O marquês da Veiga

Para Arthur Carvalho e José Mindlin
01/10/2004

Para Arthur Carvalho e José Mindlin

Depois de passar horas no bar Ship Shandler — olhando para os altos armazéns que impediam de ver o mar —, o poeta Tomás Seixas migrava, altas horas, para algum puteiro onde as meninas o conheciam como o “marquês da Veiga”, suposto herdeiro do título de um aristocrata português de Trás-os-Montes, cuja fortuna teria desaparecido, em parte, nas mãos de uma francesa bela como qualquer moça do estabelecimento, próxima do meu amigo vestido com apuro (Tomás sabia se vestir como ninguém) que ele sabia demasiado para a pobreza das noites do bairro do Recife, antes da sua “revitalização” recente, alegre e falsa.

Um arquitetinho fã de Woody Allen só pode entender intervenções urbanas ao estilo das revistas importadas que ele compra em livrarias enormes, que o aristocrata Tomás da Veiga Seixas teria detestado.

Um aristocrata? Ou um argonauta? Ou um sumo-sacerdote panteísta do templo — hoje em ruínas — na Torre?

Um afogado noturno, daqueles que terminavam com areia e patas de siris na boca, depois de ter vomitado uísque entre as pernas suaves das prostitutas? Assim começava o inédito O Continente Imóvel

Tomás Seixas existiu (seu “Thomás” de batismo trazia um “h” que ele, depois, aboliu). Quero esclarecer, a quantos leram as duas partes de O conde de Monte Cristo e se interessaram por Tomás (seu “Thomás” de batismo trazia um “h” que o poeta resolveu abolir), que ele não é um personagem inventado. Filho de um negociante português abastado, formou-se em Direito e foi funcionário público federal, tendo publicado três livros: Adeus à adolescência (tiragem de 11 exemplares apenas), o belo Sonata a Lilian e o seu testamento de leitor apaixonado — A casa dos sonâmbulos — no parque e nos desvãos da casa nasceu e morreu, no bairro das Graças, ali entre as antigas mansões graciosas (hoje, edifícios de apartamento de luxo, na maioria), cercado dos livros que amava: O conde de Monte Cristo, Lord Jim, O lírio vermelho, As ilusões perdidas, Retrato do artista quando jovem, Os cadernos de Malte Laurids Bridge, Dom Casmurro, Em busca do tempo perdido, Os Maias, A montanha mágica, O idiota, Noites brancas, Fome, O coração das trevas, Hazyadée, Uma estação no inferno, o Robinson de Valéry, Fermina Márquez do outro Valéry —, os contos de Katherine Mansfield… todos lidos no jardim de rosas e mangueiras agora desaparecidas.

Ele escreveu: “a poesia de Max Jacob dá-me vontade de conhecer a Itália, Antibes, Paris e os mortos”, mas temia desfigurar a Europa antiga da literatura, quando viesse a pôr os pés bem calçados lá, diante das garotas de calcanhar sujo, viajando com sacos nas costas, depois de topar, dentro do Louvre, com japoneses em grupos felizes diante da Mona Lisa…

O que Seixas haveria de pensar, solitário num hotel de Roma, só com as roupas caras de uma elegância perdida? Nenhuma bermuda constaria do seu guarda-roupa antiquado, nenhuma câmera daquelas dos turistas nipônicos de olho fechado para a beleza escondida numa sala de estuques policromados onde ele teria a certeza que alguma mulher teria sido muito infeliz.

“Quando um japonês é realmente feliz?” — Tomás perguntava.

[Foi em resposta — enviesada — à pergunta que tentei fazer aquele retrato do seu amigo cônsul: “O cônsul Tadashi — amigo de Seixas — sabia fazer mágicas e recebia cartas do cineasta Kurosawa. Quando Trono manchado de sangue foi exibido na cidade — florestas cinzentas de árvores e flechas avançando sobre o sono —, ele mostrou o maço de cartas para nós todos, no Kyoto onde não era tratado como um cônsul, a seu pedido. A bela caligrafia do cineasta de Os sete samurais cobria páginas e mais páginas de delicado papel de arroz, e todos contemplamos aquelas notícias transmitidas como se fossem poemas de garças subindo para a face maquilada da lua num puteiro de Osaka. Sem nenhum bom motivo, Tomás achava que as putas de Osaka condescendiam no sexo anal muito mais que as outras desconhecidas cidades japonesas, sem ter nenhuma boa razão para concluir que era assim em Osaka, Tóquio ou Kyoto”.]

Nem por isso, ele tinha vontade de conhecer o Japão. E nenhum dos lugares — para falar a verdade — que conhecia bem, repito, das páginas de livros lidos e relidos: aquelas obras espalhadas ao léu, pelos cômodos da casa onde morava como o Velho da Montanha abandonado pelos degoladores. Descansando no seu banco de azulejos (de onde partia, quase todos os dias, para Combray, Vincennes, Valencia, Weimar, Lausanne, Copenhague, Sintra, Rapallo, Morgue, Chipre, Lucerna, Smirna, Pádua, a baía de Vigo de algum romance de Blasco Ibañez contra os jesuítas), mesmo num dia de calor brabo ele podia sentir o frio dos Apeninos a entrar pela janela do seu quarto de solidão sentada na Gare de Lyon, de face para a pátina de mármore de Óperas sem mais nenhuma prima-dona humilhada por amantes mais jovens. “A Europa de Tomás ficava para trás a cada ano, ele sabia e temia — e não viajava por medo de não reconhecer os ambientes burgueses, as esperas nas salas, as partidas dos claustros para os cemitérios em fiacres envernizados pela fumaça do inverno. Dava a Europa por vista, sentida e vivida nas páginas de Thomas Mann, Marcel Proust, Henry James, Virginia Woolf, Knut Hansum, D’Annunzio e dos autores das preciosas miniaturas em espuma do mar (Montherlant, Roger Martin du Gard) ideais para o vidro das janelas de viajantes sem pressa, sabendo que o tempo cancelava esse olhar e o seu objeto, a cada mudança de trem e estação. Assim, adiava — gostava de adiar — a viagem verdadeira, ao continente real das decepções. Nunca comprara a passagem, e sabia que não iria comprar (desde o início da vida).

Por fim, já não possuía o dinheiro para uma viagem, digamos, no seu estilo do passado grandiloqüente.

Onde restou o poema sobre os aleijados? Foi escrito a quatro mãos — uma delas morta, agora — e, com a força egoísta das lembranças, eu só recordo dos meus versos, que falavam nos deficientes (é a palavra ambígua, porém politicamente correta) “escolhidos, com ternura e grosseria”. Tratava-se de uma visão da rua — que não se transporta (quando quiserem captá-la, usem a receita do aristocrático andarilho Valéry Larbaud: nos anos finais da sua doença, sem sair da cama, ele repetia.

Quanto a mim, eu repeti — pela centésima vez — o verso de Foscolo, um talismã de ontem, uma pedra preciosa de melancolia (como um camafeu arranhado):

Da juventude, a flor caída.

Havia um aleijado de verdade — um “deficiente”, perdão — tentando lustrar o sapato do Marquês, principalmente (do seu ângulo de visão, Tomás era quem mais brilhava — enquanto nossos três pesantes talvez fossem por demais desgastados para o ato de engraxá-los resultar em gorjeta e cintilação).

O verso de Foscolo: era lampejo, também, e uma despedida, a noite atrás das costas, os pardieiros do ontem, no mesmo limbo em que se acende a lâmpada no quarto do meu poema publicado na Folha que Tomás chegou a colar no seu álbum de recortes antes de se despedir das putas, da poesia e do mundo:

A LESTE DO ÉDEN

Ao norte de nada
e a leste do Éden,
aquele que morre
e aquele que prossegue
separam-se
apenas pela parede
entre a cama
e um poste público,
a lâmpada no quarto
onde a luz apagou
e a rua iluminada
num círculo vacilante
como o homem que levanta
seu olhar de ignorância:
não sabe se vai chover
para além do globo
de mariposas
como não sabe
que o outro acabou
de morrer no corredor
de sombra
a alguns metros de distância
da sua própria hesitação
e vontade de beber
e não beber,
ir e não ir
de volta
no último ônibus
para o fim da madrugada
frente à janela do defunto
ainda não dado
por morto
pelos parentes que dormem.

P.S.:
Giuliana Costa — de Milão — me pede uma cópia do poema que dediquei a Antonioni, publicado por ocasião dos 90 anos do cineasta nascido em Ferrara (29/9/1912). Faço melhor: acrescento aqui o texto, neste outubro de poemas recordados, em homenagem ao mestre que acaba de comemorar 92 anos de imortalidade cinematográfica:

POEMA PER ANTONIONI

1.
FILMES DA NOITE DE AVENTURA
GUIANDO CEGOS PELA MÃO DA INSÔNIA:
FILMES ITALIANOS DA PERDIDA CERA
DOS BRONZES DE FERRARA E DOS TRENS
PARTINDO DE TERMINI PARA OSTIENSE,
NA VOLTA IMPOSSÍVEL PARA O CINEMA
SUMIDO COM O PRETO-E-BRANCO.

2.
FILMES DE ANTES DA ÁGUA
PESADA DE CORES DA FONTANA
LAVANDO O CINZA DE ROMA:
NUNCA MAIS VEREMOS MAMMA
COMO ERA QUANDO MAIS ROMANA
NA HORA ANTES DA ALVA DO DIA
MAIS LONGO DE CINECITTÀ
LAVADA PELO ARCO-ÍRIS
DE CHUVA EASTMANCOLOR.

3.
FILMES DE MICHELANGELO
NO VERSO LONTANO DO PANO
DE FUNDO DA FOME DE FILMES
DO CINEMA DOS ANOS DA VAGA
LUZ DE VAGALUMES FUÇANDO
O MANO PER LA PRIMA VOLTA
FUMANDO ARIZONA SIZE KING
KONG GANG BAND BANG.

4.
FILMES DO ECLIPSE DE CELACANTOS
E DO ACALANTO DOS CINE-PALÁCIOS
DE ONTEM SUBMERGINDO NAS SALAS
MÍNIMAS DOS SUPERMERCADOS
DA ARTE DE ESCRAVOS DE MIRAMAX
(TODA A BELEZA SERÁ AMERICANA
OU NÃO SERÁ BELEZA NENHUMA,
DIZ O GRUPO DOS OITO ASSASSINOS
DO JOVEM ESTUDANTE DE GÊNOVA).

5.
FILMES DO MORANDI
DO CINEMA ITALIANO:
COME UN CIECO M’HANNO
PORTATO PER MANO,
MICHELANGELO.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho