A voz guardava um tom automático, o que, no mundo das reproduções em série, lhe conferia certa credibilidade. “É o Sr. José Castello? Estou passando para o escritor Dalton Trevisan, um minuto por favor”. Só pode ser uma piada, eu concluí. Por que Dalton Trevisan, homem recluso e temente aos jornalistas, iria me telefonar?
Enquanto aguardava, fui obrigado a ouvir uma dessas músicas nefastas que preenchem os intervalos telefônicos. “Música de elevador”, dizia o poeta João Cabral de Melo Neto. “Não há nada mais daninho”, ele pensava, pois transforma a arte em simples estofamento auditivo. Música de telefone, eu já me punha a experimentar a nova expressão, quando a voz, roufenha, se fez ouvir.
Não se apresentou, foi simplesmente dizendo: “Por que o senhor me quer tão mal?” Desde rapaz leio e releio, com entusiasmo, os livros de Dalton Trevisan. É verdade, já não nutro a mesma paixão por seus livros mais recentes, e sintéticos; mas, seguramente, o defeito não está nos livros, e sim em mim. Já passei dos cinqüenta. Depois dos quarenta, perdemos a elasticidade mental, e depois dos cinqüenta, apesar de todos os ganhos conferidos pela experiência, entre eles alguma serenidade, os nervos se enrijecem. É, ficamos menos disponíveis ao susto, embora passemos a chorar com mais freqüência, não por ternura, mas por medo.
Ou não é nada disso. Estou sempre empenhado em preencher com pensamentos aquilo que me intriga. Por exemplo, a voz fanhosa de Dalton Trevisan, o sujeito que me falava do outro lado da linha. “Eu o quero muito bem”, consegui, enfim, dizer, com grande receio de que meu interlocutor entendesse aquele comentário como uma afetação, ou mentira grosseira. Ele me cortou: “Não telefonei para isso. Só quero saber por que motivo o senhor jogou seu carro contra o muro de minha casa”.
As coisas, isso parecia evidente, se agravavam. Para começar, eu não tenho carro, e além do mais não dirijo, e por fim nem sei dizer, ao certo, qual é a casa de Dalton Trevisan, embora tenha uma leve suspeita, suposição que prefiro não confrontar com a realidade para que, frágil, ela não se desvaneça. Não, eu não joguei o carro contra muro algum, havia naquilo um erro de pessoa, e eu era a vítima de um mal-entendido. Só isso.
Aquele eu com quem Dalton Trevisan falava não era eu. Provavelmente, quase com certeza, aquele Dalton Trevisan que falava comigo ao telefone também não era Dalton Trevisan, o escritor curitibano. Desencontro duplo que conferia a nossa conversa a consistência de um mingau e a flacidez própria da fala dos abobalhados.
Mas só me restava prosseguir. Sentei-me para, mais relaxado, argumentar. “Não dirijo”, eu consegui dizer, “e nem tenho carro. Há algum engano em tudo isso”. Sem me deixar respirar, ele retrucou: “É sempre assim, os culpados passam a culpa para a frente, não a reconhecem, e culpados então somos nós, as vítimas, só porque protestamos”. Pus-me a mastigar, como um camelo avaro, aquela intervenção. E da mastigação, enfim, me vieram idéias, torpes idéias. Não, eu deduzi, Dalton Trevisan não falaria assim — embora eu nunca tenha falado com ele, posso garantir que não, não falaria. Não teria aquela voz escamosa, própria dos narizes aduncos, ou mutilados, como o de Michael Jackson. Não, Dalton Trevisan não é Michael Jackson, nem se prestaria à improbidade de uma cirurgia estética. Não o conheço, mas deve ter um nariz imenso, de farejador.
Talvez fosse uma gravação, pois a voz soava assim, mecânica; mas uma voz gravada não se submete à lógica, nem se presta ao diálogo. “Prove-me que o senhor é mesmo Dalton Trevisan”, eu disse de uma vez, já atormentado, e sem decidir que diria. É claro, por telefone, seria impossível exibir documentos de identidade, ou impressões digitais. Mas eu queria uma prova, uma prova qualquer, uma prova literária, talvez. Por que não? “Recite um trecho de Cemitério de elefantes”, eu pedi, mais uma vez sem escolher o que tinha escolhido, por puro reflexo, ou já pelo terror.
“Não seja ridículo”, a voz, que eu já não ousava mais chamar de Dalton Trevisan, me repreendeu. “Não vou passar pelo grotesco de provar que sou eu mesmo.” Era um raciocínio justo e, complicando ainda mais as coisas, me fazia pensar que aquela voz pertencia mesmo, quem sabe, ao escritor Dalton Trevisan. Ainda que o fato de alguém ser um grande escritor, como Dalton inegavelmente é, não seja uma garantia de que seja equilibrado, ou judicioso.
“Diabos, essas palavras que não servem para nada”, meu interlocutor acrescentou, depois de resmungar um pouco, em muxoxos sincopados. Talvez sofresse de asma, mas Dalton Trevisan é asmático? Talvez estivesse gripado, e um escritor, qualquer escritor, pode se resfriar, naturalmente. Estilo algum, por mais compacto que seja, está imune à virose, ou às infecções de garganta. Talvez ele só dissimulasse a voz, com um lenço envolto sobre o bocal do aparelho, e nesse caso, como nos filmes de detetive, podia ser um psicopata, ou um assassino.
“Palavras são mesmo inúteis”, eu concordei, “só servem para nos confundir”. E ouvi, logo depois, um suspiro, que podia ser um riso abafado, ou realmente um sinal de desafogo, por ele ter encontrado, enfim, do outro lado da linha, alguém que o compreendesse. E esse alguém continuava a ser eu.
Bem, ele — fosse quem fosse esse ele — sabia que esse alguém que lhe falava era eu, tanto que tinha meu nome e o número de meu telefone. Podia ser um trote, uma piada de algum inimigo, ou uma brincadeira de algum amigo sem o que fazer. Podia ser uma alucinação, e tratei de aplicar alguns beliscões nas pernas, mas ali continuava, sereno, a falar com Dalton Trevisan. Diabo de palavras, vocábulos inúteis, grandes trapaceiros, a armar ciladas e mais ciladas, quando deviam se limitar a servir aos significados, a transportá-los, com a simplicidade das bandejas, ou a clemência dos carrinhos de mão.
Dalton Trevisan permanecia num misterioso silêncio, e eu não tinha a menor idéia do que isso significava. Talvez, enquanto eu desfiava aqueles pensamentos imbecis, tivesse desligado o telefone. “Alô? Alô?”, me pus a balbuciar, como um subalterno, indeciso diante do chefe. Outro dia, num e-mail, o crítico Antonio Carlos Secchin, que é meu mais antigo amigo de infância, me recordou o dia terrível em que descobriu, por obra de colegas de escola, que Papai Noel não existe. Todos nos lembramos desse dia e de choque por ele produzido, momento em que a realidade, pela primeira vez, se impõe à imaginação. Contudo, apesar disso, ao longo da vida continuamos a nos apegar a ilusões e mais ilusões. O homem não tem jeito, não tem saída. “Alô? Alô?”, eu gritava, tão decepcionado com o silêncio de Dalton Trevisan quanto o pequeno Secchin com a inexistência de Papai Noel.
“Por que você fica gritando alô se eu continuo aqui, que nem um paspalho, a ouvi-lo?”, a voz, finalmente, cheia de desprezo, respondeu. Ela continuava ali, esperando, resignada, a minha resposta. Por que bati com o carro que não tenho no muro do Dalton Trevisan com quem não tenho a certeza se falo? Por que insistia em gritar “alô” para alguém que estava bem ali, do outro lado da linha, a me escutar? Por que continuava aquela conversa com um Dalton Trevisan que, eu estava quase certo, não era Dalton Trevisan? Mas e eu — e ele não dissera uma só vez o meu nome, José Castello — eu seria mesmo o sujeito com quem ele supunha falar?
“Vá se danar”, eu xinguei, num rompante de boxeador, e bati com o telefone na cara inexistente de um Dalton Trevisan que era, ou inexistente também, ou que existia apesar de sua inegável fraqueza. E que frio imenso, que desilusão se apossou de mim. Era uma tarde de chuva, mas era pleno verão e, ainda assim, fui buscar um suéter e uma xícara de chá quente, para aquecer minha dor. Eu me sentia derrotado — e continuava sem saber quem era aquela voz que, impalpável como todas as vozes, me aplicara o soco fatal. De qualquer modo, em qualquer perspectiva, eu tinha me comportado como um idiota. Se fosse Dalton Trevisan, eu desperdiçara uma chance única de, enfim, conversar com ele, ouvi-lo um pouco, privar de sua intimidade. Se não fosse Dalton Trevisan, eu me deixara levar por uma piada simplória, e agira como um tonto. Que destino! Quantas hipóteses, a conduzir, sempre, ao mesmo buraco!
Eu não tinha saída, ainda mais agora que, porque desliguei o telefone sem decidir que devia desligar, tudo estava terminado. Só havia uma coisa a fazer: esquecer aquele episódio infeliz e retornar aos livros. Peguei meu exemplar de Cemitério de elefantes e, abrindo ao acaso, me pus a ler. Mas eu não me concentrava nas palavras, naquelas histórias tão belas que, no entanto, dentro de mim, ecoavam como uma reprovação, a voz de Dalton Trevisan, ou do falso Dalton Trevisan, a me esbofetear a cada parágrafo. Fosse ele, ou não fosse ele, aquela voz assumira o lugar de um carrasco. Era dura, insensível, e seu eco me devastava. Ela me perfurava o crânio e, desse modo, ameaçava me explodir. Dinamite pura aquele Dalton que, fosse quem fosse, viera estilhaçar a minha tarde.
Desisti de ler, pois não havia como ler, e fui dar uma caminhada pelo bairro com Gaudí. Por isso gosto de meu cachorro: ele atende, quando quer, só quando quer, a alguns — poucos — de meus pedidos. “Quieto!”, “Anda!”, “Devagar”, ordens assim, mecânicas e sem muita esperança, e mais nada. No mais, guarda um imenso desprezo pelas palavras e, mais introspectivo que os monges, prefere, focinho enfiado no chão, apenas cheirar e cheirar, farejar e farejar. O que procura? E ele lá sabe o que procura? E precisa saber o que procura para continuar a viver? Lembro-me de Clarice, sempre ela a me descerrar pequenas portas de salvação: “Quanto à literatura, mais vale um cachorro vivo”.