Somos todos inocentes

Em "O inocente", Ian McEwan tece uma trama que o assegura entre os principais escritores contemporâneos
McEwan é muito habilidoso em enriquecer um romance com uma junção de conflitos extremamente distintos
01/05/2004

Cuidado, você que pensa que sabe tudo sobre tudo. Sempre há algo mais, ou algo diferente do que você imaginava, que pode mudar sua vida, para pior. Seja paciente antes de tomar suas decisões, não se precipite como Leonard Marnham, o protagonista de O inocente, romance do inglês Ian McEwan. Um erro pode custar a felicidade de uma vida, ou pelo menos de grande parte dela, como no caso de Leonard.

Técnico da estatal britânica de telecomunicações, Leonard foi enviado à Berlim pós-Segunda Guerra para instalar aparelhos de escuta num túnel secreto, visando interceptar as comunicações russas. O que poderia ser uma simples novela de espionagem, baseada numa operação militar que realmente existiu, transforma-se, pelas mãos de McEwan, em um romance envolvente e imprevisível, que nos transporta por labirintos de emoção, suspense, ternura, violência e surpresa. Não, não é um livro de Agatha Christie ou Sidney Sheldon. McEwan é um escritor do primeiro time, tem um texto primoroso e uma imaginação fértil para entrelaçar conflitos aparentemente distantes. Assim como a maioria de suas obras, O inocente é daqueles livros que sustentam o prazer da leitura de cabo a rabo, daqueles que não se quer largar enquanto não se chega ao fim.

Voltando ao que foi dito no início, a grande surpresa de O inocente está no desfecho do caso amoroso de Leonard Marnham, que se apaixona pela alemã Maria Eckdorf. É um caso belo e conturbado, que envolve cenas de romance, brigas e um crime macabro que, somados à operação de espionagem, completam o suspense da trama. Mesmo assim, o que prende o leitor é a curiosidade — e a torcida — pelo final feliz entre Leonard e Maria.

A estrutura do romance é perfeita, vai alimentando os anseios do leitor aos poucos, à medida que os conflitos vão sendo resolvidos. Fica para as últimas páginas a contundente reflexão de Leonard sobre sua precipitação em relação à amada, pois ele achava que sabia de tudo que havia entre o casal, e tinha certeza de estar envolvido num triângulo amoroso, do qual faria parte seu chefe no túnel. O mais torturante é que esta reflexão acontece 31 anos depois do fim do trabalho de Leonard na Alemanha, quando ele já está em seu país, com quase 60 anos de idade.

Ao receber uma carta de Maria, alguns anos mais velha que ele, Leonard se dá conta de que fez o julgamento errado e obrigou duas pessoas — Maria e a si mesmo — a seguirem por rumos que não eram os desejados em suas vidas. Três décadas depois, Leonard reflete se ainda é possível recuperar o tempo perdido. Se tivesse ouvido com mais atenção o chefe Bob Glass logo no início do romance, Leonard teria assimilado uma mensagem cifrada do autor-narrador que é uma espécie de chave para o romance.

“Todo mundo aqui pensa ter acesso ao nível mais reservado de informação, todos acham que conhecem a verdadeira história. A pessoa só fica sabendo que há um nível ainda mais reservado que o seu quando obtém acesso a ele”, explica Glass, oficial da CIA que é um dos responsáveis pela construção e operação do túnel, idealizado pelos serviços de inteligência dos Estados Unidos e do Reino Unido.

Glass se refere a confidencialidade das informações dentro da Operação Gold, que funcionou até abril de 1956, mas a mensagem subliminar também serviria de alerta para Leonard, e para todos nós, em todos assuntos. Aliás, esse tipo de mensagem é um recurso muito bem usado por McEwan, até mesmo no título do livro, que na versão em português optou-se pela pessoa masculina singular, o que remete ao raciocínio lógico de que o inocente é Leonard, que se envolve em um crime em legítima defesa. Mas, no original, The innocent é ambivalente, podendo valer para Maria, que foi na verdade quem teve a iniciativa para o homicídio, mas que também seria inocente da acusação de infidelidade que lhe foi imputada por Leonard, e, ainda, o título poderia ser interpretado como “Os inocentes”.

Deve-se, também, levar em conta o sentido de ingenuidade da palavra do título, pois Leonard é um carneirinho comparado aos outros personagens. Além de ser um civil que desembarca numa Berlim pós-guerra ocupada por militares e agentes especiais russos, americanos e ingleses, ele também é, literalmente, virgem em sua relação com a experiente Maria. Tanto que, num rompante de auto-afirmação, Leonard perde a lucidez por completo e praticamente estupra a companheira que o havia iniciado nos caminhos do sexo.

Somente com o relacionamento entre o inglês e alemã, McEwan já nos satisfaz com uma obra densa e de forte exploração das características psicológicas do casal (não é para menos que o livro tem um segundo título: O relacionamento especial). Mas McEwan é muito habilidoso em enriquecer um romance com uma junção de conflitos extremamente distintos. Já fez isso com sucesso em Reparação (Companhia das Letras, 2002), em que mistura paixão, erro e arrependimento, e leva a trama para um inesperado cenário de guerra, voltando dele com ainda mais força.

Reparação talvez seja o melhor livro de McEwan, que ganhou o Booker Prize de 1998 com Amsterdam (Rocco, 1999), mas o relançamento de O inocente (havia sido publicado pela Rocco em 1992) é uma grande oportunidade para se reler um autor de múltiplas qualidades. Pena que a tradução dá algumas derrapadas e apresenta algumas frases cuja construção não faz jus ao esmero lingüístico de McEwan (“Estava tiritando, mas até o frio era prenhe de possibilidades”, pág. 77). Até a revisão deixou escapar erros gramaticais graves como em “tinham sido construídos a não mais que dois ou três anos” (pág. 308).

Mas McEwan não tem nada a ver com isso. Poucos mestres do suspense conseguem, como ele, descrever com total desprendimento o crime bárbaro cometido por Leonard e Maria. Aliás, vamos ao crime, que é muito legal. Perdoem-me a falta de escrúpulos, mas crime legal, no jargão de alguns jornais (pelo menos nos que trabalhei), é aquele com uma boa história que rende a manchete do dia.

Maria Eckdorf, claro, tem um ex-marido. Ele é o alemão Otto, um bêbado incorrigível que gosta de bater em mulher. Um belo dia, quando Leonard e Maria estão na cama transando percebem uma respiração ofegante dentro do guarda-roupa. É Otto, roncando como um porco. Ele desperta, tenta estrangular Maria e atraca-se com Leonard. O inglês é ingênuo até para brigar e está prestes a levar uma grande surra quando a mulher levanta uma fôrma de sapateiro e recebe a ajuda de Leonard para cravá-la na cabeça do alemão.

Além do crime, os dois têm agora um corpo no quarto. Usam uma serra e duas malas para livrar-se dele. (“Tinha uma vaga idéia da coisa, derivada do frango assado dos almoços de domingo. Inclinava a serra para um lado, depois para o outro, manuseando-a com fúria, ciente de que, se parasse, nunca mais recomeçaria.”)

A coisa até que ia bem, mas a parte final a ser colocada na mala, o tronco de Otto, passou das medidas da mala. (“Não vai caber. Isto aqui é uma omoplata e a outra ponta é muito grossa. Você vai ter que cortar em dois. Era o marido dela, ela sabia o que estava falando.”)

Para encurtar a história, os pedaços do marido dela vão parar no túnel da Operação Gold, pois Leonard foi flagrado com as duas malas, que normalmente são usadas para transporte de equipamento de escuta. Ele é obrigado a levá-las de volta para o túnel, mas consegue evitar que sejam abertas usando o blefe de uma suposta informação reservada, a qual nem Bob Glass poderia ter acesso.

As peripécias de Leonard em Berlim acabam bem. O túnel é descoberto pelos soviéticos e as equipes americanas e inglesas são mandadas para casa. Não se sabe se as malas que incriminariam o casal foram sequer descobertas. Se o foram, o crime foi acobertado pela situação de força maior que eram as atividades de espionagem debaixo do nariz de alemães e russos. Essas atividades têm papel de destaque no livro. McEwan as descreve em detalhes interessantes e com enfoque às relações entre os oficiais britânicos e americanos, cada quais com suas peculiaridades. O britânico McEwan faz graça ao comparar o comportamento formal de seus conterrâneos à descontração americana. “Esses americanos pensam em tudo. As máquinas de Coca-Cola dos corredores, os bifes e o leite com chocolate da cantina. Viram homens crescidos tomando leite com chocolate.”

A novela da espionagem é encerrada com a descoberta do túnel, mas o livro, não. Num pós-escrito, encontramos Leonard 31 anos depois. Não se sabe o que ocorreu em sua vida durante esse período, se teve filhos, se casou, até porque isso não interessa. O que importaria é a vida que ele poderia ter tido, caso não houvesse sido ingênuo e precipitado ao julgar sua relação com Maria. Leonard achou que conhecia a verdadeira história, mas enganou-se. Só ficou sabendo que havia um nível ainda mais reservado quando obteve acesso a ele por meio da carta de Maria, vinda da cidade americana de Cedar Rapids, Iowa. Fez questão de ir a Berlim para reler a carta e decidir o que fazer. Não se precipitou desta vez. Precisava pensar em cada frase escrita por Maria, principalmente naquela que dizia: “Na minha experiência, homens e mulheres jamais chegam de fato a se entender”.

Leonard Marnham encontrou uma Berlim diferente daquela que conhecera quando era um inocente técnico da estatal britânica de telecomunicações. Mas agora sabia o que pretendia fazer. “Provavelmente teria de tomar um vôo até o aeroporto de O’Hare, em Chicago, e lá fazer uma conexão. Chegaria sem avisar, estava preparado para ouvir um não.”

O inocente
Ian McEwan
Companhia das Letras
328 págs.
Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho