A eterna insatisfeita

Edla Van Steen prepara-se para lançar A ira das águas
Edla Van Steen, autora de “No Silêncio das Nuvens”
01/10/2004

A escritora Edla Van Steen nasceu em Florianópolis, mas vive há muitos anos em São Paulo, cidade que inspirou as horas trágicas do romance Madrugada. É autora de mais de uma dezena de livros dos quais destacamos: Cheiro de amor (Contos, 1996), O último encontro (Teatro, 1986), No silêncio das nuvens (Contos, 2001), Madrugada (Romance, 1992), Memórias do medo (Romance, 1974), Até sempre (Contos, 1985), Antes do amanhecer (Contos, 1977). Edla já trabalhou no cinema e no teatro, tem quatro obras traduzidas no Estados Unidos e uma pena certeira. A leitura de sua obra nos coloca frente a frente com algumas fraturas humanas. Sua linguagem abomina o empolamento verbal, (ela mesma declara que: “no início da carreira pensava que para se escrever um bom texto era necessário utilizar-se de um vocabulário “rico”, isto é, vocábulos estranhos ao cotidiano, porém, com o tempo, percebi que a simplicidade é uma aliada na construção de bons textos”. Nesta entrevista, ela fala sobre seus personagens, sua obra, criação literária e, naturalmente, sobre sua vida.

 • Em 1959, você atuou no filme Na garganta do diabo, de Walter Hugo Khoury, e obteve sucesso como atriz. Sabe-se que você recebeu propostas para outros filmes. Por que optou pela literatura já que tinha carreira promissora no cinema?
Isso faz tanto tempo. Mas acho que era este o meu destino. Feliz ou infelizmente. Meu primeiro emprego, aos 16 anos, foi radiofonizar cartas para a Rádio Tinguy, de Curitiba. Meti a cara, inventei as primeiras cartas, que eu lia interpretando as ouvintes, e no final, mudando de voz, dava conselhos. Na época, faziam sucesso os programas do gênero e logo recebi centenas de cartas. O lado escritora se manifestava e o lado atriz também. Juntei um monte daqueles programas e escrevi aquele que eu pensei que seria meu primeiro livro de contos, mas perdi os originais num táxi.(O xerox só apareceu anos depois). Da primeira versão eu tinha cópias, mas fui mudando, mudando, e a última, aquela que eu considerava boa, perdi. Decididamente a literatura parecia não ser meu caminho. Eu já escrevia em jornais e revistas, inclusive assinava uma coluna social, com pseudônimo. Achava que podia sobreviver escrevendo. Daí tive meu filho Ricardo, que estava com um ano, quando fui apresentada ao Walter Hugo Khoury pelo artista plástico Marcelo Grassmann. Durante as filmagens, em Foz de Iguaçu, comecei a escrever Cio. Chovia muito, estávamos lá, presos no hotel. Arranjei uma máquina de escrever emprestada. Walter punha a mão na cabeça: dois atores escritores! Como é que eu fui me enganar tanto? O outro era o querido José Mauro Vasconcelos. Ganhei vários prêmios, inclusive fui a primeira atriz brasileira premiada no exterior, graças à generosidade de Roberto Rossellini, no Festival de Cinema de Santa Margherita, em Ligure, Itália. Não sei se cheguei a fazer uma opção. Acho que fui me deixando levar.

• Como conseguiu quebrar as barreiras editoriais?
O meu primeiro livro Cio, de contos, foi publicado em 1965, por Von Schmidt editor. Éramos três autores jovens que pagaram seus primeiros títulos: Thomaz Souto Correa, que preferiu se dedicar ao jornalismo, Ignácio de Loyola Brandão e eu. Fomos todos bem recebidos pela crítica, mas as vendas… Eu já era mãe de Anna e estava grávida da minha filha Lea: escrevia a noite, à mão, para não acordar as crianças. Em 1973, um amigo levou meu segundo livro para a Melhoramentos, que publicou Memórias do medo, com ilustrações do grande artista mexicano José Luiz Cuevas. O romance era uma paráfrase de O colecionador, de John Fowles, para que eu pudesse falar da ditadura militar, da falta de liberdade. O livro teve excelente crítica e o dramaturgo Jorge Andrade fez uma adaptação para a televisão, estrelada por Norma Benguell e Flávio Galvão, nos papéis principais. Desde então tenho tido bons editores.

• Sua peça teatral O último encontro revela o mundo da família Buckhausen. Marcelo, um dos personagens centrais, é escritor e escreve sobre os conflitos internos de sua família. No livro de contos Cheiro de amor, a personagem Lívia, do conto Rainha-do-Abismo, também é escritora e pretende narrar sua experiência de filha abandonada pelo pai. Graciliano Ramos sempre disse que um escritor só escreve sobre si mesmo. É assim com você?
Nasci na família Wendhausen, em Florianópolis, e minha avó morreu com quase 80 anos. Não, não é a história da minha família. Pura invenção. Mas a decadência financeira dos alemães em Santa Catarina me comove. No conto Rainha-do-Abismo talvez eu tenha colocado um pouco de mim, que fui filha de pais separados. Tive muitos problemas de abandono e fiz esforço para adotá-lo como pai, já em idade adulta. E a adoção me trouxe alguma paz. O que posso dizer é que meus personagens são sempre fictícios. Agora, como sou eu que os invento…

• Além do seu trabalho na Rádio Tinguy, existe algum fator anterior que já apontava sua propensão à literatura?
Quando eu era interna no colégio, trocava trabalhos de matemática e geografia por redações, onde eu tentava pensar pelas minhas colegas. Eu adorava ler os livrinhos água-com-açúcar que eram permitidos e devia corresponder ao que me pediam, pois várias colegas me agradecem ainda hoje a troca. Imagine. Eu é que sou agradecida. Por meio daqueles livrinhos vagabundos descobri que se podia causar emoção com as palavras. Eu chorava sempre. E, às vezes, chorava escrevendo as redações. Não me lembro mais o nome da menina que falou de mim ao pai, que trabalhava na Rádio. Ela me indicou como alguém que escrevia com emoção.

• No romance Madrugada você coloca Beatriz (uma criança), Bepi (um empresário), Alfredo (artista de circo), e um possível político patife sendo velados num mesmo local, onde ocorre um assalto e resulta na morte de Diego, um circense que velava Alfredo. Você faz uma metáfora da violência no mundo urbano, o que também ocorre, sob outra perspectiva, no seu romance Memórias do medo. A arte tem que ser engajada? Qual o papel do artista diante do mundo?
Escrevi Madrugada baseada numa notícia de quatro linhas de um jornal, sobre um assalto num cemitério, quando os velórios ficavam abertos à noite. Fiquei muito impressionada e tentei adivinhar que tipo de gente era capaz de fazer aquilo. Depois imaginei os mortos que estariam sendo velados. E me lembrei de um mendigo que vi saindo, uma vez, de um túmulo. Não acho que a arte deva ser engajada. Mas a violência está por toda parte. Como ficar imune ao que nos cerca? Não podemos fingir que nada acontece. Precisamos ser verossímeis, não acha? Em todos os meus últimos livros há contos de violência, seqüestro, assassinatos. Não tem jeito. É o ar que respiramos. Infelizmente.

• Seus romances têm uma estrutura em quadros. O leitor está dentro de uma galeria. Seria uma influência da linguagem cinematográfica e do teatro? Aliás, em um dos contos do livro Cheiro de amor, a personagem se relaciona afetivamente com astros de cinema.
E no meu novo livro, eu tenho de novo uma história do gênero: Mania de cinema. Vou contar um segredo: nunca sei o que vai acontecer, quando começo a escrever uma história. Se eu soubesse, perderia o interesse. Eu gosto de me surpreender. Parto, às vezes, de uma mulher, sentada num banco de praça, de uma anã, de um seqüestro, de alguém que tenta o suicídio, e assim por diante. Se alguém me contasse o que escrevo, ou escolhesse o mesmo tipo de personagem, eu talvez não fosse escritora. Escolheria outra forma de expressão. Aliás, experimentei vários caminhos. A literatura acabou sendo o mais permanente. Sempre gostei de cantar: há quatro anos participei de um show — Sem compromisso — interpretando Lupicínio Rodrigues, Antonio Maria, Herivelto Martins, entre outros… E fiz uma exposição, quando saiu meu livro No silêncio das nuvens, de 50 miniaturas: caixas-cenários, onde imaginei as salas de Baudelaire, Oscar Wilde, Chico Buarque de Holanda, etc., etc. Não sei ficar sem fazer nada. E, se não tenho nenhuma idéia para escrever, ou estou cansada, experimento. Acabo de aceitar um desafio: uma peça, por encomenda, para Eva Wilma, minha amiga há mais de 30 anos. Chama-se Primeira pessoa, e está em cartaz, no momento.

• As temáticas que você aborda são múltiplas: crítica ao modelo social, ao preconceito, à ditadura, etc. Contudo, dois temas são recorrentes em sua obra: sexo e morte. Yeats disse que só estes dois assuntos são dignos de grandes obras. Por que a abordagem sempre recorrente destes dois temas?
Porque são grandes temas. Mas existem outros: solidão, velhice, amor. Em geral, gosto de personagens para quem ninguém olha, os personagens insólitos, como bem observou a Walnice Nogueira Galvão, e que eu tento adivinhar quem são. Os temas são decorrentes.

• Em Até sempre, você explora com bastante propriedade a vida conjugal. Seus personagens, neste livro, geralmente estão castrados pela presença do outro. O casamento parece um aprisionamento do indivíduo. Numa relação sempre alguém perde?
Não sei o que responder. Eu, pessoalmente, sempre ganhei nos meus relacionamentos. E também dei bastante. As relações afetivas dos meus personagens são complicadas. Acho que se não fossem torturadas, talvez eu não me interessasse por elas. Nesse livro, gosto especialmente dos contos Até sempre — a volta à casa da infância — e Carol cabeça Lina coração, pela emoção e nervosismo que contêm. Uma coluna para o homem e outra para a mulher, que vira uma coluna única no momento que os dois se falam, por telefone.

• Ainda neste livro, em que o narrador é sempre uma mulher, existe um tom áspero em relação à figura masculina. Com todas as conquistas feitas pela mulher, você acredita que ainda vivemos a ditadura do masculino?
Será que esse tom áspero existe mesmo? Em Vocação para o canto orfeônico tento adivinhar as relações de um pai que fica com um filho recém-nascido. Mas, porque sou mulher, você acha que o narrador é sempre feminino? Talvez. Quanto à ditadura masculina, bem, todos os grandes ditadores do mundo foram e são homens. Nos relacionamentos afetivos que não dão certo todos sofrem.

• Não estou associando você como mulher e as narradoras de seu livro Até sempre. É que raras vezes não se percebe que é uma mulher. Vou exemplificar alguns: no conto homônimo, Eva Becker é também a narradora do conto, certo? No conto O jantar é explicitamente uma narradora. O conto A promessa começa com o monólogo interior de Alba.
Eu sou mulher e, como tal, talvez prefira as personagens femininas. Fico mais à vontade.

• Quanto à aspereza de que falei. Não digo que é só aspereza, há amor, desejo, admiração. Contudo, Eva Becker, por exemplo, tem admiração pelo tio Herculano, porém tem ressalvas ao pai. A personagem de Que horas são se sente feliz com a morte do marido, pois ele a tolhia. Entende?
O que realmente tento é entender minhas criaturas, encontrar as melhores palavras para contar as histórias. E ser verossímil.

• Como busca seus personagens? Quando sente que eles estão plenamente realizados no texto?
Tenho muitas dúvidas quanto a essa realização. Todo texto tem uma lógica interior e uma lógica anterior. Quando consigo justificar as duas, acho que o personagem está definido. Vou contar outro segredo: não releio livro publicado, nem para novas edições. Sou tão torturada que eu tentaria reescrever tudo de novo. Implico com palavras, sempre acho que poderia acrescentar coisas, modificar situações. Toda minha fruição está no ato de escrever.

• Quando você sabe que está diante de um bom conto?
Quando ele me surpreende. Gosto muito de ler contos. Dirijo sete coleções literárias na Global Editora, inclusive uma que se chama Melhores Contos, porque sou grafomaníaca — como o Otto Lara Resende disse. Aproveito o vício. Só não leio ficção quando estou escrevendo. Agora, certas histórias rendem conto, outras, novela ou romance. Há um momento que a gente sabe se a história já está ou não contada. Tentei, uma vez, escrever em prosa uma das minhas peças de teatro e fracassei redondamente. O teatro tem uma sintaxe própria.

• Você dirige sete coleções na Global: Melhores contos, Melhores poemas, Melhores crônicas, e quatro infanto-juvenis. Fale um pouco sobre este trabalho.
É um trabalho que me dá grande prazer. Sou um ser coletivo e adoro fazer livros, escolher os autores, ir atrás dos herdeiros, depois encontrar o selecionador. Quando termino um original e entrego para a editora me sinto realizada. Comecei a dirigir essas coleções em 1982. São 22 anos. Um envolvimento com mais de 200 títulos, se eu pensar na coleção Múltipla, que era de ficção nacional e que a Global não quis mais continuar.

• Qual o seu processo de criação? Escreve todos os dias?
Sento para escrever diariamente, todas as manhãs. Nem sempre consigo, as coleções da Global me solicitam muito. Aprendi a escrever aos poucos, uma frase puxando a outra. Como nunca sei o que vai acontecer, deixo a imaginação solta. Às vezes não sai nada que preste. Sou angustiada com o nome dos personagens. Enquanto não encontro o nome, a história não anda. Numa entrevista com Jorge Amado perguntei por que ele dava tanto o nome de Raimundo para seus personagens. E ele me respondeu: porque eles têm cara de Raimundo. É isso aí.

• Você traduziu Ibsen, Molière, Tchekhov entre outros, como seleciona os autores que vai traduzir?
Não sou eu que escolho os autores. Em geral, faço traduções e adaptações por encomenda. Aprendo muito com este trabalho. Mergulhando no mundo de outro escritor, aprendo a sua dramaturgia. É um exercício excelente. Mas só traduzo peças de que eu gosto. Ano passado, fui especialmente à Escandinávia para conhecer as casas/museus de Strindberg e Ibsen, minhas grandes paixões. Senhorita Julia foi dirigida por William Pereira, com Andréa Beltrão e José Mayer. Do Ibsen traduzi duas peças: A dama do mar e Solness, o construtor , ambas magnificamente dirigidas por Ulisses Cruz e Eduardo Tolentino. O doente imaginário, de Molière, com direção de Moacyr Góes, com Ítalo Rossi no papel-título, que me deu muita alegria, também, está no prelo da Global Editora.

• Como foi escrever o juvenil Manto de nuvem?
Foi meu primeiro juvenil. A Editora Nacional me encomendou o livro. Resolvi abordar temas essenciais como separação, morte, de uma maneira leve, para crianças acima de dez anos. Eu ainda não era avó, mas acho que sabia que iria ser. Fui muitas vezes ao apartamento de cobertura do Rubem Braga no Rio, onde ele mantinha um jardim maravilhoso, e pensei em usar o mesmo cenário. Eu também tenho mania de plantas e de temperos. Vivo num apartamento rodeada de vasos. E um dos meus maiores prazeres é cozinhar para os amigos.

• Você publicou dois volumes de entrevistas com autores brasileiros intitulados Viver & Escrever. O que é mais importante em uma entrevista?
Para mim, revelar o autor e o seu processo de criação.

• O que é preciso para ser um escritor?
Vontade de escrever. Acho que todo mundo nasce com algum potencial criativo. O importante é cada um descobrir o seu caminho. Tentar uma, duas, dez formas de expressão até encontrar aquela onde se sente melhor e trabalhar para descobrir a técnica necessária. Na literatura, ler muito é imprescindível. Eu confesso que meu primeiro livro era torturado, rebuscado, linguagem metida a poética. Lendo Rubem Braga e Fernando Sabino aprendi a simplicidade, o coloquialismo: dois mestres. Os meus livros Viver & Escrever 1 e 2, com 36 entrevistas com autores os mais diferentes, sobre o ofício do escritor, também me ensinaram e ajudaram bastante, num momento de crise, em que senti dúvidas se tinha escolhido o caminho certo.

• Manuel Bandeira disse que só o artista que duvida de sua arte está no caminho certo. Ainda tem dúvidas sobre sua arte?
Se eu tenho? Todas. Sempre acho que podia fazer melhor tudo, que eu devia me dedicar cem por cento para a minha literatura, em vez de me dividir nas outras atividades, que eu faria bem em tentar nova versão de uma história. Sou uma insatisfeita eterna. Por isso não releio livro publicado. Anos atrás tentei escrever um conto à maneira de outros autores, tipo Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Luiz Vilela. Brincadeira boba, que não me levou a nada. Faço tantas versões de um texto, mexo tanto, atrás de um certo ritmo… Conheço alguns escritores que quase não rasuram suas páginas. Pensam claro, escrevem exatamente aquilo que querem dizer. Mas também sei que existem autores que são incapazes de escrever um bilhete sem fazer quatro versões. Fiquei muito feliz quando aprendi a usar computador, porque antes eu tinha de datilografar tudo de novo, colar aqui e ali, meus originais eram horrendos. É verdade que só consigo ver os defeitos, depois de imprimir. Preciso ver a palavra, a frase impressa.

• Poderia adiantar algo sobre o seu próximo livro de contos A ira das águas que será publicado em breve.
É mais um livro com uma novela e vários contos. Quando eu escrever a quarta novela, quero reunir todas num único volume, pois se passam na mesma região inventada, composta do Vale das Flores (Cheiro de amor), Vale Verde (No silêncio das nuvens), Vale das Águas (A ira das águas) e Vale Vermelho (ainda sem título). Vou começar a história tentando descobrir como é a vida de uma mulher com mais de dois metros de altura: Elke? Talvez. Estou louca para me envolver numa nova história. É quando mais me divirto. Em A ira das águas gosto muito das dificuldades amorosas dos personagens, dos amores desfeitos que depois são reconstruídos.

• Em alguns textos seus é evidente uma crítica à ditadura militar. Fale um pouco sobre este período.
Somos uma espécie de filtro daquilo que acontece em volta. Como não falar dos sombrios anos de ditadura militar? Vários amigos meus desapareceram, ou foram mortos, ou tiveram de sair do país. Ainda agora, na peça que escrevi para a Eva Wilma, menciono a morte do deputado Rubens Paiva, meu querido amigo, que morreu torturado.

Marco Vasques
Rascunho