Prazer inevitável

Entrevista com Claudio Willer
Cláudio Willer, autor de “Estranhas experiências e outros poemas”
01/10/2004

O que significa este Estranhas experiências e outros poemas em sua obra?
O significado ou o sentido de um livro de poesia meu sempre se dá a posteriori. É como se livros tivessem vida própria, fossem encontrando leitores, que, por sua vez, vão se tornando co-autores, mostrando-me o sentido do que escrevi. Poesia não é uma coisa, mas uma relação. Não existe apenas no texto, porém no encontro do texto com o leitor (é o que Octavio Paz chama de “verbo encarnado” em O Arco e a lira).

• Quando os poetas da chamada Geração 60 de poetas de São Paulo começaram a se juntar em torno do editor Massao Ohno — tínhamos todos 20 anos — você e o Roberto Piva se diferenciavam do grupo no que diz respeito à poesia, à linguagem, aos temas poéticos. E até hoje vocês mantêm essa postura. O que você poderia dizer sobre isso?
O que eu tenho a dizer não vai muito além da constatação de que sim, isso é verdade. Já naquela época, havia uma categoria pela qual tínhamos especial apreço, a transgressão. Felizmente, a crítica começa a entrar em cena, a apontar diferenças, e, melhor ainda, a examinar o que cada um desses poetas tem de específico, próprio, pessoal. Qualificar um autor apenas pela geração da qual fez parte seria redutor, empobrecedor. Ainda mais uma geração cuja marca, conforme já observado várias vezes, foi a não-adesão a uma poética, a um plano de criação ou plataforma. Daí sua diversidade, a irredutibilidade a modelos, paradigmas e às grandes tendências como poesia concreta, populismo, academicismo, poesia marginal, etc.

• Sua poesia e sua prosa cumpriram a trajetória que você desejou ao longo de todos esses anos, ou você nunca se debruçou sobre essa questão, deixando que as coisas acontecessem por elas mesmas?
Nunca desejei nada. Não me imaginava ocupando um lugar em um panorama literário. Tudo, publicação, lançamento, críticas, comentários, respostas de leitores, é uma série de surpresas. Constar em livros de História da Literatura, então — quem diria! Por muitos anos, fui de uma completa desatenção com relação à crítica e divulgação. Talvez tenha praticado uma espécie de zen-budismo aplicado à política literária. Ou mantido uma postura consistentemente surrealista, no sentido de não ir atrás, não procurar reconhecimento. Fui surpreendido por Massao Ohno, por volta de 1964: “Willer, quero te publicar!” E, novamente, ele me surpreendeu em 1976 e em 1981. A primeira vez em que enviei originais a algum editor, a priori, foi em 1996, quando terminei Volta, minha narrativa em prosa.

• Além do trabalho de poeta e de crítica e ensaio, você também exerce a tradução, uma tradução honesta. Peço que você discorra também sobre seu trabalho de tradutor?
Em 1970, Inácio Araújo, o crítico de cinema da Folha de S. Paulo, que nos freqüentava, sugeriu a Wladir Nader, da Editora Vertente, que comemorasse o centenário de nascimento de Lautréamont, publicando uma tradução minha de Os cantos de Maldoror. Arregacei as mangas e fiz, meio às pressas. Foi minha estréia como tradutor, em livro — antes, havia publicado traduções, de D. H. Lawrence na revista Diálogos. Lautréamont já era um autor fundamental para mim. Mas ler é uma coisa e traduzir é outra — é hiperleitura, confluência da leitura, criação literária e crítica. Como aprendi traduzindo. Mais ainda, nas ocasiões em que refiz essa tradução, a última, em Lautréamont — Obra completa, pela Iluminuras (1997). Prosseguindo: em 1982, telefona-me um inesperado gaúcho, “Tchê, sou Ivan Pinheiro Machado da L&PM, queria que tu traduzisses Antonin Artaud!”. Foi por recomendação do jornalista Marcos Faerman, grande amigo, pessoa generosa, que também me havia convidado para colaborar em Versus e Singular e Plural, entre outros lugares. Aproveitei o embalo e na seqüência sugeri Allen Ginsberg, o grande poeta da beat, de quem já havia traduzido algo para leituras em teatros, em 1967. Foi quando tive a ocasião de me corresponder com Ginsberg. Essas traduções foram bem, tiveram reedições e boa acolhida pela crítica. Para traduzir, você não se relaciona apenas com o texto. Tem que assimilar a poética do autor traduzido. Conforme já comentei no prefácio de Estranhas experiências, ser convidado para traduzir Artaud, Ginsberg e Lautréamont, autores especialmente importantes para minha formação, é algo que sinto como manifestação do “acaso objetivo” do surrealismo.

• Vários poetas da Geração 60 de São Paulo e Rio de Janeiro estão lançando sua obra poética, 40 anos de poesia. Faz também 40 anos que você publicou seu primeiro livro de poemas. O que você acha dessa iniciativa de reunir toda a poesia como vem ocorrendo?
Tivemos o lançamento dos seus 40 anos de poesia. E de Eduardo Alves da Costa, já examinado aqui, em Rascunho. A obra poética completa de Neide Archanjo. Estranhas experiências também corresponde a 40 anos, desde minha estréia com Anotações para um Apocalipse. Já houve, uns cinco anos atrás, aquele volume com a poesia de Carlos Felipe Moisés, pela Nankim. Ano que vem sairá a obra completa do Piva pela Editora Globo. Haverá outras edições de contemporâneos e amigos nossos. Espero que um próximo da vez seja Rodrigo de Haro, com uma poesia de alta qualidade, conhecida por poucos. Tudo isso mostra a permanência da poesia. Pode vender menos, conforme a superstição de editores e livreiros. Mas resiste ao tempo, reaparece.

• Você é um poeta que batalha em muitas frentes na questão cultural do Brasil. Por isso eu lhe faço uma pergunto que costumo fazer sempre aos poetas que entrevisto para o Rascunho: por que e para quem escrever poesia?
Quanto ao para quê, diria que, para o poeta, escrever poesia é inevitável. Fernando Pessoa já dizia que o poema acontece. Breton falou em imagens que “batiam na vidraça”, querendo entrar. Escrevo porque gosto. Por querer mudar o mundo, a vida. Por dialogar com o que leio. Por paixão e por paixões. Criar poesia é algo como magia propiciatória, gesto simbólico para transformar ou realizar algo. O ensinamento freudiano nos mostra que escrever, comunicar-se, em geral, é um modo de sedução, de aproximar-se do outro. Para quem? Para aqueles a quem a circulação do poema materializar.

• Uma questão que está sempre em pauta quando a gente conversa é a do jornalismo cultural, da “crítica” literária brasileira, que eu coloco entre aspas. Para mim o cenário é melancólico. Como você vê o comportamento da crítica literária brasileira? Ela existe? É séria?
Já escrevi muito sobre isso. Crítica no Brasil na verdade nunca foi lá dessas coisas. Era tradicionalista, tímida, academicizante, conservadora. Agora, salvo exceções, oscila entre o burocrático-superficial e o mercadológico-superficial. Reduziu-se, perdeu espaço, na proporção inversa do crescimento do mercado editorial (ou do decrescimento, alarmante nos últimos anos). A resposta está nos novos periódicos literários, como este Rascunho, um espaço aberto, que privilegia a diversidade, onde se escreve com paixão, pelo prazer, e não no modo burocrático, bem como na revista Cult, na qual colaboro regularmente, divulgando autores novos, e em outros periódicos. Isso, na mídia impressa; no meio digital, há muito mais. Têm que ser apoiados. São cultura de resistência. Podem desempenhar um papel decisivo, em um país com 75% de analfabetos funcionais, semi-alfabetizados que não têm o hábito da leitura, onde a questão da mediação entre o livro e o leitor, por meio do ensino e da imprensa, é dramática.

• Você, Roberto Piva, Rodrigo de Haro e Antonio Fernando de Franceschi parecem formar um pequeno grupo que se distancia dos outros poetas que surgiram na mesma época em São Paulo. Em alguns casos, trilharam até os mesmos caminhos. Eu lhe faço esta pergunta porque tenho notado isso em muitos eventos em que esse grupo praticamente ignora os outros poetas da mesma geração que estão vivos e trabalhando na literatura. Não é preciso lembrar muita coisa. Mas, por exemplo, aquele filme de Ugo Giorgetti sobre a Geração e a cidade. Vocês foram os únicos representantes dessa geração naquele filme que eu, particularmente, não achei honesto. Mais recentemente, a TV Cultura de São Paulo apresentou um belíssimo programa em homenagem ao Roberto Piva, mais que merecida. E lá estava o mesmo grupo comentando a poesia do Piva. Será que outros poetas da cidade da mesma geração e amigos do Piva não teriam o direito de também falar sobre sua obra? Afinal, o que acontece? Os outros poetas da Geração 60 de São Paulo não existem? Essa Geração 60 existe ou não? Ela merece respeito ou não até mesmo daqueles que dela fazem parte?
Você me fez três perguntas numa só. Sobre geração 60, já comentei acima. Se não existisse, não teria escrito sobre ela. Sobre o vídeo do Ugo Giorgetti, em primeiro lugar, que coisa — além de tudo, tenho filmografia: Uma outra cidade do Ugo, mais um média-metragem de 1983, Inventário da rapina, do Aloysio Raulino, todo em cima de imagens do Jardins da provocação (em 35 mm, tomara que seja passado para vídeo), mais as participações em Filmedemência de Carlos Reichembach, Antes que eu me esqueça de Jairo Ferreira, e no recente documentário sobre Piva. Uma outra cidade nunca foi apresentado por Ugo Giorgetti como documentário sobre toda a Geração 60 de poesia. Se o fizesse, aí sim, estaria sendo parcial, viesado. É uma criação pessoal, apresentando a visão dele da cidade e da poesia. Isso me parece evidente. Tem que ser entendido no contexto da obra de Ugo, na qual a recuperação do passado, associada a um sentimento da passagem do tempo como perda, são uma constante, tratada de modo elegíaco em O príncipe, de modo irônico e também elegícaco em Boleiros, e através de poetas em Uma outra cidade. Daqueles poetas, é claro, dos quais ele se sentia mais próximo. Adelante. Sim, Roberto Piva, Rodrigo de Haro, Antonio Fernando de Franceschi e eu, mais Décio Bar, Raul Fiker, Juan Hernandez, e artistas plásticos como Maninha e Guilherme de Faria, outros poetas como Roberto Bicelli, em ocasiões Sergio Lima, e pessoas que não publicaram nem expuseram nada ainda, mas são extraordinárias, como Regastein Rocha, entre outros, formamos um grupo, uma confraria de amigos e de agitadores que se distanciou dos demais poetas que surgiram na mesma época em São Paulo. Naquele ciclo de poesias no teatro de Arena, relatado aqui, em outra entrevista sua, por Eduardo Alves da Costa, fizemos uma sessão apenas nossa: Piva, Rodrigo de Haro, Décio Bar e eu. Endossamos os manifestos anarco-surreais do Piva, de 1962, Os que viram a carcaça. Distribuímos um necrológio de autores contemporâneos em 1963. Encontrávamo-nos e nos reuníamos com regularidade. Diuturnamente — Piva me telefonava todo dia, Rodrigo de Haro hospedou-se em minha casa por meses. Firmamos outros manifestos e outras manifestações. Líamo-nos. Partilhávamos leituras, informação, ativamente. Achávamos outras produções e exteriorizações do período, a exemplo da Catequese Poética de Lindolf Bell, demasiado bem-comportadas. Unia-nos a dimensão mais transgressiva, a simpatia ou afinidade com anarquismo, e, em graus diferentes, conforme o autor, com as imagens poéticas, uma escrita mais livre, mais delirante, e com geração beat e surrealismo. Por isso, cunhei o termo “periferia rebelde”, referindo-me a esse grupo, em meus textos sobre o período. Há uma sinopse disso em dois dos meus poemas, A palavra e A princípio. E bons relatos nos depoimentos de Antonio Fernando de Franceschi e Rodrigo de Haro publicados na coletânea Azougue 10 anos, organizada por Sérgio Cohn (Azougue editorial, 2004) e na entrevista que o Piva fez comigo, disponível na Internet, entre outros lugares. Há uma tese de mestrado — Roberto Piva e a “periferia rebelde” na poesia paulista dos anos 60, por Thiago de Almeida Noya, UERJ, Letras, 2004, espero que saia em livro, por enquanto só consultando na UERJ — que, entre outras boas contribuições, mostra, de modo inteligente, as diferenças dentro da geração, do movimento dos Novíssimos, além de corrigir a periodização feita por Heloisa Buarque de Hollanda. Maior aproximação com outros autores da mesma geração, isso aconteceu depois, a partir do final da década de 1970 — foi quando Lindolf Bell conversou comigo sobre fazermos algo mostrando a Geração 60 dos Novíssimos de São Paulo. Há dois eixos, da sincronia e da diacronia. Não podemos nos prender apenas a um ou outro deles. Seria redutor. A crítica, a partir do que Armando Freitas Filho escreveu em 1979, tem observado maior afinidade minha e de Piva com Afonso Henriques Neto, que é do Rio de Janeiro, e a quem nem conhecíamos naquela época. Ou com Floriano Martins, de Fortaleza, a quem conheci por volta de 1985 e com quem, há quatro anos, edito a revista eletrônica Agulha. Hoje, considero-me contemporâneo de poetas com 50, 40, 30 e 20 anos de idade. Alguns, vários dentre eles, com citações, paráfrases, epígrafes de poemas meus em suas obras. Sou um intertexto. Por isso, no prefácio de Estranhas experiências, digo que o importante não é apenas ser lido, é ser escrito. Esses poetas formam um grupo ou geração atemporal, ou então, situada em outra cronologia. Algum dia, reunirei todos eles em uma bela festa.

• Na apresentação de Estranhas experiências, você diz que “numa época como a nossa, quando há um aparente eclipse de utopias, a rebelião romântica, individual, continuará a contribuir para a transformação do mundo”. O que significa isso?
Breton encerrou a palestra-manifesto Posição política do Surrealismo, de 1935, com uma frase famosa: “’Transformar o mundo’, disse Marx; ‘mudar a vida’, disse Rimbaud: para nós, estas duas palavras de ordem não são mais que uma só”. Note bem, há dois pólos, representados, respectivamente, por Marx e Rimbaud. Uma polaridade semelhante àquela estabelecida por Octavio Paz, em Signos em rotação, entre revolução e rebelião ou revolta. Ao longo da história, às vezes foram complementares; em outras, convergentes; e em outras, francamente antagônicos — como durante o pesado conservadorismo soviético, quando a rebelião individual, romântica, era vista apenas como sintoma da decadência burguesa. Aceita a existência desses dois pólos, e desses dois ciclos, da revolução e da rebelião, é possível indicar problemas em um deles, o da revolução. É como se tivesse completado um percurso, cuja data inicial pode ser o 14 de julho de 1789, o apogeu, o outubro soviético de 1917. Seu ponto final, para muitos, é a queda do Muro de Berlim, no final de 1989. Também pode ser 1991, com o fim da União Soviética. Ou — na minha opinião — janeiro de 2003, com a eleição e posse do governo Lula. Lembro de um artigo de José Dirceu, em 1980, no Leia Livros, criticando a social-democracia de Brizola, argumentando que aquilo era reformismo, enquanto a proposta do PT era revolucionária, de ruptura. Naquela época, eu recebia trotskistas vindos da França, que vinham ao Brasil para conhecer o PT, a grande esperança da esquerda não-soviética. As voltas que o mundo dá… Eu nunca tive dúvidas de que iria dar nisso mesmo que está aí, no que está acontecendo agora. Enfim, e resumindo: o outro pólo, da rebelião romântica, simbolizada por Rimbaud, continua em pé, e vale como postura e proposta de transformação da realidade. Acho que ainda haveria muito para conversarmos a respeito.

LEIA RESENHA DE ESTRANHAS EXPERIÊNCIAS

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho