“A morfina é um analgésico narcótico potente destinado especialmente para o controle da dor aguda que não responde aos analgésicos tradicionais”
Outro acesso de tosse. A mulher recolhia roupa do varal apalpando as mudas estendidas, encostando-as à pele do rosto para sentir a umidade e, se arranhavam, dobrava-as e jogava-as junto com os pregadores de madeira na tina de plástico verde-escuro que empurrava ao longo do quintal com a ponta do chinelo-de-dedo de solas gastas. Agônico, o sol afundava por entre as meias-laranjas. Agosto espalhava ciscos pelo chão recém-varrido. Esmagrecia. Ela, sempre falta de carnes, amparava os ossos pelas paredes da casa minúscula, cortinas de americano-cru separando os cômodos, um imperceptível furo na câmara-de-ar de uma bicicleta empoeirada, abandonada a um canto de uma dispensa entulhada de trastes.
Vizinha, a filha titubeou em acudi-la. Ansiosa, barriga no fogão-a-gás, colher-de-pau remexendo nervosa o angu, a trêmula tampa da panela de feijão, o gorduroso vapor do arroz, a abobrinha-d’água ralada descansando num tuperwear, aguardava o marido aportar da fábrica, estômago às costas, e a erupção das crianças de volta da escola, reclamonas, demorasse muito, Meu deus!, panelas, talheres, pratos se acumulando no fundo da pia, Tanta coisa por fazer!, acabaria perdendo o capítulo da novela-das-sete. O mais pequeno, fedendo a cocô, macacãozinho engatinhando o cimento grosso da cozinha, levava à boca o que a mãozinha ávida pinçava, lábios margosos de cabeças de paus-de-fósforo queimadas. O alto-falante estridente de um caminhão apregoando água sanitária, desinfetante, sabão líquido, detergente, Tudo pela metade do preço, freguesa, venha conferir!, a algazarra de meninos sem camisa pendurados na carroceria, a histeria de imundos cachorros assustaram a tarde, que, abismada, precipitou-se na perambeira do lusco-fusco.
O corpo dobrou-se, a dentadura superior expulsa da boca murcha perdeu-se em meio à capoeira do quarador, a urina quente escorreu entre as pernas, e a mulher amparou-se desequilibrada agarrando o bambu que calçava o fio do varal, os alvoroçados cabelos adiantadamente embranquecidos, zonza, ratos devorando-lhe as entranhas, ânsia de vômito, Melhor morrer, Estou morrendo? A filha empurrou o portãozinho de madeira, lingüetas enferrujadas, correu para perto dela, sem saber O que fazer?, meu deus?, o que fazer?, Mãe, o quê que a senhora está sentindo?
Quando o genro chegou, encontrou o prato de comida quentando em cima de uma panela de água fervente, fogo baixo, luzes apagadas. Beirando o muro que separava os quintais gritou, Regina! Ô Regina! Irritado, deu meia-volta, enviesou pelo portão principal, apenas encostado, penetrou na casa, portas escancaradas, as paredes da sala espasmodicamente coloridas pela luminosidade da televisão, vazia. Ô de casa!, palmas. Dona Paula? Regina? Entrou no quarto, a sogra na cama, enrodilhada em si mesma, gemidos baixos, constantes, a mulher à cabeceira, a boca do neném grudada no peito volumoso, desespero raiado nos olhos, Bem, ela está cada vez pior, ciciou, O quê que a gente faz, bem? Cadê o Wilton e a Naira? Na casa da dona América… Vão jantar lá… Se precisar, eles podem dormir lá… ela falou… É só levar
Roupa? Lavara muitas. As finas, do povo que morava na Rua do Comércio, na Praça da Estação, na Avenida, médicos, advogados, juízes, sim, juízes!, lembra?, doutor Maurício!, bom, sério, tratava as gentes como se igual… Calças ricas, tropical, linho, gabardine, tricoline, tergal… Mas também vestidos tristes das mulheres da Ilha, paetês, vidrilhos, lese… E a chita, o brim dos da vala-comum… Quanto tecido suas mãos enrugadas enxaguaram, branco e de-cor, de-ver-deus e de-ficar-em-casa, de-baixo e de-sair. Quem iria cuidar? Cinqüenta anos! As trouxas, conhecia-as, uma a uma, de cheirar. E, hora para outra, somem as forças para uma cueca, uma calcinha, um par-de-meias, o lodo lambendo o esfregador do tanque… Uma laranja, uma laranja forçando o por-detrás dos pulmões. Bobos! Tinha visto a radiografia, ouvido o sussurro, “É grave”, pensam que não sabe… a Doença… acham que não desconfia… a Rabuda… já pressente-a, ao calcanhar…
Erguendo-se, a uma solicitação do marido, a filha se descontrola, Já falei, mãe… a senhora não ouve… uma teimosia danada! Se prestasse atenção, mansava em repouso… Mas não… tem que zanzar pra lá e pra cá… Só trabalho!, e atabalhoada, o bebê aos berros, atravessa os cômodos, tropicando nos poucos móveis, Estou cansada disso tudo! Cansada!, e o homem, rastreando suas canelas, eleva os braços, Tinha que sobrar pra gente, né, Regina? Cadê a Ângela? E o Ivair? E a Rosana? Estão nem aí… O nosso mal, Regina, é que temos coração… A Ariana… Não fale o nome dessa… Desgraçada! Nem nunca não ligou pra saber da mãe… Ai, meu deus, por que sempre eu?, por quê?
Nos últimos tempos, entregue estendida no sofá, napa amarela, a descorada testa merejando suor frio, encoberta sob um florido lençol de cambraia, para a rua de-costas, só-ossos, enegrecidas covas, olhos aflitos auscultando o preguiçoso tique-taque que empurra a manhã contra a tarde contra a noite contra a madrugada, pingapingar vagoroso das horas, a televisão embaralhando frases espedaçadas advindas do passeio, a bola de carne esponjosa espremida entre os pulmões e as costelas oprime o fôlego, atinava com a visita da Indesejada em breve, o tempo esfumando, aborrecia-a a dependência, da Regina principalmente, tanta preocupação!, as crianças, o marido, ajeitar os cômodos, botar a mesa, e ainda… ainda… outra casa… espanar a poeira dos móveis, untar óleo-de-peroba, encerar o chão, basculhar as teias-de-aranha, arear as vasilhas, uma… inválida! uma… entrevada! A morte, a viver assim, preferia. Até para o banho necessitava ajuda! A cadeira posta sob o chuveiro, uma fraqueza!, água escorrendo pelancas abaixo, desânimo até no pegar o sabonete, o xampu, a bucha, ensombrada no banheiro com vergonha de pelada estar frente à filha, à vizinha, à conhecida, ela, que na claridão nem o finado marido a vislumbrara nua… Virara isso, um mal-estar… uma dor estragadeira… vontade de. E deu para aparecer visitas, sinal de que Ela já arrodeava. Porque, em-antes, se vinham vizinhos, parentes, o povo, era aos domingos, para os almoços que perduravam até pousar, nos postes, a noite. Cerveja, cachaça, vinho, batida, caipirinha, aqueles-uns que, altos, brincavam, gozadores, chacoteiros, hahahas, e o dia esvoaçava célere rumo à segunda-feira. Ou então surgiam em aniversários, festejos de Natal, Ano-Bom, ocasiões que se emparedava na algaravia da cozinha, o vozerio familiar, cama-de-armar e colchões amontoados pelo mínimo chão, a criação minguando no quintal, fartura de felicidade. Mas, que nada!, agora procuravam-na incerta. Silenciosas, fosse uma igreja, arrulhavam sob as telhas-francesas, a criançada freio-na-boca, senão castigo, puxão-de-orelha, tapa-na-bunda, passar-vontade, as meninas-moças barriga-de-fora e os hominhos boné-pra-trás benévolos, todos, coitada-está-morrendo, sussurros entreparedes, solícitos, deus-nos-acuda, remexendo armários, Onde já se viu?, utensílios nas calejadas de uma-qualquer, Sim, morrendo, bastavam as garatujas nos rostos dos que, xícara-de-café-e-bolacha-maria, palravam, insistentes, Lembra, comadre, aquela vez que, Parece que esse ano não vai ser de chu, O cachorro da dona América, é, aquele mestiço a, A senhora viu o Rafael?, eu acho que ele vai acabar terminando com a, Sim, morrendo. Não diziam, nem não precisava. O Nossa!, que magreza!, o Jesus!, que palidez!, o Ó Deus misericordioso!, enunciavam-se nos finos cabelos da ventania que, saltando a janela, abraçava cortinas, toalhas, roupas. Não diziam, mas seus castanhos olhos no espelho assustavam-se com o espectro, pele seca, estufada, descarnado, muxibento, Deus, o que está acontecendo? E catava à superfície orações que emergiam do lá da infância, frescas novamente, Padre nostro che sei nei celli, sia santificato il tuo nome… Credo in Dio, Padre onnipotente, creatore del cielo e della terra… e irrompia sôfrega da morte, no desespero da luz vespertina sobrepassos na calçada, desencontro de conversas, olor de janta lembrando-lhe a precisão de caçarolas nas trempes, mas… para quê, para quem?, já ninguém havia… O marido, falecido cinco anos antes, derrame, o pobre, tão novo, nem rastro do companheiro sobrara, os filhos acudiram, ajeitaram as coisas, carregaram, para que não sofresse, toda a roupa do pai, os trens de uso — tão poucos, quase nada, um relógio-de-pulso Mondaine 18 rubis, um Tissot cebolão sem-corda, uma faquinha, lembrança de quando picava fumo-de-rolo na roça, em-dês que mudara para Cataguases deixara para lá, só fumava Continental sem-filtro, mas não desafastava do punhalzinho, faca-de-capar-gato, dizia, enchendo o peito, exibindo-o à molecada, enfiando-o novamente na capa-de-couro, à mostra o cabo madreperolado, dependurado no por-detrás do cós da calça, levaram tudo, até os sapatos, os parcos retratos, cinco ou seis preto-e-branco, dois binóculos, um de-parede, pintado, quase um outro homem, não fossem os detalhes, a mancha oval acima do sofá lembrando a ausência, a lacuna, a vasteza, não queriam que se amargurasse, imagina!, como se possível: de manhã, no guarda-roupa, espantalhos os cabides, pantufas deslizando solitárias no cimento-liso esverdeado, onde sua voz?, na sala não o encontrava, debruçado sobre as letras miúdas da Bíblia, nem na cozinha, canequinha de café, ágata malhada, na mão direita, sarro entrededos na esquerda, rabo-de-olho no ponteiro do rádio-a-válvula, nem nos quartos, outrora “dos meninos”, nem no quintal, enxada chafurdando leiras socadas, amuos de verduras-de-folha, remedos de legumes, nem, meu deus!, no canto, à noite, contraparede, afofando o colchão-de-mola, cinqüenta e um anos!, mastigadura no copo, trabesseiro alto para espantar a falta-de-ar, de uma à outra ponta sozinha agora, receio de passar mal, não ter a quem recorrer, a caçula vizinha, mas porém como se não, lambendo seus problemas, mal casada, marido molenga, fracote, Ângela em São Paulo, Rosana também, Ariana em, aonde mesmo?, essa cabeça!, como é o nome?, nunca nem não ligou, minha nossa!, saberá do seu estado?, que está indo?, que alembra da perda do primeiro dentinho, Joga em cima do telhado, faz um pedido, banguelinha, Mãe!?, Ariana, a mais velha, desajuizada, desbocada, brigona, sem-modos, mau exemplo, apontavam, apartada das colegas, escorregando no desamparo de seus vícios, sujando o sangue dos Bicio, enxotando as irmãs para os longes paulistas, expondo à vergonha o filho-homem, Ivair, Ivair, quanto sacrifício para estudá-lo!, o pai humilhando-se até, em puxa-saquismos, Viva os Prata!, montaria em comício, fiscal nas eleições, ouvidos-e-olhos, espia, dedo-duro, espalha-brasa, Seu Jeremias!, tremiam, os do-contra, Seu Jeremias!, o respeito, a honra, a garantia de uma bolsa-de-estudos no Colégio Cataguases, Ivair, contador, tão lindo!, cabelo penteado de lado, maaaagro, compriiiiido, olhos do inventário do avô, quanto tempo!, a Ângela e a Rosana dizem está bem, não esquenta, mas nunca a certidão, sumido, entranhado num vão do muro, Pique!, Pode sair!, o pai rijo dentro do terno marinho engomado, até o no-céu-no-céu-com-minha-mãe-estarei pensava que, no entretanto nem para se despedir de vez, a capela mortuária impossibilitada de vozes, cadê o?, quede ele?, e esfarrapados “uma pena,-muito-trabalho,-coitado”, “os-compromissos…”, “até-chorou,-queria-tanto…”, nó-na-garganta quando, na televisão, pisca o fim-do-mundo, exagero?, filho atira no pai, mulher envenena marido, avô abusa da neta, irmão-polícia caça irmão-bandido, homem dorme com filha, professora foge com aluno, barracos despencam de barrancos, corgos fétidos, incêndios alveolares, atropelamentos, assaltos, estupros, assassinatos, balas sem dono, inocentes sem memória, pecadores sem lembranças, Ivair, onde, a essa hora? Desassossegada, o sono negaceia, dona Jandira chega do culto, arrasta a porta, “Glória! Glória! Os anjos cantam lá!/Glória! Glória! As harpas tocam já!”, a voz encurvada, silêncio de grilos e cachorros, volta, casca comprimidos, enche uma caneca de água, sorve-a em gorgorejos, silêncio de grilos e cachorros, “…de ti,/Na tua dor, com muito amor./Jamais te deixará:/Deus ve”, um tumulto em riba do telhado (gato? gambá? lagartixa?) eriça sua pele, um vento magro manipula as sombras na parede, o neto se esgoela, dor de ouvido?, cólica?, fome?, manha?, arroto preso?, frio?, calou-se, uma charrete, Pereira recolhe lavagem, a essa hora?, “…noite…”, um rádio, “…abraço pra galera da…”, o ônibus encosta no ponto, os cheiros despertam-lhe náusea, puxa o urinol, golfa uma baba grossa que respinga o lençol e chuvisca o chão, visgo gosmento, não simpatiza mais com comida o estômago, tenta engolir algo de-sal, que represa no goto, arruina a cabeça, a vista carrossel, amargura na boca, língua piçarrenta, amarelejada a pele, um troço, só devolvendo, ajoelhada contraída junto ao vaso sanitário, melhorava. Ivair… Recados deram a Ângela, a Rosana: a Doença, falaram, Aquela, maisoumenizando, não queria assim ocupá-lo, coitado, sem-número de dores-de-cabeça, embora creditasse contados seus haveres, não podia vir?, apagasse os rostos que ressentiam o antigamente, rabiscasse nomes, apelidos, do arquivo-morto dos dias… mas não, aríete, exilava-se nos seus porões… se nem quando o pai… a Regina ligou para o orelhão-comunitário, Jardim Boa Vista, láááá em São Paulo, pediu, “Por favor, a Meire”, pôs no gancho, dez minutos, a cunhada atendeu, O desgraçado, disse, o canalha, gritou, o puto tinha largado ela de novo, três filhinhos, meu deus!, três abandonadinhos!, morreu o seu Jeremias?, justiça divina!, bem feito, corja!, nunca se remoeram, que família!, tocou o telefone na cara dela, nem tempo de assuntar o destino do irmão, implorou para a Ângela, para a Rosana, redargüiram, não levasse a sério, nem primeira nem última, recorda quando suportaram dois meses cara-virada?, inimizados, e não voltaram a dividir a cama? Pois! Agora… entretanto… morria… e saber nunca mais o filho aconchegado entrebraços, cabeça asilada no ombro, mãos sobremanchadas explorando os fios crespos dos cabelos… Por quê, Ariana?, por quê? Um casamento fracassado, outro, outro ainda, outro mais… Sina? Puxasse o cordão, surgiriam, atadas, as histórias. Catarina aceitava encomendas para o coro celeste, parecia, tantos anjinhos enterrava; o marido ofertando calos de mãos ignotas aos sitiantes das redondezas de Rodeiro, paradeiro nenhum, acocorado à beira dos tempos-do-onça; ela embarrigada, sangue em borbulhas coxas-canelas; ele, botequim, acotovelando dores em um-gole; ela, seca, graveto consumido em esgares; ele, nem ciência, encurralado na solidão, acuado no silêncio, dentes arreganhados, atolado no já-ido, resmungando honestidades, fios de bigode, morais, bonscostumes, às modernidades adverso, tudo que almejava, filhos, netos, uma roça, um canto, leréias, casou com uma má-parideira, servo de patrões desapalavrados, sem cobre para um chapéu domingueiro, o dízimo da igreja, uma bicicleta aro-26, esterco, bosta, merda, um merda! Maria, a caçula, em Ubá, três filhos, um, que morreu aos vinte e poucos, encharcado de cachaça; uma, que casou, descasou, mudou, diz-que no Rio de Janeiro uns, bem, arrumada, arranjada, outros que mulher-da-vida, amigada com gente-grossa, barra-pesada, traficante, vá saber; outra que, desdonzelada, quinze anos, amarrou com panos a cintura para impedir o inchaço, escondendo envergonhada algo revoluto em-por-dentro, a descabeçada, pôs no mundo os olhos verde-verdíssimos de um monstro, pernas e braços longos, finos, quebradiços, imovíveis, coração falho, testa de muros encastelados, pele azuuul-azul, um troço, um negócio, uma coisa que, enquanto respirou, trajetou de casa para o hospital, do hospital para casa, oito anos mais, uma inteligência de dar dó, “Vou morrer?”, perguntava toda vez, “Chora não, eu vou pro céu”, consolava, tronco só-osso estirado no colo da vó. E assim todos, todas… O Virgílio, que levou a vida inteira sob vara a mulher, os filhos, “a outra”, tão natural bater nos seus quanto comer, beber, cagar, espancando-os com mãos próprias ou fosse o que fosse, acha, chicote, bambu, corrião, tala, cabo-de-vassoura, marmelo, galho, qualquer salmoura cura, receitava, debochado, nem punham o nariz para fora, roxos tatuados no corpo, os masculinos, cheios, uma feita abordaram-no, homem para homem, num pé-pra-fora,
(Fecha a janela, devagarinho, pra ela não espertar)
a discussão azedou, ajeitou a garrucha, enfumaçou a rua de enxofre, e, dos tiros, os que não mascaram voaram assustados, tão bêbada a mão se encontrava. O Franco não se misturava. Casou com as terras de uma Benvenutti, botou uma serrariazinha, engordou, antipatizou, encabrestou os filhos, “Bobageira, estudo”, filosofava, estufando os dinheiros e distanciando da parentalha, é os dentes e ainda morde na gente, ditava. Conheciam os sucedidos, porque, na época, era uma porcariinha assim Rodeiro, uma-praça-quatro-ruas, nos atrases do muro que circundava o espraiado telhado adivinhavam almoços de domingo, vozes e talheres vozes e lenha queimada vozes e copos vozes, vozes, vozes, mas nenhuma nunca Bicio, a família!, onde?, Dov’è, la famiglia?, indagaria o patricarca. Franco atalhou para a soberbia, os filhos prostituíram a fortuna: a um e outros empurrou degraus abaixo a reta justiça. Foram-se todos, se numa epidemia: Renatinho e Renan, morte-matada, bestamente num baile no Diamante; Selena, desastre de carro, com o recém-marido, nas curvas da encosta de Santa Bárbara do Tugúrio, caminho de Belorizonte; Franco, escavado pela tristeza. De resto, a mulher, Estela, a filha, Selma, enfurnaram-se ambas nos pastos Benvenutti, para os lados da Bagagem, afastadas, maníacas, gatos, cachorros, galinhas e porcos assenhorados dos cômodos, imundície, fedor, morrinha, de partir o coração. Últimos tempos, acenaram reconciliações, mas já afastavam-nas intransponíveis fossos de ressentimento. Enfim, Chiara, meia-lua-da-unha, tranças cavalgando a solidão do céu de outono, “Nunca vamos nos separar”, mãozinhas siamesas, histeria no casamento, “Minha irmã!, minha irmã!, adeus!, meu bem, adeus!”, como antecipando sua história, empurrada por um bicho-homem Micheletto para o fundo do fundo de uma barroca, enquistada meio caminho de Rodeiro para a Serra da Onça, algemada nos cordões-umbilicais de gravidezes sem-fim, mirrando num quarto de portas e janelas trameladas por fora, da família exilada, até a luz do dia censurada, desajustando-se a cada pio do relógio, “Não tenho satisfação a dar a ninguém”, “Minha obrigação é botar o de-comer em-dentro de casa, e eu ponho, só Deus conhece o sacrifício”, “Não viajem pra se aborrecer e dizerem por aí”, trombeteava. Tentaram convencê-la, “Se você quiser”, ela, olhos espojando na poeira, “Não, é sina, minha cruz, só traria mais confusão”, e ocultou-se cinzenta à sombra do pomar roído de pulgão, pés de laranja, e de limão, e de mexerica, e de tanjo, e de lima, e de sidra, sabendo-se em ruínas, um casamento e a felicidade advinda, bobiças que aos catorze anos almejava, e, em meio ao tapete de cheiros estragados, porcos e galinhas disputando frutas podres, desfiou sua loucura. Só tornaria a Rodeiro vinte e um anos após, vestida em madeira, missa de corpo-presente na igreja de São Sebastião, rija, lívida, nem migalhas do antigamente. Família… casamento… filhos… uma insidiante epiderme de mofo impregna todas as histórias, esporos furtivamente carcomendo qualquer esperança… assim, nos primórdios… assim, sempre… uma praga, uma maldição desembarcada do navio Carlos R., em Santos, camuflada na bagunça das tralhas recolhidas aos baús dos Bicio, dos Furlaneto, cujo sangue, cinco anos mais, se misturaria, a ansiosa melancolia de Giacinto, a nostalgia embirrada de Elisa, ele, vinte e dois, ela, quinze anos. Corcoveando o mar-oceano pulgas, baratas, percevejos, ratos, eriçados frangos engaiolados, hirtos pescoços, proprietários do impossível retorno, ignorantes do daqui-a-pouco, no nunca-jamais enterrados os ossos antepassados, soterrados os corpos, rasgadas as memórias do visto, saboreado, cheirado, pegado, ouvido, o Brenta, o paesello, as Dolomitas, a Basílica do Santo, martirizada a história em estrangeiras manhãs suarentas, sob a planta dos pés terras ordinárias, casebres escalando montanhas em perdidos sertões, saúvas, redescobrimentos. E exsurge, imenso, o
(Põe a coberta devagar… senão ela acaba acordando… Isso…)
Inferno, não o do catecismo, labaredas fustigando condenados, tridentes sujigando pecadores, gritos de tardios arrependimentos, mas outro, encenado em certa casa, náufraga oculta trás um basto bambuzal, para onde convergiam voçorocas e caminhos-de-formiga, minúscula se avistada do topo do pasto, arrogante se de sob o assoalho carunchado. O pai, pendurados nos ombros os alforjes de uma tristura tamanha, contrariedades tantas que atacaram as entranhas, numa época que, de pena, botou para em-dentro de casa a cunhada, Luigia, enviuvada recente, moça quase, estuporando o que maginava remediar, as implicâncias muitas da mulher, então só ciúmes, atenção demasiada à irmã, reclamava, e murcharam os dias sem comer sem falar sem desejar outra panacéia que não o fim, e o pai, dilacerante quentura na boca-do-estômago, enfermou, mofinou, secou, até render-se, quarta-feira, agosto, quatro, impossível esquecer, à charrete, olhos espantados com a dor, como agora os seus, a camisola desdobrada sobre o abdome em chamas, as mesmas que o consumiram, ele, que não tossia, como não tosse, que não reclamava, como não reclama, que se esvaiu em silêncio e solidão e remorso, mas não sabia ainda que o via pela última vez,
Papai!
o rosto crispado, O que o senhor enxerga?
Papai!
e ele berrou, raro fato, cordato que era, calmo, tranqüilo, só se manifestava agitado quando acercavam visitas, não quaisqueres, mas gente-bem, o padre, os políticos, os compadres melhor de vida; aos pobres, pés-inchados, pretos, mascates, cometas, a esses reservava os degraus da escada, uma caneca-d’água fresca, a impaciência; àqueles, a pompa, os capões do quintal, os capados, os garrotes, o vinho-de-garrafão, os doces, a sala, a um canto chupando seu cigarro-de-palha, fumo-de-rolo de Tocantins,
Papai!
no hospital Santa Isabel, em Ubá, abriram urgência sua barriga, nem o operaram,
Desgraçados!, Desgraçados!
— A senhora está
o homem alto, bonito, espigado, que mais gostava de ouvir, marmoreamente esticado sobre a laje,
— Dona Paula?
enterrado no cemitério de Rodeiro, onde convivem seus mortos e, em breve,
Por quê, meu Deus?
também estará.
— Dona Paula?
Levantando-se transida agarrou a voz pelos cabelos e unhando-a no pescoço e nas costas entre gritos desferiu murros indestinados pontapés mordidas, antes de num acesso cair de borco em espasmos no cimento frio.