o meio que mobiliza as transformações das/nas narrativas, são essas que antecipam disposições do meio, “décadas antes da invenção da câmera cinematográfica, a prosa de ficção do século 19 começou a experimentar as técnicas dos filmes” (Hamlet no Holodeck — o futuro da narrativa no ciberespaço de Janet Murray). Boa tarde… se comporta como uma narrativa multiforme, “apresenta uma única situação ou enredo em múltiplas versões —versões estas que seriam mutuamente excludentes em nossa experiência cotidiana (…) histórias multiformes freqüentemente refletem pontos de vista diferentes sobre um mesmo acontecimento” (Janet Murray). As narrativas multiformes, portanto, nos revelam que as nossas percepções de tempo e espaço não são verdades absolutas, na leitura podemos apreciar “os esforços dos personagens para reconstruírem o passado de modo a restaurar a coerência perdida” (Janet Murray). Isso é maior que a experiência triste, mas necessariamente limitada do autor na África, vivência esta tantas vezes referenciada para explicar tudo em sua obra. Ora, no fascinante romance de Lobo Antunes, se repararmos bem, não há nem certeza sobre a existência dos diamantes, só a busca, ou melhor, só a praça onde os homens são touros que se sucedem para um espetáculo. Seu fim é a plenitude opressora dos girassóis, amarelo como o ovo de ouro de Rex e Saskia.

Boa tarde às coisas aqui em baixo
António Lobo Antunes
Objetiva
568 págs.
Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

Rascunho